sábado, 29 de janeiro de 2022

Grande Angular - Instituições vulneráveis

Entre outras características, as instituições podem ser fortes e independentes. Ou o seu contrário: fracas e submissas. A força das instituições advém-lhe da história, da tradição, do consentimento renovado e da sua independência. Actualmente, é bem provável que a vulnerabilidade das instituições seja o elo mais fraco da democracia portuguesa.

Sem instituições fortes e independentes, os direitos fundamentais, com as designações variadas de direitos humanos, do cidadão, cívicos e políticos, são fracamente defendidos. A liberdade humana e a cidadania não se esgotam nos regimes políticos, nem nos sistemas constitucionais e jurídicos. São conhecidos Estados que utilizaram o Direito para limitar, reduzir ou até contrariar os direitos humanos e as liberdades. O Estado Novo, uma “ditadura jurídica meticulosa”, como lhe chamou em tempos Manuel de Lucena, é um bom exemplo. O Direito e a Constituição não defendem necessariamente as liberdades e os direitos humanos. Nem respeitam infalivelmente as actividades e iniciativas de outra índole, como sejam a religião, a cultura, a arte e a ciência.

O que faz com que os sistemas políticos, o direito e a lei respeitem os direitos fundamentais e as liberdades é justamente a força institucional. Esta última mede-se pela sua independência e pelo permanente consentimento social. A evolução recente da sociedade portuguesa dá indicações de perigos que espreitam, de instituições frágeis e de tentativas de redução da sua autonomia. Se é verdade que a democracia erige o povo em soberano, em princípio organizador da comunidade, também é verdade que tal génese não permite acreditar que, neste regime, quem manda é a política, que a política se sobrepõe ao direito, à cultura, à economia, à religião e à arte. Na verdade, no respeito pela liberdade, a política tem de compor com todas aquelas esferas de acção humana.

Vivemos quase quatro décadas de corporativismo autoritário e de ditadura, durante as quais vigorou o princípio do predomínio da política e do Estado. Assim como vigorou, em consequência, a submissão de quase todas as actividades às regras e às leis aprovadas autoritariamente. Não se tratava de regime totalitário, no qual as instituições são destruídas ou eliminadas, mas sim de regime autoritário e ditatorial, que submetia as instituições e mantinha sob vigilância todas as actividades e iniciativas públicas.

Desde a fundação da democracia, nos anos 1970 e 1980, os portugueses vão conhecendo uma vida colectiva até então inédita, assente, entre outros, na liberdade, no primado do direito, nas garantias fundamentais e no pluralismo. Mas, sob pressão dos partidos, foi-se criando a ideia de que a política se sobrepõe a toda a vida pública. Assim se faz com que, dia após dia, ano após ano, se fortaleça o Estado, em detrimento das instituições como, por exemplo, as academias, as associações, os sindicatos, as empresas ou as religiões. A centralização administrativa, o primado da política, a dependência financeira e a tutela europeia completam o quadro de vulnerabilidade. A que também não é estranha a ingerência política.

Olhemos à nossa volta. Que organizações aumentam os seus poderes e as suas funções? O Estado central. A União Europeia. A grande banca e as muito grandes empresas multinacionais. Os partidos políticos. Os clubes de futebol. Quem perde poderes e autonomia? As magistraturas. As Forças Armadas. As universidades e as academias. As associações profissionais. Os sindicatos. A Igreja católica e as restantes religiões. As escolas. A imprensa. Neste panorama cinzento, as autarquias municipais ocupam lugar especial: ainda fortes, mas dependentes.

O caso da justiça é talvez o mais grave. Dela dependem a democracia e a liberdade. Os episódios quase quotidianos relativos a crimes de corrupção e nepotismo, a abuso de poder e branqueamento, a roubo e aproveitamento indevido, aos seus julgamentos e à instrução de processos, deixam a população inquieta e desconfiada. É estranho que os titulares dos cargos políticos não compreendam o mal que se está a fazer. Confiar na justiça é hoje raro ou impossível. A morosidade, as chicanas, a incompetência, a manipulação e a distorção de procedimentos são excessivos. Alguns bandidos da política e da finança formam uma legião que vai deixar gerações de portugueses descrentes da democracia e da justiça. Não há estrada que não esteja manchada. Não há PPP que não esteja sob forte suspeição. Não há concurso de que não se suspeite. Todo este universo de corrupção, incompetência, roubo e injustiça é, para alguns, fonte de regozijo: assim se mostra a pulhice da economia de mercado, a vulnerabilidade da sociedade liberal e a corrupção endémica da democracia. Para eles, quanto pior, melhor. Sempre tiveram a certeza da superioridade da economia estatal, da banca nacionalizada, da justiça dependente e da democracia temperada por regras que não apenas a da representatividade democrática. O que realmente impressiona é que os dois grandes partidos não percebam que os alicerces da sua vida e os factores da sua sobrevivência estão em séria crise.

Também nas Forças Armadas assistimos a acontecimentos que sublinharam a fraqueza desta instituição. As Forças Armadas não se querem independentes do soberano (monarca, Estado ou povo), mas sim autónomas dos governos. Tal como as magistraturas, querem-se impendentes dos governos, dos partidos, das profissões, dos sindicatos e das associações. Mas são dependentes, em última instância, do povo soberano, sobretudo para respeitar e fazer respeitar a lei, que não é da sua autoria. As universidades querem-se independentes de tudo e de todos, no que à ciência, à investigação, ao saber e à pedagogia diz respeito. Mas, nas suas funções de serviço público, dependem do soberano e dos órgãos de soberania. É este equilíbrio, entre autonomia e independência, por um lado, e dependência da decisão soberana, por outro, que é difícil de manter, mas que é o segredo da liberdade.

A fraqueza e a debilidade das instituições em Portugal serão talvez as principais ameaças das liberdades e da democracia. Ao lado da pobreza, da desigualdade e da falta de cultura, a fraqueza da democracia portuguesa reside na fraqueza das suas instituições.

Público, 29.1.2022

 

sábado, 22 de janeiro de 2022

Grande Angular - Regionalização… Outra vez!

 Parece o mito do eterno recomeço. Nunca falha. Em momento de pausa. Em vésperas de eleições. Para desviar as atenções e olhar para outro lado. Para esquecer uma crise. Quando não há mais nada para dizer. Para dar a impressão de que se tem uma ideia. Nestas circunstâncias, uma só palavra: Regionalização. Sempre nova e virginal. Fresca e pura, matinal e limpa: eis a Regionalização.

Há talvez trinta ou quarenta anos que se volta à casa de partida. Já partidos desistiram. Presidentes assobiaram para o ar. O povo chumbou o referendo. Muita gente mudou de opinião. Nada disso interessa. A regionalização é sempre uma novidade, uma causa, uma maneira de incomodar o adversário. Em vésperas de eleições, um último trunfo do Primeiro-ministro: regionalização dentro de dois anos!

Quem a defende, agora e sempre, foge a explicar por quê e para quê, não nos revela os objectivos reais, limita-se a proclamações sempre justas. A regionalização é, por definição, uma virtude. Sem conteúdo. Mas com bondade. Mais direitos para os cidadãos, mais igualdade para os Portugueses, governo mais próximo, melhor conhecimento das necessidades do povo, mais democracia, mais desenvolvimento do interior, mais eficácia na decisão, menos burocracia… Eis o rol das virtudes. Nenhuma está provada. Mas esse é o mérito da dogmática: as verdades são o que são, não se demonstram.

Os defensores da regionalização e de todas as suas virtudes não referem, por exemplo, o facto de algumas das mais importantes reformas sociais terem sido de carácter nacional, unificador, como são os casos do acesso à universidade, da alfabetização, da segurança social ou do serviço nacional de saúde. Também não referem o facto de a maior parte dos novos recursos para o desenvolvimento, o bem-estar e a inovação resultarem, não de qualquer bondade da regionalização, mas sim do maior empreendimento nacional, internacional e federal que se conhece, isto é, a integração europeia, os seus fundos e as suas regras de homogeneização.

Para que serve então a regionalização? Por que razões e por que diabo o tema volta sempre como as aves migratórias? Vale a pena aferir as vantagens da regionalização para a resolução das necessidades nacionais e para a resolução dos grandes problemas. Em que é que a regionalização ajuda nas prioridades nacionais? O inventário não é famoso. Vejamos por partes.

Que pode fazer a Regionalização de bem na Justiça? Nada! 

Na integração europeia, no exame das políticas europeias, na revisão fundamental das políticas de defesa, de segurança e de imigração? Nada!

Na acção de combate à pobreza, sobretudo à pobreza infantil, na tentativa de diminuição da desigualdade crónica da sociedade portuguesa? Nada!

Nas políticas de integração cultural e social das minorias, dos imigrantes e das populações estrangeiras? Nada!

Na defesa, consolidação e desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde, para a sua maior eficácia e para a sua menor desigualdade? Nada!

Na política demográfica, promovendo a natalidade, amparando o envelhecimento activo, fomentado a actividade útil dos idosos, diminuindo a emigração e controlando ou estacando a imigração ilegal? Nada!

Na formação secundária, técnica, profissional e superior, grande carência da sociedade e dos portugueses? Nada!

No acesso à cultura e à ciência por parte dos jovens? Nada!

No investimento privado, produtivo e de bens transaccionáveis? Nada?

No fomento da exportação, necessidade absolutamente urgente e vital? Nada!

No desenvolvimento da produtividade e da competitividade, deficiência maior da sociedade portuguesa e das estruturas produtivas nacionais? Nada!

Este é o catálogo. Para recordar.

Segundo os seus defensores e sacerdotes, a Regionalização melhora a democracia, descentraliza, aumenta a proximidade do povo, promove melhor governo, estimula a eficácia e traz mais recursos para o desenvolvimento. Tudo isso está por provar, evidentemente. Tudo isso poderia ser feito com o Estado actual e com as autarquias actuais. A começar pela descentralização, que qualquer governo poderia ter promovido, nestes quarenta anos, mas que não fez por razões evidentes de ocupação do Estado central.

Depois de trinta anos de falhanços, de um referendo perdido, de comissões majestáticas, de milhares de páginas de relatórios definitivos e de leis inúteis, vamos talvez recomeçar tudo dentro de alguns meses. Depois também de pelo menos cinco mapas ou desenhos das regiões, facto suficiente para demonstrar que a identidade regional em Portugal é inexistente. Ou pelo menos errática, fluida e nebulosa, como é a sua ideia.

A Regionalização é um biombo que esconde alguma coisa. É um disfarce que mascara. É um pretexto para adiamento. É uma desculpa para a incapacidade dos partidos. É um engodo para aliciar incautos. É uma falsa descentralização. É uma democracia ilusória. É uma tentativa deliberada de diminuir as actuais instituições, o poder local e a identidade nacional, a favor de duas novas entidades, a região administrativa e a federação europeia. A União Europeia procura ultrapassar os Estados nacionais, assim como os poderes locais, em favor dos poderes regionais, com menos força política.

Com as possíveis excepções dos Açores e da Madeira, não há verdadeira identidade em região alguma do país. Não há pressão social a reclamar. Não há reivindicação popular promovendo esta reforma do Estado. Não há instituições regionais sólidas que dêem força à regionalização. Não há tradição histórica regional.

A proposta de mapa regional mais referida é a que prevê cinco regiões: Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. É esta a afirmação mais clara da vontade de criar entidades artificiais, sem história, muito menos identidade. Onde estão Trás-os-Montes e Alto Douro, o Douro, o Minho, a Beira ou as Beiras, a Estremadura ou o Ribatejo, para já não falar do Alto e do Baixo Alentejo? 

Com eventual excepção das regiões metropolitanas de Lisboa e do Porto, que para nada necessitam de Regionalização, as regiões do interior e do resto do país não têm força própria nem recursos para assumir um papel relevante de desenvolvimento.

A Regionalização é, em Portugal, nos tempos actuais, o maior embuste político que se possa imaginar.

Público, 22.1.2022

sábado, 15 de janeiro de 2022

Grande Angular - Justiça e eleições

É um exagero falar de “guerra civil” na Justiça portuguesa. Mas parece que, na história recente do país, vivemos o momento de maior conflitualidade dentro da justiça. Já conhecemos implicações sérias nas relações entre a Justiça e a política, entre a Justiça e o governo, entre a Justiça e os grandes grupos económicos. Trata-se de relações complexas, feitas ora de aversão ora de cumplicidade. Neste universo controverso, sempre houve de tudo. Ou sempre se suspeitou de tudo. Dos mais baixos interesses materiais e dos mais elevados interesses políticos. De interferências cristãs ou maçónicas. De favores prestados a partidos ou a clubes de futebol.

A todo este rol de desconfianças, muitas delas confirmadas por “casos” recentes de corrupção comprovada e de demissões abruptas, vem agora acrescentar-se a terrível sensação de que a crise e as dificuldades da justiça se devem à guerra entre dois magistrados! Já tivemos justiça de esquerda e justiça de direita. Já tivemos justiça dos pobres e justiça dos ricos. Já tivemos justiça dos poderosos e justiça do povo. Que temos agora?

A maior parte da Justiça portuguesa (e a grande maioria dos magistrados) é relativamente imune aos piores interesses. Sabe-se que os tribunais resolvem por ano mais de 500 000 processos. Como sabemos que a média de duração dos processos, apesar de elevada, não é excessiva. As comparações internacionais não sugerem que a justiça portuguesa seja tão má quanto se diz. A maior parte da justiça portuguesa, honra seja feita aos magistrados e aos oficiais, trabalha bem e merece respeito.

            O problema é quando há arguidos importantes e advogados reputados. Sempre que há ricos e poderosos, há caso. Há questão quando há políticos, deputados, ministros, secretários de Estado, empresas, bancos, comerciantes, gestores públicos, construtores de obras públicas, dirigentes de futebol e negociantes de desportistas. E como ainda por cima muitas destas personalidades estão ligadas entre si, tudo fica mais difícil. Os comportamentos dos magistrados e dos advogados, nestes casos, tornam-se estranhos. As chicanas burocráticas multiplicam-se. As dificuldades processuais crescem como metástases. Dezenas de políticos e empresários esperam anos por julgamento, mais apropriadamente seria dizer que esperam por prescrição. Se há países em que seja possível dizer que existem duas justiças, a dos poderosos e a dos cidadãos, Portugal é certamente um deles.

Veja-se a lista de acusados, arguidos e investigados. Primeiro-ministro, ministros, secretários de Estado, banqueiros, presidentes de institutos, chefes de polícia, juízes da primeira instância, juízes da Relação, presidentes de clubes de futebol… Haverá, na Europa, muitos países em que seja possível estabelecer uma lista como esta? Felizmente que ainda temos imprensa livre que se dedica a escrutinar um dos mais herméticos labirintos da sociedade portuguesa.

É aliás curioso ver como o segredo de justiça se transformou num mecanismo de defesa dos magistrados e dos poderosos. As fugas de informação e as violações do segredo de justiça estão entre os factores mais referidos como deficiências da justiça. O problema é que fugas e violações têm uma origem. E autores. Sempre foi claro que não há fugas nem violações sem responsabilidade dos agentes de justiça. Dos magistrados. Dos oficiais de justiça. Dos advogados. Mas o mais certo é que se trate da responsabilidade dos magistrados. Ou porque assim entendem e têm algo a ganhar com isso. Ou porque não tomaram as precauções necessárias para evitar as fugas e as violações. São responsáveis por acção ou por omissão. Por vontade própria ou por incompetência.

A campanha eleitoral revela bem o desinteresse dos partidos pela justiça. Em relação ao, provavelmente, o mais complexo dos problemas, o pior de Portugal, o mais grave do país… nenhum dos candidatos mostrou real preocupação, nenhum dos partidos traçou caminhos. E todos sabem que, apesar da independência dos tribunais, mau grado a autonomia dos magistrados, não há qualquer solução ou melhoria sem legislação, sem revisão dos códigos e dos processos, sem governo e sem parlamento. A covardia dos políticos portugueses perante a justiça, assim como a hipocrisia do alegado respeito pela independência dos magistrados, são dois dos piores defeitos da nossa vida colectiva.

Sabemos que é necessário respeitar a independência dos magistrados em tribunal. E a autonomia dos procuradores em processo. E a seriedade de todos em julgamento. Mas a justiça depende do soberano. Do povo. Não fica bem aos magistrados invocar a sua independência para justificar a sua auto-gestão ou disfarçar as suas culpas. Não fica bem ao político e ao legislador invocar a independência dos tribunais como desculpa para a sua inacção.

Por isso tudo, teria sido importante que a campanha eleitoral se tivesse debruçado seriamente sobre a justiça e os seus defeitos. Os partidos deveriam ter agido sem medo de invadir territórios alheios e sem receio de serem acusados de ataque à independência dos magistrados. A justiça jamais se reformará a ela própria. Ainda por cima, sabendo nós que os magistrados estão praticamente em guerra.

Será que os responsáveis políticos, os dirigentes do Estado, os principais magistrados não percebem, não sentem, não se dão conta do que se está a fazer ao país e à população? Com esta demonstração de incompetência, de covardia, de partidarismo e de parcialidade, está a causar-se um dano irreversível, perene ou de longa duração ao estado moral da população, à confiança do povo na justiça e nas instituições. Será que não percebem que a população perde a confiança, perde o sentido moral da vida colectiva, perde a dimensão ética da vida política? 

Já nos interrogámos sobre as razões pelas quais a justiça portuguesa perde tantos recursos nos tribunais europeus? E os motivos pelos quais a justiça portuguesa perde tantos processos internacionais, designadamente europeus, quando estão em causa a liberdade de expressão e a liberdade da imprensa?

É pena que assim seja. A justiça é talvez o mais poderoso factor de liberdade. A mais importante garantia de liberdade. A mais eficaz defesa da liberdade. Um tribunal é tão importante quanto uma urna de voto. Ou uma palavra impressa. Não cuidar da justiça é não cuidar da liberdade. 

Público, 15.1.2022 

sábado, 8 de janeiro de 2022

Grande Angular - Património

 O Fórum Cidadania LX, associação que defende a cultura em Lisboa, acaba de prestar mais um serviço ao país: propôs uma providência cautelar contra o Estado por causa da degradação rápida do Palácio Burnay. Há anos que esta associação presta atenção a todos os actos que dizem respeito ao património, geralmente os que lhe fazem mal. Escrevem aos poderosos. Avisam os cidadãos. Recolhem contributos, acolhem testemunhos, apresentam queixas, denunciam e por vez aplaudem.

Aquele palácio, interessante, valioso, tem mais de dois séculos e pertence há oitenta anos ao Estado. Ali viveram famílias ricas, estudantes universitários frequentaram aulas e trabalharam funcionários de um ministério. Há anos que o edifício está abandonado. A degradação é rápida e fatal. Já foram roubadas móveis, artefactos, telas, frescos, azulejos e pinturas.

Ali tão perto, o Palácio da Quinta das Águias e o Paço Real de Caxias mostram bem que não se trata de casos raros: na verdade, todo o país está polvilhado de ruínas, de casas civis, de quintas e palácios, passando por mosteiros, igrejas, escolas, fábricas, estações de caminho-de-ferro… Tudo o que der para hotéis de charme, tem futuro, não tem restauro, mas tem futuro. Se não estiver à mão do turismo fácil, não tem futuro.

Não muito longe, está a recordação das jóias da Coroa roubadas após empréstimo mal concebido. E também por perto, a divulgação recente do facto de terem desaparecido muitas dezenas, talvez centena e meia de obras de arte (sobretudo pintura e fotografia) que pertenciam à colecção do Estado. “Não estão desaparecidas”, segundo a imortal frase da Ministra da Cultura, “estão por localizar” e “necessitam de localização mais exacta”! Sem falar na evaporação de um raríssimo e único daguerreótipo de Dona Maria II.

Se existe sector ou actividade em que o papel do Estado é relevante e deve ser dominante, é bem o do Património. Ninguém tem as responsabilidades, os recursos, a autoridade, os conhecimentos e a experiência necessários ao estudo, à conservação, ao restauro, à protecção e à divulgação do Património histórico e cultural. Não é, infelizmente, o caso em Portugal. Hoje. Nem ontem. Nem antes.

Com raríssimas excepções, nunca a cultura foi prioritária, nem sequer importante para os governos. Num quadro de miséria programada, nunca o património cultural, em todas as suas formas, foi importante, muito menos prioritário. Nunca o património recebeu recursos financeiros à altura. Todos os anos, inexoravelmente, o património degrada-se a olhos vistos: o tempo, a chuva, os parasitas, os ladrões, as obras selvagens, as visitas, os turistas, os construtores mais apressados e tantos outros inimigos agem sempre mais depressa do que o orçamento de Estado, a Administração Pública, os técnicos, os cientistas e os académicos.

No quadro do debate público, absolutamente prioritária parece ser a cultura geral na escola. A cultura geral é o que mais separa as classes, mais desigualdade provoca, mais talento desperdiça e mais falta faz na preparação profissional, técnica e científica. É o contributo mais indispensável para uma educação humanista. Mas essa é uma prioridade da política de educação.

Na cultura propriamente dita, pela urgência, pela despesa, pelos recursos necessários, pela complexidade, pela importância histórica, pelo contributo para a identidade, pela iminência de abandono, pela ameaça de roubo e pela selvajaria dos “eventos”, é evidente que o património cultural é e deveria ser a prioridade indiscutível. Nunca foi. Por este andar, nunca será. Para mal de nós todos.

Tem-se a certeza de que a política cultural do governo, de quase todos os governos, está influenciada por factores insólitos e por estranhas clientelas. Primeiro, as necessidades de consumo da burguesia chique. Segundo, as elucubrações teóricas dos radicais de esquerda, dos marginais das artes e das minorias étnicas. Terceiro, as expectativas eleitorais de uns tantos autarcas. Finalmente, uns sindicatos de profissionais com ligações ténues à coisa cultural, sobretudo a coisa do espectáculo.

O Ministério da Cultura parece uma agência de eventos, comunicação e emprego. Interessam-lhe as “artes performativas”, mais do que tudo. Preocupa-se com o que dá nas vistas, mais do que com o que faz falta. Inquieta-se com o efémero, a moda, o superficial, quase nunca com o essencial, o difícil, o fundamental e o durável. Interessa-lhe o que é demagógico e passageiro, o que parece encantador e toca a corda fácil da moda dos activistas.

A política de cultura dos governos portugueses distancia-se cada vez mais do que é essencial, a favor do que é fácil. A morosa arqueologia fica para trás. A história, as técnicas e as artes de todas as eras, esquecidas. A formação de artistas e artesãos é menorizada. O que realmente interessa é o consumo, a passadeira vermelha, a inauguração do ministro e o noticiário das oito!

Há décadas que se vive este paradoxo: os governos, os partidos e outros membros das elites políticas defendem a prioridade da cultura e, dentro desta, a prioridade do Património. Mas, no momento da verdade, quando se trata de obter recursos, de prever investimentos e de financiar actividades públicas ou privadas, não só a cultura não é prioritária, como o Património é geralmente secundário. É difícil encontrar uma explicação satisfatória para este fenómeno, que tanto pode ocorrer em anos de dificuldades, como em anos de fartura. O que parece ser a mais adequada explicação é a de que a cultura e o Património dão poucos votos. Além de uma certa concepção filosófica e política que faz da cultura uma actividade supérflua, um sector facultativo e uma despesa luxuosa…

Ora, a cultura é uma prioridade nacional, que se deve traduzir em esforços orçamentais consideráveis, em revisão dos currículos educativos e em investimento na formação profissional. Dentro da cultura, o Património é a grande prioridade, dada a sua urgência, a fragilidade, os perigos que a ameaçam, as exigências técnicas e científicas e o seu valor como identidade e carácter. Esta prioridade ao Património deve ser cumprida com mais atenção do que as artes performativas, a criação contemporânea, o espectáculo e a cultura dos “eventos”. 

Em tempos de sociedade global, de homogeneização dos costumes e de frenesim comercial, são a cultura e o património que melhor nos defendem na nossa singularidade, na identidade histórica, na democracia do presente e na liberdade do futuro.  

Público, 8.1.2022