sábado, 28 de novembro de 2020

Grande Angular - O melhor também é possível

Por entre desastres e ameaças, os últimos tempos também nos trouxeram boas notícias. A derrota de Donald Trump e a vitória de Joe Biden estão nesse número. Assim como as primeiras vacinas contra o vírus covid-19.

Os cientistas e a sua investigação acabam de prestar inesquecível serviço à humanidade. Raramente ou nunca os esforços dos profissionais e dos laboratórios chegaram tão depressa a resultados tão promissores. Sabe-se que há concorrência excessiva, com propaganda e mentira à mistura. Sabe-se que há muito dinheiro em causa e que, com a competição descomunal, se perdem meios e recursos. Que há quem exagere na demonstração de bons resultados e quem esconda as insuficiências. Que as vacinas estarão prontas para uns, mas não para todos. Que os que têm mais poder, mais dinheiro, mais reputação e a nacionalidade certa terão vacinas mais rápidas e mais eficazes do que os outros. Que há quem, pessoa, governo, empresa ou Estado, use as vacinas para obter vantagens económicas, comerciais ou políticas, legítimas ou não. Sabemos isso tudo.

Também sabemos que, para certas doenças, não se encontram facilmente vacina e tratamento. E quando ambos existem, nem sempre estão acessíveis. Sabemos que doença de pobre não tem vacina fácil nem cura pronta. Como sabemos que doença de todos ou de país rico depressa tem tratamento e vacina. E não ignoramos que, por vezes, mesmo quando há vacina, tratamento e cura, não chegam sempre a todos e a tempo. Tudo isso e muito mais não impede que o que se está a conseguir, neste ano de triste memória, é motivo de regozijo e encanto. E admiração.

Dá alegria viver com a certeza de que, em certas circunstâncias e sob determinadas condições, as capacidades técnicas e científicas estão de tal modo desenvolvidas que nos é possível ter confiança na humanidade. Habituámo-nos às missões espaciais que exigem uma precisão e uma coordenação inacreditáveis e consideramos que são banais, que qualquer um pode chegar lá. A ponto de pensarmos que a ciência e a técnica são coisas de todos, banais. É com facilidade que julgamos que uma peça musical barroca, um escultura gótica, um belo romance ou um grande filme contemporâneo são o supra sumo da criação e da inteligência, enquanto admitimos que qualquer dispositivo técnico ou um adiantamento da ciência fazem parte da rotina. De um cientista ou de um engenheiro, rapidamente diremos que “não faz mais do que as suas obrigações”, mas de um poeta ou de um pintor, não hesitamos em classificar de genial a sua obra. E assim não deveria ser.

O que uns milhares de cientistas fizeram, em menos de doze meses, sob enorme pressão humanitária, merece o aplauso universal e é credor de admiração sem reservas. E deixa-nos uma réstia de esperança, a certeza de que o espírito humano, a organização científica e o esforço dos profissionais são capazes de feitos memoráveis. São equipas e organizações como estas, em vários países, em muitas universidades, em diversos laboratórios e em diferentes empresas que nos reconciliam com o tempo presente. Não conhecemos ainda as consequências e a eficácia de tais vacinas. Nem percebemos os êxitos obtidos nas áreas do tratamento e da cura. Mas sabemos já que um grande empenho científico, sem entraves artificiais, com nenhumas ou poucas distorções políticas, produz obra de que a humanidade se pode orgulhar.

Notícias boas também as que chegam da América. Eleições muito renhidas deram uma vitória clara a Joe Biden, um sensato e cinzento democrata, contra Donald Trump, uma das maiores ameaças contra as liberdades e o equilíbrio das nações. Não foi vitória simples nem folgada. Para surpresa de muitos, os resultados eleitorais do presidente Trump foram muito altos para uma presidência tão contestada. A verdade é que foi a democracia que impediu os riscos que a democracia corria. Como é sabido, também os sistemas democráticos podem destruir as democracias e as liberdades. Uma decisão democrática não é necessariamente justa, solidária e livre. Como se sabe hoje, as democracias “caem por dentro”, quantas vezes através de processos democráticos. Como se vê hoje na Europa, na América Latina, em África e na Ásia.

Há vinte anos que a democracia conhece um processo de inversão ou de captura. Há duas décadas que forças radicais ameaçam eleitoralmente as democracias, conquistam posições nos parlamentos e até tomam conta de governos. Na América Latina, graças a eleições com demagogia e populismo, os maiores e mais ricos países daquele continente têm hoje democracias frágeis ou fictícias. Em África, quase todas as experiências auspiciosas de poder democrático fizeram uma reversão, retomando estruturas de poder violentas, procedimentos contestáveis e governos de absoluta hipoteca partidária, militar e tribal. Na Ásia, enquanto alguns países nem sequer ergueram estruturas aparentes de democracia, a maior parte recorre a esses procedimentos e na verdade os governos estão cada vez mais prisioneiros de famílias, empresas e partidos. Na Europa, países de antiga e sólida democracia vêem crescer movimentos e partidos não democráticos e antidemocráticos, radicais de direita ou de esquerda, enquanto países de novas e recentes democracias dão já sinais inequívocos de quererem, com apoio do eleitorado, aprisionar e manipular a democracia.

Estes têm sido anos de dificuldade democrática excepcional. E os democratas nem sempre parecem ter percebido ou terem meios de obstar, por vias democráticas, ao declínio da democracia. Donald Trump e os Republicanos causaram danos à democracia americana e ao mundo ocidental cujas consequências não conhecemos ainda. Felizmente que os eleitores americanos, isto é, um pouco mais de metade deles, reagiram, reduzindo assim a quatro anos pretéritos o período de verdadeira violação da democracia que se anunciava para durar muito mais. Os eleitores americanos acudiram a tempo, por pequena margem, acrescente-se, mas por vias democráticas. A mensagem enviada ao resto do mundo é clara: é possível que a América e os americanos não embarquem em períodos de democracia alucinada, quem sabe se iliberal e caprichosa. É possível, dentro da própria América, encontrar forças de resistência a todas as tentativas demagógicas que proliferam por esse mundo.

A democracia também é o regime dos não democratas. E dos antidemocratas. É a sua força. E a sua fraqueza. Dentro da democracia, está o seu próprio veneno, a sua morte. Mas também está o seu remédio. A sua salvação.

Público, 28.11.2020

sábado, 21 de novembro de 2020

Grand Angular - O pior é possível

 A coligação de esquerda promovida pelo PS de António Costa e a criação do partido Chega de André Ventura são os dois acontecimentos singulares mais importantes para a remodelação do panorama político e partidário. Em conjunto, militam seriamente a favor do pesadelo político que, cada vez mais, se anuncia como inevitável: a separação do país ao meio, esquerda e direita, ou a criação de dois blocos compactos, o de esquerda e o de direita, ou ainda a divisão dos portugueses em dois grupos irreconciliáveis, o de esquerda e o de direita.

Há, todavia, uma diferença notável entre a criação do Chega e a coligação de esquerda. A primeira surge das margens e é uma mera borbulha, enquanto a segunda emana do centro do poder e é um gesto com peso e medida. De comum, têm o facto de tentarem promover a alteração da vida política e o de estarem na origem de percepções catastrofistas do futuro do país. Já se berra por aí “abaixo o fascismo” e “fora o comunismo”!

Há anos que estava nas cartas, mas que foi sempre sendo recusado. A tão desejada bipolarização, defendida por muita gente à esquerda e à direita, não era mais do que isso. Ou antes, era uma versão do que realmente se escondia, o receio do “bloco central”, considerado este como o alfobre da corrupção, o viveiro do compadrio e a incubadora da partidocracia. Nos seus tempos mais viçosos, a defesa da bipolarização utilizava argumentos tentadores. Esclarecia a vida política, dizia-se. Ficava a saber-se melhor quem era quem, julgava-se. Terminava com as meias medidas e os meios-tons. Afastava as águas mornas e pantanosas. Ajuizadamente, nunca se fez realmente. Nem nos tempos de Cavaco Silva ou de Sócrates. Mas quase se fez nos de Passos Coelho. E agora, mais do que nunca, está aí à porta.

A divisão do país entre esquerda e direita, nas actuais circunstâncias históricas, determinará uma fragmentação partidária muito mais acentuada, assim como a divisão entre o público e o privado e o fomento da luta das classes a graus desconhecidos há quarenta anos. A bipolarização não vai permitir mobilizar interesses e classes, recursos e criatividade suficientes para idealizar e concretizar o progresso do país nas próximas duas décadas. Depois da pandemia, cujos efeitos não são ainda totalmente previsíveis, mas que serão sempre piores do que se espera, vai ser necessário um enorme esforço de reorganização e de investimento. Assim como de protecção social. E também de paz social. Não de “união nacional”, mas de convergência maioritária coesa e programática. Ora, infelizmente, nada na actualidade parece apontar nesse sentido.

Os dois mais importantes partidos da democracia portuguesa, obviamente o PS e o PSD, preparam-se para um ciclo terrível de divisões internas. Um porque não tem poder, outro porque não o tem suficientemente. Um porque se quer chegar à direita, outro porque quer rumar à esquerda. Mas isso não é importante. O que realmente conta é a percepção generalizada de que nenhum dos dois poderá jamais voltar a ter uma maioria absoluta. Pode acontecer, mas é improvável. O essencial é que os seus eleitores e os seus militantes estão convencidos de que tal não é possível. Assim, as facções internas e os grupos habituais começaram a preparar uma batalha que se anuncia sangrenta e longa. Não necessariamente ou não apenas pelo poder dentro do partido. É muito mais do que isso e muito mais importante: o que está em causa é a união das esquerdas e a união das direitas, a formação de dois blocos irredutíveis, adversários e rivais. Inimigos, mesmo. Tanto à direita como à esquerda, há quem tal não queira. Mas são minorias quase insignificantes.

As divisões dentro dos dois grandes partidos vão ser perigosas. Não parece haver, em qualquer deles, personalidade, equipa ou doutrina à altura de forjar a unidade ou de federar tendências. Além disso, os objectivos de luta não são puramente internos. Dado que são externos e dizem respeito a toda a direita e a toda a esquerda, a luta será renhida e provavelmente acabará em mais um processo de fragmentação, como ainda não houve em Portugal, mas cujos riscos são cada vez maiores.

Perigo de fascismo? Ridículo. Ameaça de comunismo? Risível. Possibilidade de aventuras revolucionárias populistas de esquerda ou direita? Certamente. Mas só terão hipótese de concretização se os dois grandes partidos, PS e PSD, não forem capazes de suster a deriva populista e a fragmentação. O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista nunca governarão Portugal, mas, por causa deles, os dois partidos correm riscos de mutação, deslize, afundamento e descaracterização. É muito pouco provável que qualquer destes partidos tenha uma influência preponderante no governo do país. Mas têm seguramente enorme influência no pensamento e nas políticas do PS e do PSD, caso estes dois partidos não sejam capazes de resistir às suas tentações e aos seus próprios receios e não tenham força suficiente para se afirmar e defender as suas políticas. O Chega, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista, tão diferentes nas suas histórias, tão distintos na sua organização e nas suas doutrinas, poderão ter, no futuro, se os deixarem, uma enorme capacidade de destruição dos dois grandes partidos da democracia portuguesa.

Infelizmente, estes dois grandes partidos não dão sinais de terem percebido o que está em causa, nem de se prepararem para evitar o declínio, a fragmentação e a divisão. No PS e no PSD, há “anjos” convencidos de que a melhor maneira de evitar o Chega, o PCP e o Bloco consiste em trazê-los para a democracia, na convicção de que mudarão. O mais provável, todavia, é que sejam os dois partidos a mudar e a aproximar-se mais dos projectos radicais.

Nenhum dos grandes problemas nacionais do presente se esgota ou resolve com uma política de esquerda ou de direita. O Serviço Nacional de Saúde, o investimento económico, a criação de emprego e a Protecção social não se compadecem com um governo de esquerda ou um governo de direita. Também a reforma da Justiça e a da Educação exigem muito mais do que isso, do que uma política sectária de esquerda ou de direita.

A divisão da política portuguesa em dois blocos de esquerda e direita é a destruição de qualquer hipótese sensata de social-democracia e de socialismo democrático ou de democracia social. E é uma diminuição das hipóteses e da riqueza da democracia liberal.

Público, 21.11.2020

sábado, 14 de novembro de 2020

Grande Angular - Basta de Chega!

 Nunca tal se viu! Um partido, com um só deputado, provoca verdadeiros terramotos na vida política nacional! Ocupa debates parlamentares e canais de televisão, artigos de jornal e comentários de rádio. A vida política e a imprensa ofereceram assim, gratuitamente, o maior investimento em comunicação a que jamais um partido poderia aspirar.

É verdade que se trata de um partido, ou antes, de um deputado com raras qualidades de demagogo e de oportunismo e que usa com mestria uma espécie de vacuidade de pensamento com garantidas consequências epidérmicas e temperamentais. Mas nada justifica tanto barulho. Nada, a não ser os defeitos dos democratas registados e dos políticos consagrados.

Muitos democratas, como alguns do PSD, receiam o Chega e pensam que aceitá-lo é a melhor maneira de o condicionar. Muitos democratas, como alguns do PS, temem-no e pensam que denunciá-lo com veemência, como se ele tivesse votos e exércitos, é suficiente para o limitar. As esquerdas, como algumas do PCP, do Bloco e até do PS, estão convencidas de que denunciar, segregar, banir e eventualmente proibir são as soluções para este problema. Todos, por junto e atacado, consideram o Chega “uma ameaça”. Fracas entidades que assim se sentem em perigo!

É curioso que a maior parte dos que precedem não perceberam que são exactamente esses tratos que permitem que o Chega cresça! Não fosse o acolhimento que os partidos estabelecidos lhe reservam e o Chega estaria hoje reduzido a um grupelho passageiro. Todos, mais ou menos democratas, de esquerda ou de direita, incapazes de ver os seus erros e os seus defeitos, não percebem que são eles próprios, em grande parte, a causa dos Chegas deste mundo. Se quiserem encontrar algumas das verdadeiras causas do Chega, procurem em São Bento.

Realmente, o Chega não é grande coisa. Nem política, nem esteticamente. Nem doutrinária, nem culturalmente. Procurem-se argumentos e reflexão, tente encontrar-se uma doutrina, experimente-se detectar elementos de identidade e de reconhecimento e rapidamente se perceberá o imenso vazio, a inconsequência confrangedora e o comportamento reduzido a tiques previsíveis e a reflexos próprios do grau zero do pensamento.

Então, o que faz com que o Chega exista? Nasce por defeito. Quem faz o Chega? Os defeitos dos outros e os seus próprios.

Os defeitos dos outros são os erros da democracia e dos democratas. O cosmopolitismo exacerbado pela globalização fragmenta os sistemas políticos nacionais. A perda de sentido de identidade desenraíza cidadãos. Para as democracias estabelecidas, especialmente europeias, é quase crime procurar o “seu país” ou a “sua comunidade”. O desprezo pela história transforma os cidadãos em apátridas. Os sistemas políticos desumanizados vivem de artifícios, de encenação e de propaganda que põem em causa qualquer forma de sinceridade. O amor pelo dinheiro e pelo êxito a qualquer preço, próprio da economia, contaminou a política. A desigualdade social e económica crescente é particularmente severa em tempos de crise. A corrupção e o nepotismo desnaturam a democracia. A insuportável arrogância de muitos democratas aliena cidadãos e eleitores. A intolerável superioridade intelectual de tantos políticos mete medo ao cidadão comum. O descontrolo dos movimentos de populações e a impotência política perante as migrações criaram sentimentos de insegurança difíceis de contrariar. O crescente desprezo pelo trabalho e pela dignidade do cidadão na sua comunidade e no seu país reforça o sentimento de alienação. Eis algumas das causas do Chega.

Os defeitos próprios são mais conhecidos. Os ambientes de crise da democracia, da economia ou da sociedade são particularmente propícios ao surgimento de reacções salvadoras e justicialistas. Do clima de incerteza nascem pulsões regeneradoras ou vingativas. A que não faltam preconceitos e erupções irracionais. O Chega comunga desses defeitos todos, sem ter a doutrina, a solidez e a consistência de outros movimentos e grupos afins, uns de esquerda outros de direita. O Chega quer o óbvio automático: arrasar os partidos, limpar o Estado e a Administração Pública, castigar os corruptos, sanear a justiça, dar novo orgulho à nação, demitir os políticos e dar voz ao verdadeiro povo. O Chega bate na tecla do nacionalismo, o mais velho reflexo condicionado para tempos de crise. O Chega procura, em certas formas de racismo e de machismo, os necessários sucedâneos do espírito e da doutrina. Do ponto de vista do pensamento e do programa, o Chega é filho de pais incógnitos.

Dito isto, o Chega tem todo o direito à existência e à sua actividade. Mais uma vez se repete: a democracia é o regime de todos, incluindo os não democratas e os anti-democratas. Erra quem quiser banir o Chega. A livre existência de partidos políticos e movimentos não pode ter barreiras, a não ser as da lei. Esta última só pode punir, castigar ou proibir comportamentos, actos e factos ilegais, ilícitos ou criminosos. Não pode sancionar ideias, palavras, expressões ou pensamentos. Como também erra quem quiser aliar-se ao Chega. Mas essa decisão é política e quem a tomar paga as consequências.

            Como já se percebeu, socialistas e social-democratas renunciam às maiorias absolutas parlamentares de um só partido. Como fogem dos governos de “grande coligação”, procuram, cada um de seu lado, soluções para formar governo. Começam a ganhar consistência as soluções que sugerem a formação de um grande bloco da direita, incluindo o Chega e a IL, enquanto se forma um grande bloco das esquerdas, com o PS, o BE, o PCP, os Verdes, o PAN e não se sabe mais quem.

É o pior que se pode fazer! Não resolve o problema da eficácia do governo. Não dá soluções pragmáticas para a economia. Não encontra recursos para a protecção social. Reconhece a extrema-direita e a extrema-esquerda como forças integradoras da democracia, isto é, do governo. Em vez de evitar o crescimento de extremos não democráticas à direita e à esquerda, é-lhes dado alento para fazer parte dos governos. E o direito de trazer para a política nacional limites aos direitos dos cidadãos, assim como oposição à integração europeia e à política de alianças externas de Portugal.

Este é o problema. O Chega é um pretexto. Para a direita, uma tentativa de voltar a sonhar com o governo. Para a esquerda, é como quem se lava nas águas do Ganges, ou antes, do antifascismo.

Público, 14.11.2020

domingo, 8 de novembro de 2020

Grande Angular - América, América!

Com algumas notáveis excepções, como Tocqueville, Einstein, Kazan, Hitchcock ou Kissinger, os europeus nunca gostaram da América. Ainda menos dos americanos, que odeiam ou desprezam com a mesma intensidade.

Grande parte da direita europeia é ciumenta, não gosta da meritocracia, não preza a liberdade, não tem especial afecto pela tolerância nem pelo igualitarismo e despreza aquilo que considera ser a vulgaridade americana. Essa mesma direita acha que os americanos são boçais, dominadores e ignorantes. Ao lado dos americanos plebeus e sem maneiras, a direita europeia considera-se aristocrática. Democratas ou não, europeus de várias direitas como De Gaulle, Franco e Salazar, detestavam os americanos.

A maior parte da esquerda europeia detesta a América e os americanos. Estes seriam imperialistas, arrogantes, sem sofisticação cultural, barulhentos, racistas e violentos. A maior parte da esquerda europeia detesta o liberalismo em geral, o americano em particular. A esquerda europeia considera-se sofisticada e culta, despreza o que acredita ser a rudeza americana, condena a brutalidade dos americanos e critica asperamente a alegada inclinação para a violência e a pornografia de metade da América e o fanatismo religioso e ignorante de outra metade.

Direita e esquerda europeias não gostam do dinheiro, do liberalismo, da eficácia e do individualismo americanos. Esquerda e direita europeias detestam o facto de terem sido ajudados, defendidos e libertados pelos americanos nas duas grandes guerras. Esquerda e direita europeias adoram e cultivam, em segredo, quase tudo o que condenam publicamente nos americanos.

Ao afastar Donald Trump, líder popular e carismático, presidente dos EUA durante um período de excepcional crescimento da economia e do emprego (sem contar o ano da pandemia) e que conseguiu, na tentativa de reeleição, aumentar em sete milhões de votos os resultados de 2016, os eleitores americanos prestaram insigne serviço ao mundo e às liberdades, quem sabe se à paz. É verdade que sobram problemas enormes, para os Estados Unidos e o mundo, como seria de esperar. Mas o certo é que Trump era um claro obstáculo ao entendimento racional entre Estados e uma ameaça, que agora parece estar removida.

Trump é um desordeiro narcisista, mentiroso, sem escrúpulos, arrogante, machista, violento e paranóico! Certo. Mas metade dos cidadãos americanos votou nele uma vez e repetiu, com vantagem, quatro anos depois. E ninguém parece queixar-se de ter sido enganado. Entre muitos que votaram nele, contam-se milhões de mulheres, trabalhadores, agricultores, negros e hispânicos.

Não há diferenças absolutas entre os eleitorados de Biden e de Trump. Ou antes, há pequenas diferenças (idade, educação, residência, classe social, emprego, trabalho…), duas ou três mais significativas. A maioria dos “não brancos”, dos residentes nas grandes cidades e dos negros e latinos votou Biden. Nada absolutamente distinto, mas o suficiente para separar algumas áreas. Realmente distintos e definitivos são as preferências políticas. Dos que se consideram liberais, 90% votou Biden, só 10% Trump. Dos que se consideram conservadores, 85% votaram Trump e só 15% Biden. Quer isto dizer que a opinião política pesou mais do que as habituais categorias de classe, de idade, de sexo, de educação e outras.

A América pós Trump tem pelo menos tantos problemas quanto tinha antes. A América está, gradualmente, a deixar de mandar no mundo. Por razões internas e externas. Muitos americanos não querem isso. Desejam continuar a mandar, a ter uma voz especial e a ter mais peso do que qualquer outro país. E a verdade é que a América tem a força, o dinheiro, a ciência e a técnica suficientes para querer mandar no mundo e para não passar a ter uma posição subordinada ou igual aos outros. O que não quer dizer que os outros devam aceitar essa hegemonia.

Mandar no mundo tem vantagens. Em importância, respeito dos outros, bem-estar e lucros. É o que faz com que metade dos americanos queiram ter uma “América grande, outra vez” e não queiram perder tempo com o multilateralismo ou a ONU. Mandar no mundo, receber proveitos, ter interesses em todo o planeta e ser receado tem essas vantagens. Metade dos americanos não quer ceder! Trump é igual a metade da América, a esses americanos que querem mandar no mundo.

Nada de grande se faz sem grandes defeitos. Vale a pena recordar a escravatura, o massacre dos Índios, o banditismo e a violência armada que fazem parte da América? Será necessário recordar que o racismo, o machismo e a arrogância encontraram, na América, terrenos férteis? É tudo verdade, tal como o facto de a liberdade, a criação, o mérito, as letras, as artes, as ciências, os museus, as bibliotecas e as universidades terem ali terras acolhedoras e quase ilimitadas oportunidades. Como também é verdade que a justiça encontrou terra eleita, enquanto os grandes combates pela liberdade e pela dignidade das mulheres, das crianças, dos negros e das minorias ali tiveram alfobre e estufa!

O caos e os excessos desta eleição. A violência verbal inexcedível. As ameaças presentes na rua. A divisão radical da América. Os perigos das reacções dos derrotados e o vácuo doutrinário dos vencedores indiciam uma crise americana inédita. A ponto de nos interrogarmos com tristeza. Que é feito do pensamento liberal? Que aconteceu à liderança democrática do mundo? Onde está a tradição cultural do cinema americano, da grande literatura, da mais avançada ciência do mundo? Será que desaparece a capacidade de atrair gente de todo o planeta, emigrantes de todos os países, trabalhadores de todos os continentes? Que é feito da tradição americana de acolhimento de dezenas de milhões de imigrantes e refugiados do mundo inteiro? 

Onde está a tradição dos limites ao poder? Das instituições fortes, independentes e autónomas. Do poder civil. Dos “checks and balances”… Temos todos os motivos para ficar inquietos. A América, cuja decadência se anuncia há décadas, cujo fim da hegemonia se prevê há cinquenta anos, continuará a ser militarmente poderosa, assim como cientifica e economicamente muito forte. Mas tem cada vez menos influência política. Este contraste entre o excesso de poder militar e a falta de influência política pode estar na origem de crises e desastres.

Para onde foi aquele orgulho na independência das instituições que parece estar ser substituído pela sede de conquista partidária? Onde está a terra de esperança que, durante décadas ou séculos, alimentou os sonhos de tantos povos? A América sempre esteve entre Deus e o Diabo. Sempre foi Deus e Diabo.

Público, 8.11.2020

 

 

  

domingo, 1 de novembro de 2020

Grande Angular - O elogio da instabilidade

Se, dentro de um mês, as últimas exigências do PCP forem satisfeitas (e tudo leva a crer que sim), ficará aprovado o orçamento de Estado. Sem maioria, com abstenções estratégicas e despeitados votos contrários. Sem se deixar tentar excessivamente pela chantagem dos defuntos parceiros, o governo cumpriu o seu dever. Mas é pouco. 

É natural que o governo seja impotente e incompetente: a crise é tal que dezenas de outros países se encontram em situação idêntica ou pior. Por isso o futuro é uma entidade incerta, como alguns gostam, mas misteriosa, como muitos receiam. Com o que temos e sabemos, o Governo fez o melhor possível. Mas não é suficiente.

A receita foi simples: fundos europeus, benefícios sociais e habilidades. Serve para um ano. Até pode servir para uma legislatura. Mas não serve para uma economia, nem uma sociedade, muito menos um país. O Governo cumpriu os mínimos. Fez o necessário para sobreviver. Fez o que era preciso para evitar um quase desastre a curto prazo. Cumpriu. Mas não chega.

O Governo fez um orçamento com defeitos. Como não havia melhor, fica este. Como não houve mais, aprovamos este. Não é certo que fosse possível fazer muito mais e muito melhor! Países com mais recursos têm dificuldades semelhantes. Parece que ninguém, à esquerda ou à direita, propôs fazer mais e melhor. Se assim é, ficamos com o que temos. Mas convém recordar que gesso não trata cadeira partida! E penso rápido não cura infecção!

Sabemos que um orçamento não é um plano a prazo. Nem um programa de relançamento da economia. Muito menos um plano de reformas necessárias. Certo. Mas um orçamento pode apontar caminhos. Pode ser claramente a programação anual de um plano mais ambicioso. Pode sugerir uma política de investimento e uma profunda reforma da Administração Pública e da Justiça. Pode dar indicações de reformas da educação, para já não falar do Sistema Nacional de Saúde actualmente sob enorme pressão. Pode dar sinais das suas prioridades relativas ao investimento, privado ou público, interno ou externo, ocidental ou asiático. Não foi esse o caso. Este orçamento parece ser tão rico e ambicioso com um código da estrada. É o que há.

Ninguém, no Parlamento, brilhou por especial competência ou por justa ambição. Todos cumpriram os seus deveres mais curtos, limitaram-se a seguir as regras de trânsito. Perante as iniciativas do Governo, os restantes partidos mostraram que estavam ali para as sobras, na esperança de um desastre futuro. Naquela escuridão parlamentar, a luz bruxuleante do governo distinguiu-se. Foi bom para ele, mas indiferente para os cidadãos, empresários, trabalhadores ou funcionários.

Gerir a crise sanitária com um olho na saúde e outro na política dá isto: descrédito e desconfiança! Nem sequer com um olho na política de saúde ou na política económica. Apenas na política. Na política pura.

Sabemos que todos se esforçam o mais possível e que ninguém tem o monopólio da compaixão ou da solidariedade. É certo e seguro que nos hospitais, nas escolas e nas empresas se sofre e receia, como raramente na vida, ao mesmo tempo que sabemos que muitos dão o que têm e o que não têm para cumprir os seus deveres e cuidar dos outros. E temos consciência de que as autoridades, mesmo dando a impressão de que dominam os factos e controlam os cenários, estão sobretudo desnorteadas com a crise e seus desenvolvimentos. O que dá esta sensação temível de que as autoridades correm atrás dos acontecimentos e se limitam a prever o passado.

Por outro lado, a obsessão com a imagem e a disposição para vender a alma a benefício de votos nas sondagens e de “gostos” nas redes fazem com que tantas decisões sejam e pareçam inconcebíveis. A Páscoa, o 25 de Abril, o 1 de Maio, Fátima, o Avante, Fado, a Fórmula 1, o Dia de Finados, o Dia de Todos os Santos e até o Surf na Nazaré: eis um percurso inesquecível, só comparável ao das negociações orçamentais com todos os partidos à procura do momento de ruptura proveitosa, com a vontade obsessiva de não chegar a acordo com nenhum!

Sem crise, estaríamos agora a viver momentos difíceis de recuperação, de relançamento e provavelmente de instabilidade política. Com a crise sanitária, rapidamente degenerada em crise social e económica, a instabilidade é uma ameaça fatal. Que nos pode retirar meios e com a qual podemos perder tempo precioso. Sem maioria parlamentar, sem contrato de governo, sem doutrina, sem bloco social de apoio, sem capacidade de congregar, sem autoridade democrática fundamentada, sem esforço colectivo e sem programa, não é possível. Parece que ninguém pretende ceder a fim de obter as melhores condições para o país. O governo deseja que o seu poder, mesmo instável, seja o suficiente para destroçar as oposições. Estas limitam-se a esperar pela desgraça de todos e pelo desastre do governo.

Governar à bolina é sempre governar à deriva. Sobreviver com acordos pontuais. Governar com habilidade. Com manha e expedientes. Em vez de governar com programa e doutrina. E com maioria sólida e estável. O PS que sempre desejou, sem confessar, ter uma maioria, mas que cultiva o mito dos governos minoritários de acordos pontuais, tem culpas nesta cultura da instabilidade. Mas os outros partidos também. Os seus passos são sempre cálculos muito elaborados: que ganho eu com isso? O que interessa mais é o bom governo ou o desastre dos rivais? Como liquidar um pequeno partido? Como influenciar um grande partido? Todos os partidos da oposição partilham o mesmo sonho: o do desastre do governo, o famigerado “quanto pior, melhor”!

O que será preciso para que, em Portugal, as ideias de acordo de legislatura, de contrato escrito e de pacto entre partidos não sejam excomungadas e banidas dos costumes? O que é necessário para que um entendimento temporário entre rivais possa criar uma maioria parlamentar capaz de tratar de situações excepcionalmente complexas e de crises particularmente graves? É inevitável que um esforço de convergência suscite imediatamente os epítetos de união nacional, de autoritarismo ou de bloco central de corrupção? Noutros países, em outros locais, em todos os tempos, há experiências de coligação, de maioria articulada e de convergência que brilharam pela eficácia e pelo contributo que deram ao país. Em Portugal, são condenados. Para os políticos portugueses, a instabilidade é uma virtude. Pobre país!

Público, 1.11.2020