sábado, 28 de junho de 2025

Grande Angular - Depressa e mal

 Há políticos assim: consideram que o maior valor do governo é fazer, fazer depressa, decidir, decidir já, não se arrastar em discussões, estudos e preparação. “Nós fazemos”, “somos fazedores”, gostam de dizer. E comparam-se, não com quem prepara bem as decisões, mas com quem nada faz e se perde em conversas intermináveis. O que facilita, evidentemente. Comparar com quem faz pouco e mal tem o condão de encandear os pobres de espírito. Com esta tosca inspiração, o novo governo começou a fazer. Entre as primeiras decisões anunciadas, contam-se medidas relativas à defesa, à imigração e à nacionalidade ou naturalização. Preparadas a correr, mal elaboradas e preocupadas com a aparência. Destinadas a espantar a opinião, a incomodar o PS e a calar o Chega.

 

Para a defesa, são anunciados aumentos de despesa. Não se diz porquê, nem para quê, sobretudo agora que a guerra e a paz estão em causa. Diz-se simplesmente que se alcançarão os 3.5% do PIB daqui a pouco e 5% daqui a dez anos. Para já, são 2%, com um aumento de pouco mais de mil milhões de euros, promessa feita há anos e nunca cumprida. O destino é simples: “equipamento, recursos humanos e reforço de infra-estruturas”. Percebe-se imediatamente que nada estava preparado. E que estes grandes rótulos são deliberadamente vagos. E servem para tudo. Diz-se quanto se gasta, depois se verá em quê. Não se diz o que é prioritário. Nem o que é necessário para o país. Nem os sectores considerados estratégicos. Por exemplo, servem os aumentos para o mar (Armada, marinheiros, fuzileiros, submarinos, equipamento…), para a Força Aérea, para corpos especiais de intervenção multilateral ou para alargar o recrutamento? Destinam-se à componente nacional da defesa ou para o contributo internacional e atlântico? E mais dúvidas haverá.

 

Não será este o momento adequado a uma reflexão que actualize o Conceito estratégico nacional, assim como a obsoleta Lei de Programação Militar? A nova política americana, as fracturas dentro da NATO e da UE e as guerras no Próximo Oriente e na Ucrânia não são motivos suficientes para que os organismos e instituições dedicados à defesa nacional se empenhem em debater e redefinir, antes de fazer despesas? Parlamento (e seus principais partidos), Presidente da República, Conselho de Estado, Conselhos Superiores Militar e de Defesa, além de outras instituições, deveriam já estar mobilizados para debater, empenhados em chegar a conclusões sérias, que o tempo é curto, as necessidades grandes e a urgência muita. E as matérias politicamente sérias e complexas. Apesar de ser verdade, não basta dizer que é a NATO e os EUA que mandam.

 

O que se pretende gastar é tanto que justifica o tempo necessário para bem decidir. O orçamento é tão importante que exige convergência dos principais responsáveis e representantes. Portugal não tem dinheiro para tudo. Nem sequer tem muito dinheiro. Gastar um pouco em tudo significa que não tem prioridades nem conceito. Prometer gastar sem saber em quê é mostrar que não existe política nem objectivos. Prometer gastar na rotina, como dantes, equivale a ter a certeza de que não se quer aproveitar a oportunidade para rever o nosso esforço nacional. Por outras palavras, significa que o governo entende que as opções de defesa não são de política geral, não dizem respeito ao país, nem traduzem opções importantes para o nosso futuro. Parece que estas decisões têm um objectivo central: o novo governo quer agradar a alguns dos seus parceiros e à NATO, quer mostrar-se como bom aluno. Assim, transforma a defesa nacional num assunto de contabilidade e num negócio de esquina. A defesa nacional merece mais. O nosso país também.

 

Também a nacionalidade, a naturalização e a imigração foram objecto da iniciativa apressada do governo. Os motivos parecem evidentes: receio do Chega, previsão de comparações com Trump e a reunião da NATO. Também podemos pensar no reflexo pacóvio de tentar sensibilizar a população com temas “nacionais”, defesa e nacionalidade! Certo é que foram anunciadas regras novas para a legalização de imigrantes, a naturalização e o agrupamento de famílias. As propostas são muitas e variadas, umas conhecidas, outras inéditas. Umas sensatas, outras absurdas. Em certos casos, estão mesmo em causa a constitucionalidade, a justiça e a moral.

 

Uma nova regra em especial merece discussão: a perda de nacionalidade como castigo para certos crimes cometidos por naturalizados. Pensa-se no que Trump faz a muitos estrangeiros, designadamente Açorianos e Madeirenses. A questão merece discussão séria, juízo moral e jurídico, reflexão cultural e política. A nacionalidade não pode ser moeda de troca, não é aval de comércio ou licença de caça, não se pode dar e retirar conforme os comportamentos das pessoas. Admitem-se condições severas para a obtenção de autorização de residência e para a obtenção de nacionalidade. Usar a nacionalidade como castigo não é aceitável. 

 

Outros aspectos merecem reflexão. Usar critérios culturais para obtenção de autorizações de residência e nacionalidade é muito discutível. Uns, com licenciatura e doutoramento, currículo académico e científico e estrelato em futebol ou música, teriam aberta a via rápida, seriam desejados. Outros, simples trabalhadores, teriam a vida difícil, os prazos longos e as concessões incertas. Nesta área, teríamos ainda a novidade das provas de cultura, História de Portugal, democracia e cidadania. Seria exigido o conhecimento da língua, o que parece aceitável. Mas a cultura portuguesa? Provas de cultura e história? Podiam começar pelos portugueses. E também podiam perceber o que se faz aos portugueses, em iguais circunstâncias, no estrangeiro. Assim, o governo prepara-se para criar dois sistemas de legalização, de reagrupamento e de naturalização: um para as elites e outro para os indiferenciados. Isto é, dois sistemas de direitos. O que não é aceitável. Moral, jurídica e politicamente inaceitável.

 

Mas o pior deste procedimento é a pressa, a falta de preparação e a ausência de vontade de envolver uma boa parte da população, um grande número de instituições e vários partidos. A defesa e a nacionalidade são coisas sérias. Com elas não se brinca. Nem se faz política barata.

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Público, 28.6.2025

sábado, 21 de junho de 2025

Grande Angular - A liberdade tem geografia

Por António Barreto

questão demográfica ameaça a Europa. E a América. E outros continentes. Até a China, parece. Já conhecemos alguns temas centrais. O envelhecimento da população enfraquece as economias, destrói o vigor das sociedades, sobrecarrega os serviços sociais e de saúde e acelera o declínio dos países. A redução drástica da natalidade agrava o envelhecimento, faz da população um recurso raro, entristece as sociedades e torna impossível a actividade económica. A crescente proporção de idosos diminui a criatividade, aumenta o conservadorismo e confirma uma espécie de passividade das populações. Sem jovens e com velhos, as sociedades estão condenadas à decadência.

 

É verdade que o aumento da esperança de vida é um triunfo da humanidade, da Europa e de Portugal. Quem nasceu em 1940 podia esperar viver 50 anos. Isso mesmo, 50 anos. Hoje, essa esperança é de 82. Qualquer que seja o juízo feito sobre a qualidade ou os problemas da sociedade actual, basta este facto para se ter uma noção do progresso. Para isso, contribuíram a medicina, a água potável, a urbanização, os serviços de saúde e educação, o progresso na alimentação e outros factores. Só a assistência materna é responsável por uma parte muito importante deste progresso. Tal como a água potável e as vacinas.

 

Não se imagina que o envelhecimento seja pior para as populações. Mas é verdade que as suas consequências podem ser gravosas para todos. É infeliz que muitas sociedades não saibam ou não possam organizar-se para viver com tantos idosos. Os quais, bem vistas as coisas, são tão gente quanto os mais novos. Todavia, a maior parte dos países não sabe ou não gosta de viver com idosos. O que muitos pensam deles, mas nem sempre dizem, é tremendo, de uma crueldade sem par: fazem pouco, dão muito trabalho, estão sempre doentes, é precioso cuidar deles, custam caro e são rabugentos. Já pouco dão e muito pedem.

 

Retomemos o raciocínio. Sociedades envelhecidas, sem vitalidade, sem jovens, pedem imigrantes. Em quaisquer condições. Legais ou não. A ganhar bem ou misérias. Com e sem contrato. Com e sem família. Com e sem acesso aos serviços de saúde e de educação. Uns são bem tratados, outros nem por isso. Uns são facilmente integrados, outros vivem sempre em guetos por eles próprios criados. Entre os que acolhem, uns querem imigrantes porque lhes dá jeito e lucro, outros porque acham que estão a fazer algo pela humanidade. Uns tratam os imigrantes como animais trabalhadores, outros como anjos intocáveis.

 

Há muita gente na esquerda que quer imigrantes, talvez tanta quanto a que não quer. Igualmente à direita: os que acolhem e integram os imigrantes são talvez tantos quantos os que os detestam e culpam de todas as malfeitorias. As realidades mais básicas apenas são aceites por poucos. Entre os imigrantes, a maioria é de pessoas como nós. Entre os residentes nacionais, a maior parte é de gente como eles. Mas há, infelizmente, entre grupos de direita e de esquerda, quem queira fazer da imigração terreno de batalha: quem exagere no racismo e na exploração, como há quem radicalize o anti-racismo e a luta de classes. A discussão e a luta são ferozes. Se há tema dado a preconceitos e à irracionalidade, é este. E é provável, é mesmo certo que, além de discussão, haja confrontos, turbulência e conflito. 

 

A crise na demografia, na natalidade e na economia é tal que os países desenvolvidos pouco podem fazer sem imigrantes. A crise da fome, da miséria, do atraso, da corrupção e da quase permanente ditadura é de tal modo inerente aos países não desenvolvidos e não democráticos que os que fogem para imigrar fazem-no de qualquer modo. Há total descontrolo nuns países e nos outros. Há crescente dificuldade de integração. Nos países de chegada, culpam-se os imigrantes de muitos males. Nos países de partida, empurram-se os imigrantes e trafica-se com o trabalho.

 

Nas ditaduras e nos países autoritários, estes problemas não existem: não há imigração. Nestes países, imigrantes são os candidatos a ir embora. Mas é este, de qualquer maneira, um dos temas mais difíceis para os próximos anos nos países mais desenvolvidos e sobretudo nos países democráticos. Já se percebeu que, sem controlo de legalidade e sem integração, o conflito veio para ficar. E para aumentar.

 

Uma das dificuldades deste tema reside no facto de estarmos perante uma contradição fundamental dos tempos actuais. Por um lado, a globalização. Por outro, a nacionalidade. Com a primeira, pensa-se em cidadãos do mundo, sem passado nem cultura própria, todos iguais, sem fidelidades nem identidades. Isto, em mundo aberto ao comércio, às viagens e à moradia indiferente localizada em qualquer sítio. Com a segunda, pensa-se nas identidades nacionais, nas fidelidades que permitem que culturas se construam. Nestas últimas, não é difícil pensar na independência nacional que só se faz com fronteiras. Na autonomia que só se garante com leis próprias. Na liberdade que exige quem a defenda e desenvolva. Na democracia, que tem uma geografia. A ponto de se acreditar em que não há liberdade, nem democracia, sem identidade, sem cultura própria e sem independência.

 

A ideia de que existe e deve ser favorecida a globalização política, humana e social é própria de quem aspira a governar o mundo sem limites e sem contraditório. Pensar que os homens e as mulheres de qualquer país são iguais a todos os outros em identidades, direitos, deveres, passados, memórias e aspirações ou é ingénuo ou é disfarce para aspiração autoritária. Os melhores limites e obstáculos ao totalitarismo são as identidades nacionais. As instituições civis. As independências nacionais. As fronteiras onde devem estar. As culturas e as memórias de cada um. As tradições e as crenças. A capacidade de conhecer em quem se vota e de entender quem nos representa.

 

As aventuras nacionalistas acabaram quase sempre em ditadura ou guerra. E será esse certamente o futuro, se houver novas tentativas desse género. Também a dissolução das identidades e das culturas é caminho feito para o totalitarismo. Só as sociedades capazes de defender as suas instituições e as suas liberdades são capazes de receber e integrar imigrantes. Mais ou menos controlo, mais ou menos pessoas a bater à porta não são as questões essenciais. O mais decisivo é a força da comunidade capaz de proteger as suas instituições. Difícil é o ponto de equilíbrio entre a globalização e a identidade. Uma sem outra é sempre contra a liberdade.

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Público, 21.6.2025

sábado, 14 de junho de 2025

Grande Angular - Servir o povo

 A expressão em título tem vida longa e significado variado. De Mao Tsé-Tung a Mário Soares, de partidos marxistas latino-americanos, asiáticos e escandinavos a radicais italianos, muitos foram os que utilizaram esta expressão como lema e bandeira, identidade e profissão de fé. Por vezes, por timidez semântica, a expressão é adaptada e transformada em Servir os portugueses ou Servir Portugal. Ou Servir o País, na versão mais laica. E pode bem dizer-se que, apesar do lirismo ingénuo e mau grado o cinismo provável, a verdade é que é uma bela expressão. Servir o Povo! É difícil encontrar desígnio mais nobre. Por isso, tantos políticos, militares, sacerdotes e intelectuais recorrem a este lema.

 

Modernamente, uma das melhores maneiras de realizar esse desígnio, será certamente a de organizar e manter vivos os serviços públicos. Estes são de toda a espécie, da saúde à educação, dos transportes à energia, da água corrente às telecomunicações, da assistência jurídica à informação e a tantas outras áreas de actividade. Organizar serviços públicos e mantê-los em funcionamento, eis a obrigação das entidades públicas. Ter direito é uma coisa. Faz parte do catálogo constitucional. Formalmente, entre nós, o direito está generosamente definido. Pior é a sua concretização. O acesso à saúde, por exemplo, está contrariado pela mediocridade dos serviços. O acesso à educação também está condicionado pela falta de qualidade dos serviços de instrução e formação. O direito à informação está tantas vezes limitado pela ausência de transparência. O direito a uma velhice digna também pode estar em causa por serviços medíocres. Em poucas palavras, os serviços públicos, a sua qualidade, a sua eficiência e a sua humanidade são condição para respeitar os direitos dos cidadãos. São meio essencial para servir o povo.

 

É neste domínio que o Estado português tem faltado e a situação se agrava dia após dia. É aqui que a política tem falhado. É no domínio dos serviços que a democracia mais tem desapontado os cidadãos. É por causa deste défice crescente que estes mais descrêem da democracia e dos democratas. É nestas condições que a abstenção política e o desinteresse são enormes. Todos os dias, a democracia se perde nas filas de espera, nos quilómetros de maus transportes, nos casos de justiça adiados, nos doentes desacompanhados, nos idosos desprotegidos, nos telefonemas sem resposta, nos meses e anos à espera de cirurgia, consulta ou exame.

 

Nos transportes públicos, dos autocarros aos eléctricos e dos comboios aos metropolitanos, os atrasos, a insuficiência, a miséria, os encontrões, as enchentes, o desconforto, a falta de higiene, a chuva, o calor e a insegurança são crescentes. Quem dirige e quem ordena não sabe o que é o drama quotidiano de milhões de pessoas às horas de ponta, nos longos percursos para o trabalho e para casa e nas idas às escolas com as crianças. As duas a três horas de transporte público por dia deveriam obrigar qualquer autarca ou político a ir ver e a parar para pensar. 

 

Nos serviços do Estado, nas escolas, na segurança social, nos hospitais e nos centros de saúde, as horas de espera em fila, o incómodo e o desconforto de quem tem de esperar são dos factos mais opressivos da nossa sociedade. Em vários serviços, é necessário sofrer longas esperas, desde as primeiras horas da madrugada, não para ser atendido, não para tratar, mas sim para obter uma senha que dará, ou não, direito a ser recebido umas horas ou uns dias depois. Ou tirar um “ticket” que pode negociar.

 

Os serviços de imigração são belos retratos do modo como tratamos dos outros e de nós próprios. As filas de desespero e opressão, as noites de frio e de desconforto, a violência de tantas dessas situações, o aproveitamento da pobreza e da necessidade dos outros, fazem parte do nosso pior retrato.

 

Os chamados “serviços públicos” (como se os outros também não fossem…) de água, electricidade, gás, telefone e esgoto, além de vagarosos e de tão fraca qualidade em tantos locais do país, nos centros como nas periferias, comportam-se diante dos cidadãos da maneira mais déspota que se imagina. Mudam os preços sem aviso. Multiplicam-se em documentos incompreensíveis a fim de se poder defender em tribunal. Exploram os consumidores, sobretudo os mais fracos e sem meios de defesa, com desplante e soberba. 

 

Na segurança social e nos serviços sociais de toda a espécie, sobretudo os que se ocupam dos doentes e dos idosos, as filas de espera, o silêncio, os telefones mudos, os “sites” paralisados e as tenebrosas respostas gravadas com que milhões, sem esperança, são atendidos, resultam da falta de humanidade de serviços que dela deveriam fazer a sua marca principal. Parece só não haver maus tratos e má resposta nos serviços inexistentes de apoio aos idosos, aos doentes terminais, aos inválidos, aos deficientes e aos doentes crónicos.

 

Na justiça, que também pode ser considerada serviço público, são proverbiais os adiamentos, as deslocações inúteis, as esperas e as prescrições por falta de despacho. É um dos sectores da vida social onde pior se trata o cidadão, com destempero e soberba, com distância e secura, sem desculpa nem justificação. 

 

A vida política e a administração pública têm seguido uma evolução desastrada. Contentam-se com a formulação de ideais e de leis generosas, com a elaboração de planos e estratégias, com o recrutamento de funcionários, com o aumento dos orçamentos, com a capacidade eleitoral e demagógica de tais realizações, mas não prestam atenção à qualidade dos serviços, à vida de pessoas e famílias, às necessidades especiais de tanta gente e aos mais desfavorecidos. 

 

Que se passou, que se tem passado, entre nós, nas últimas décadas? Criaram-se serviços de toda a espécie. Contratou-se pessoal. Compraram-se edifícios, computadores e equipamento. Fizeram-se leis e regulamentos. Mas foram vários os governos, várias as administrações, vários os partidos (sobretudo o PS e o PSD) que descuidaram, que se revelaram desleixados, que não se importaram, que se satisfizeram com a existência formal e burocrática das leis e das instituições. Mas a verdade é que os serviços de saúde, de educação, de idosos, de transporte, de segurança social, de protecção e segurança, todos esses serviços públicos estão em dificuldade e em declínio. Os governos não souberam manter a atenção, prever a demografia, cuidar das consequências do turismo e da imigração, prevenir a emigração, orientar o crescimento urbano e cuidar dos transportes. Quem assim trata os serviços públicos não serve o povo.

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Público, 14.6.2025

sábado, 7 de junho de 2025

Grande Angular - O Albergue espanhol

 É uma antiga expressão, uma fábula, uma lenda e um mito: o “Albergue espanhol” é o local para onde se leva o que se quer e onde só se come o que se traz. O significado actual é moderadamente crítico ou pejorativo: qualquer coisa ou sítio onde há de tudo, pessoas, comidas, ideias e políticas, pode ser tratado de albergue espanhol. Com a sensação de que não há escolha nem critério, está tudo misturado, cada um leva o que tem e quer. Diz-se com frequência dos programas eleitorais ou de governo: está lá tudo! A propósito da “Reforma do Estado”, pérola prioritária da tomada de posse do governo, a invocação deste albergue pode justificar-se, é o que veremos nos próximos dias. Ou já há muito trabalho feito ou corremos o risco de estarmos diante de uma miragem. É o que saberemos em breve. É o que deveríamos ver nos próximos debates parlamentares sobre o programa de governo.

 

É também uma velha ideia, um ideal antigo e uma promessa segura: a reforma administrativa, a reforma do Estado e reforma da Administração Pública são três designações conhecidas e correntes. Desde Marcelo Caetano que a expressão ganhou foros de política e de utilização formal. Desde o século XIX, aliás, que a ideia está no ar. Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Costa Cabral e outros deixaram os seus nomes ligados ao tema. Depois do 25 de Abril, foram poucos os governos que não incluíram a Reforma do Estado e da Administração Pública como prioridade, sinal distintivo, garantia de renovação e de mudança. Por vezes, tratava-se só da Administração e dos serviços, outras vezes era a descentralização. Frequentemente, era de Regionalização que se falava.

 

O último governo adoptou a tradição. A reforma do Estado é uma prioridade. A prioridade. Segundo as suas palavras, é sobretudo de burocracia que se trata. Mas rapidamente se lêem alusões aos direitos do cidadão, às liberdades públicas e ao progresso económico. Tudo leva a crer que seja, no seu espírito, mais do que eficácia e prontidão. Mais do que “simplex”, talvez. Mas não é claro.

 

Esta “reforma do Estado” destina-se, o que já não seria pouco, a alterar os procedimentos quotidianos dos serviços, a transparência, a eficácia, a clarificação de competências e o esclarecimento de funções? Ou pretende-se realmente alterar os poderes e os direitos dos cidadãos perante o Estado? Será que se deseja mudar o essencial das competências das freguesias e dos municípios? Ou procura-se mesmo realizar finalmente ou afastar definitivamente o programa de regionalização que continua a encantar ou ensombrar tantos portugueses?

 

O Serviço Nacional de Saúde faz parte da reforma do Estado? E o sistema público de Educação? A segurança social? A Justiça? A polícia? A segurança e a defesa? Esta breve enumeração já basta para mostrar os equívocos criados. Os poderes das autarquias, o número de municípios e de freguesias e as famosas e famigeradas regiões fazem parte do que este governo entende por reforma do Estado? E a Administração Pública, que evidentemente é peça central da reforma do Estado, a que título será olhada: o da reorganização dos serviços, das direcções gerais, dos institutos e das empresas públicas ou municipais? Ou da relação de tudo isso com os cidadãos, os direitos destes, as suas capacidades de auto-organização? De que estamos a falar, de uma “Reforma da Administração” ou de uma “Reforma do Estado”?

 

Uma reforma do Estado, qualquer que seja a sua versão, desde a mudança da burocracia até à alteração das estruturas e dos fundamentos do Estado moderno, exige estudo prévio, uma espécie de “Livro branco”, capaz de aliar o pensamento ao conhecimento e a informação ao envolvimento dos interessados. Um esforço desta dimensão, qualquer que seja o modelo adoptado e o fim explícito, pede participação e colaboração de quem sabe e a quem se destina. Um conselho político, social, científico ou consultivo teria papel decisivo. A participação de associações e instituições, sejam as universidades e as associações profissionais, sejam as empresas e os sindicatos, é indispensável. A personalidade e a competência dos novos ministros mais interessados neste tema (Maria Lúcia Amaral e Gonçalo Matias) são garantias da seriedade de propósitos. Mas o tema é mais vasto do que a personalidade de dois ministros.

 

Será que todo o governo está realmente empenhado nesta reforma? Incluindo e a começar pelo Primeiro ministro? Será que o partido de governo está sinceramente envolvido? O Presidente da República foi devidamente informado? Já existe algo que se pareça com um plano, um projecto, um roteiro ou um programa com objectivos e datas? Está previsto o estímulo a um grande debate público?

 

Podemos supor que se trata de uma reforma do Estado de grande amplitude. Não total, mas de grande extensão. Ocorrerá a alguém que é possível fazer o que quer que seja sem maioria parlamentar? Ou até mesmo com uma maioria que envolva algum consenso com outras forças de oposição? Alguém pensará que é possível tocar nos poderes das autarquias locais e das regiões administrativas sem uma folgada maioria política? Ou tratar-se-á de grande ilusão e de grandiloquente plano destinado a demonstrar a impossibilidade de governar por causa do mau comportamento da oposição? Alguém pensou seriamente em que um governo minoritário pode levar a cabo uma “Reforma do Estado”? Ou tão só uma reforma da Administração Pública? 

 

O facto de o governo afirmar que pretende realizar tão importante e tão decisiva reforma, sabendo que é um governo minoritário, sugere as piores reacções de incredulidade e de desconfiança. Nenhum dos grandes partidos de oposição, Chega ou PS, estará disponível para um tal esforço e para uma tarefa desta dimensão, sabendo que o espírito, a ideia, os objectivos e os louros serão todos do governo minoritário. Anunciar que pretende fazer o que já sabe ser impossível em condições de clara minoria é de mau agoiro. A fazer-nos pensar que o governo já cometeu o seu primeiro erro: o de pensar que os cidadãos são estúpidos.

 

Há outras hipóteses de explicação para este gesto. Primeira: a crença de que, à força de ser derrubado, o partido acabará por ter a tão ambicionada maioria parlamentar. Segunda: a convicção de que o Partido Socialista está tão fraco que fará tudo o que se lhe pede, incluindo o suicídio. Terceira: a possibilidade de o governo justificar com a “reforma do Estado” a sua enorme dificuldade em tratar da saúde e da Justiça. Em qualquer caso, é fraca a ambição.

Público, 7.6.2025

sábado, 31 de maio de 2025

Grande Angular - Temos governo

 Até quando? Há vários governos possíveis. Basta fazer as contas. PSD com Chega. PSD com Chega e IL; PSD com PS; PSD com PS e IL. Estes são os maioritários possíveis. Não necessariamente prováveis. Depois, há os impossíveis, também maioritários: dos três grandes partidos, à maneira de “governo nacional”, aos enfeitados com acrescentos de esquerda ou direita. Mas há ainda o minoritário, o mais provável, nas actuais circunstâncias, do PSD. O governo minoritário é erro de palmatória. Mas vai ser muito difícil evitá-lo.

 

O destino de um governo minoritário é sempre o mesmo: fazer coisas boas para crescer o mais possível até chegarem as eleições antecipadas, inevitáveis como as estações do ano. Nesse sentido, a formação deste governo, agora anunciada com a indigitação do Primeiro-ministro, terá como missão exactamente essa: distribuir, agradar e, dentro de um ano ou pouco mais, chamar novas eleições. A não ser que um dos partidos de oposição entenda manter-se assim durante vários anos e deixar governar a minoria. Isto faz com que o governo minoritário, qualquer que ele seja, será sempre provisório, à espera da primeira oportunidade para recomeçar a dança eleitoral. É possível que haja governos minoritários “bons”, isto é, que façam obra e que acudam ao mais urgente. É possível. Já aconteceu. Mas têm o destino marcado. Vivem sob pressão e chantagem. Acabam cedo ou mal. Caem ou são derrubados. Têm como principal missão a de serem reeleitos e aumentarem a votação. Raramente conseguem tal desejo. Mas quase nunca governam de modo a deixar marcas e projectos.

 

Que diabo aconteceu em Portugal, que bicho mordeu aos portugueses, que têm uma fatal inclinação para governos minoritários? É uma doença infantil da democracia, que faz da política um jogo complexo das mentes brilhantes. Ou um puzzle lúdico próprio de iluminados. O jogo político é mais importante do que governar bem, ser eficiente e estar atento. Merece mais esforço do que lutar contra as desigualdades, combater a injustiça e diminuir a ignorância. Exige mais acção do que gerir bons serviços públicos, criar riqueza e promover a ciência. É uma arte complexa, com pós-graduação em minas e armadilhas, doutoramento em coreografia e mestrado em moeda falsa.

 

“Ganhar eleições” é uma expressão simples, mas traiçoeira. Entre nós, quer simplesmente dizer “ter mais votos”. “Vir em primeiro lugar” é outra maneira de o dizer. Por outras palavras, governa quem ganha eleições. É o princípio de base da democracia. O problema é que essa compreensão é perversa. Ganhar eleições pode não querer dizer governar ou formar governo, dado que este tem, depois, de ter a maioria no parlamento. Já tivemos disso. Pode até acontecer que o segundo partido consiga, no Parlamento, ter mais votos, seja para chumbar o primeiro, seja para formar governo com aliados. Também já tivemos disso. Na verdade, é esta a noção mais interessante: ganha eleições quem tem mais votos ou suficientes para formar governo e aprovar leis. Sozinho ou acompanhado.

 

Ainda não estavam contados, nas últimas eleições, todos os votos e já os analistas e activistas faziam contas, sempre com objectivos em mente: como garantir um governo minoritário? Como fazer tropeçar os outros partidos? Como enganar os rivais? A ideia abstrusa de governo minoritário está tão profundamente enraizada que já faz parte da gíria garantir que um governo maioritário é negativo, que uma maioria parlamentar é condenável e que essas são soluções que promovem o autoritarismo.

 

Evidentemente, um dirigente partidário quer a maioria para si e para o seu partido. Desde que seja só sua. Condena a dos outros, festeja a sua. Mas tem de ser sozinha. Isto é, nem pensar em alianças pré-eleitorais (a não ser para criar ilusões, como a AD ou a CDU), nem em coligações parlamentares pós-eleitorais. O partido mais votado que pretende uma coligação de governo dá um sinal de fraqueza. Os partidos menos votados que sugerem coligações dão “parte de fracos”.

 

Que pretende o governo minoritário do PSD? Salvar Portugal, desenvolver o país, melhorar a igualdade, dar oportunidades a todos e aos jovens em especial e realizar grandes projectos de futuro. Isto é o que diz. Banalidade no estado puro. Mas não perde tempo a preparar os instrumentos, as alianças, os acordos e as maiorias parlamentares necessárias. Vencidas umas eleições, o partido que as ganhou (com minoria parlamentar) nem pensa dois segundos na necessidade de ser maioritário, de ter apoio parlamentar durável e coerente e de efectuar uma aliança que lhe dê os meios necessários para realizar os seus maravilhosos planos. Não. O que é preciso é tomar posse, nomear, gastar e distribuir. 

 

Tudo o que precede alimenta a lenda do governo minoritário. Mais a obsessão em não associar outros partidos ao governo. Mas hoje, há também outros argumentos que se pretendem sofisticados. Fazer alianças ou coligações e construir maiorias parlamentares duráveis são actos negativos e prejudiciais. Nem se percebe muito bem porquê, mas é a realidade. Hoje, ganhar as eleições é sinónimo de ter mais votos. Mas deveria ser formar governo aceite pelo Parlamento. A não necessidade de aprovar o governo é uma das maiores perversões do sistema e da cultura política nacional.

 

Nos dias que correm, há ameaças no ar. As eleições não deram indiscutível vencedor. Não forjaram maioria. As presidenciais que se avizinham já provocam medo. As crises internacionais também. Por isso há fantasmas. Receio da fragmentação política e partidária? Medo da instabilidade? Pavor de novas eleições? Temor do crescimento do Chega e de outros movimentos radicais? Tudo isso se combate de várias maneiras, mas uma é, em todo o caso, indispensável: o governo de maioria parlamentar. A acção persistente que cria emprego. A estabilidade que permite o trabalho continuado. A serenidade indispensável para as mais ousadas reformas, como a da justiça. E outras virtudes que só se conseguem com maioria parlamentar, com tempo e com a “força tranquila”.

 

Os governos minoritários, tão do agrado dos portugueses, são as condições da ineficácia e da impotência. Proponha o PSD uma coligação ao PS e verá o valor dessa pedagogia. Aceite o PS um convite do PSD para formar governo e verá o serviço prestado ao país. Deixem o PSD e o PS continuar a vegetar nos pântanos da minoria e ver-se-á o mal que fazem ao país. Verão também o impulso que darão ao Chega para continuar a sua marcha triunfal.

 

Temos governo. A sério?

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Público, 31.5.2025

sábado, 24 de maio de 2025

Grande Angular - Uma boa revisão é útil e necessária

 Em resultado das eleições, a revisão da Constituição transformou-se naturalmente em assunto importante e imediato. As maiorias possíveis são diferentes de tudo o que se conhecia do passado. Há hoje uma maioria de direita que dispensa os socialistas. Há também uma maioria do centro que dispensa o Chega. Isto faz com que o assunto se tenha tornado interessante, quase picante. Mas a discussão em curso limita-se aos aspectos anedóticos, às lutas de capoeira, à coreografia e ao adjectivo. O que sobressai é saber “com quem” e “quem se quer diminuir”. O que anima a conversa é saber “contra quem se faz a revisão”. É pena. A discussão deveria começar com o “quê”, antes do “com quem”. A revisão deveria fazer-se a favor dos cidadãos e do país.

 

A Constituição é absurdamente mal escrita, inconstante, incoerente, contraditória, exuberantemente ignorante, inutilmente complexa, demasiado longa… Todavia, foi um milagre. E salvou a democracia. Não é pouco.

 

Vivemos com tantas coisas estúpidas que podemos certamente viver mais uns anos com esta Constituição. Traduz concepções paternalistas, directivas, autoritárias e elitistas das sociedades, dos cidadãos, dos poderes e da democracia, mas a verdade é que nos ajudou ou permitiu viver até hoje. Nem sempre bem, muitas vezes mal, mas em paz. Já não é pouco.

 

Discute-se agora a nova hipótese de revisão. Não pelos bons motivos. Uns porque querem mandar ou matar o regime. Outros porque pretendem defender o estado actual. Uns porque desejam mostrar que ganharam as eleições. Outros porque não querem reconhecer que as perderam. Mas a verdade é que há boas razões para o fazer. Há muitos anos que essas razões existem.

 

Há matérias que necessitam mesmo de revisão constitucional. Ou para fazer melhor do que lá está, ou para permitir evolução. Toda a matéria relativa à Administração Pública, à descentralização, aos órgãos regionais e à regionalização (ou região administrativa) deveria ser revista e actualizada. E sobretudo dever-se-ia permitir que as sucessivas gerações de cidadãos tenham o direito e a competência para decidir gradualmente como entenderem. O actual carácter imperioso é errado, como se tem visto. A necessidade de criar regiões em simultâneo é infantil e autoritária. O pior é o que temos: está na Constituição, mas não existe e não se respeita.

 

De igual modo, o poder popular a exercer sob a forma de referendos e iniciativas populares exige clarificação, sem o que são inutilidades que servem para pouco. Os constituintes portugueses, quer dizer, os partidos, sempre temeram estas formas de exercício de poder. Se assim for, a solução seria retirá-las definitivamente da Constituição. Mas o melhor é dar-lhes significado e função à altura. Por exemplo, alargar o elenco das matérias referendáveis. E reforçar o seu poder vinculativo.

 

O sistema judicial deveria também ser revisto. São mais de vinte artigos a pedir um reexame, além de outros, sobre deveres e direitos, por exemplo, com implicações na justiça. É esta talvez a mais importante das necessidades de revisão. Esta deveria ser precedida de debate, promovido pelos deputados, pelos órgãos de soberania, pelas magistraturas, pela academia e pelas associações. Há inúmeros capítulos e temas a necessitar de revisão: direitos e deveres dos cidadãos e sua tutela; direitos e deveres dos magistrados e dos tribunais; questões de funcionamento, como por exemplo as dos prazos, do segredo de justiça, dos deveres funcionais e dos recursos. Além das relações entre os órgãos de soberania (Parlamento, Presidente e Governo) e órgãos judiciais.

 

Também seria importante rever e apurar questões de funcionamento dos órgãos de soberania, como por exemplo a necessidade de aprovação, pelo Parlamento, dos governos e dos seus programas, assim como a aprovação, pelos deputados, das mais importantes nomeações de altos funcionários. Uma parte da instabilidade política nacional, sobretudo actual, resulta do dispositivo constitucional que promove governos minoritários.

 

Igualmente interessante seria rever certos aspectos do sistema eleitoral, como o alargamento das eleições individuais e uninominais, além das candidaturas independentes.

 

Uma boa revisão é útil pelos seus próprios termos, pelo seu conteúdo, não pela capacidade de fomentar a luta de armadilhas. Uma boa revisão afasta do horizonte o mito da revisão profunda e excessiva. Limpa repetições, erros e incongruências. Na verdade, há muitas matérias que deveriam estar contempladas na lei, mesmo se com necessidades de votos reforçados, mas cuja residência na Constituição acaba por ser uma diminuição dos poderes dos cidadãos de cada geração.

 

Além de útil e de melhorar a nossa vida colectiva, dando mais responsabilidade aos cidadãos e aos seus representantes, uma boa revisão afasta a revisão rancorosa e a mudança de regime.

 

Quanto mais a Constituição for fechada e conservadora, maior será a sua vulnerabilidade. Imutável, a Constituição convida a que se faça uma nova. Feita nas condições em que o foi em Portugal, sob pressão, dependendo das circunstâncias e do curto prazo, moldada por interesses menores e ocasionais, a nossa Constituição deveria ser mutável, poder evoluir. Com tantos pormenores mesquinhos e inúteis, esta Constituição, para manter o que tem de mais importante, precisa de ser flexível e adaptável ao nosso tempo.

 

A revisão pode ser levada a cabo com vários partidos, com todos ou quase todos. Há várias maiorias possíveis. Ao contrário do que alguns pretendem, a melhor revisão seria aquela que consegue mais vasto apoio, mesmo se sabemos que, na maior parte dos casos, isso não será possível. Mas é bom que seja tentado. É bom que os cidadãos percebam que os partidos fizeram os possíveis. É bom que os cidadãos percebam que os partidos não se limitaram a coreografias ridículas de culpabilização ou de humilhação do outro. Muito especialmente, seria excelente que a revisão fosse um verdadeiro e exemplar debate nacional. Tanto quanto o resultado, a revisão seria boa pelo processo que a ela leva. A participação de muita gente que não sejam os habituais profissionais da política só será útil. A academia, as profissões, as autarquias, as empresas, os sindicatos e os intelectuais dariam seguramente um contributo valioso e talvez mesmo criativo. Uma boa revisão afasta uma má revisão.

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Público, 24.5.2025

sábado, 17 de maio de 2025

Grande Angular - Lembretes

 Os movimentos Hamas, Hezbollah, Estado Islâmico ou Daesh, Hutis e outros grupos terroristas, assim como alguns Estados da região, seguramente o Irão e parte do Iémen, declaram expressamente que lutam pela liquidação do Estado de Israel e pela expulsão dos Judeus ou Israelitas da região. Nunca o esconderam. Nunca usaram subterfúgios ou metáforas. Por isso Israel tem todo o direito e dever de lutar pela sua vida e pela sobrevivência. Após as agressões de 7 de Outubro de 2023, Israel decidiu justamente retaliar. Tratava-se de punir os agressores, recuperar os reféns e sobretudo derrotar o Hamas. Ao fazê-lo, Israel decidiu também agredir apoiantes do Hamas, seja o Líbano e o Irão, seja o Iémen e a Síria, ou ainda o Hezbollah e outros terroristas. A ofensiva israelita atingiu dimensões e natureza totalmente desproporcionadas, configurando mesmo uma intenção deliberada para eliminar todas as expressões políticas dos palestinianos na região, em particular na Cisjordânia e em Gaza. As cidades arrasadas e mais de 50.000 palestinianos mortos configuram um massacre de população absolutamente inaceitável que nem sequer o argumento de sobrevivência de Israel justifica. Outros meios e outras acções haveria para atingir os mesmos fins. É verdade que o Hamas e outros movimentos utilizam deliberadamente os civis, as mulheres, as crianças, os idosos, os doentes, os hospitais, as escolas e outras realidades civis para se defender, como aliás diziam Ho Chi Min e Mao Tsé-Tung ao insistir que os guerrilheiros deveriam misturar-se e viver com o povo “como peixes dentro de água”. As vítimas inocentes servem para forjar argumentos publicitários e demagógicos. Mesmo sabendo isso, a estratégia israelita de devastação é política e moralmente condenável. Israel acaba por merecer tanto apoio e solidariedade, quanto censura e condenação.

 

Que tem o governo português a dizer sobre isto tudo? Que têm os principais partidos políticos, candidatos a formar governo, a declarar? Seguir o que diz parte da União Europeia? Imitar países europeus que se calam? Tomar posição própria e autónoma? É verdade que Portugal não tem interesses na região, nem populações envolvidas de perto ou de longe. Mas poderá ter suficientes argumentos políticos, morais e humanitários para tomar posição, afirmar os seus valores e defender os seus pontos de vista autónomos. A campanha eleitoral que terminou ontem em nada ajudou a contrariar esta absurda situação. Portugal faz parte de uma civilização e de instituições internacionais de modo que adquire deveres e valores que deve respeitar. O silêncio e a abstenção não são opções.

 

Algures na Europa oriental, um país independente e consagrado pelas instituições internacionais e pela ordem política estabelecida, a Ucrânia, foi agredido e invadido, estando a ser, há mais de três anos, verdadeiramente massacrado por um país muito maior, mais forte e poderoso, a Rússia, ao arrepio de todas as regras internacionais políticas e jurídicas. Portugal, pela voz dos seus últimos governos, tomou partido pelo país ofendido, juntando-se aos europeus que apoiaram e ajudaram a Ucrânia no seu esforço de defesa. Passados três anos e mais de 400.000 mortos e feridos, continua a guerra naquela parte da Europa e há sinais fortes de enfraquecimento da Ucrânia. A Rússia recebe apoio, cumplicidade ou silêncio cordial de algumas dezenas de países do mundo, em especial de um grande número de ditaduras. A Europa e a sua União, assim como o mundo ocidental e os Estados Unidos, começam a dar sinais de desconforto perante esta guerra injusta e agressiva que ameaça o futuro da Europa e da democracia. Surgem dúvidas quanto aos caminhos para a paz e quanto às condições políticas para o futuro daqueles dois países e de toda a região. Portugal, através dos seus dois últimos governos, alinhou simplesmente no apoio que a Europa ofereceu. Evitou qualquer debate sério. Absteve-se de tomar iniciativas, se é que as podia levar a cabo. Verdade é que, mesmo sem ter originalidade ou interesses próprios, Portugal deveria estar mais informado, a opinião pública mais sensibilizada e a população mais conhecedora. Os partidos políticos mais importantes deveriam trazer este tema, que afinal é do da paz e da liberdade na Europa, ao espaço público e à possibilidade de participação da população. Não o fizeram, na convicção de que não ganhariam votos e de que os portugueses não se interessam. É pena.

 

Estes temas internacionais, ausentes da campanha eleitoral, sugerem outra questão igualmente afastada de compromissos dos principais partidos e do esclarecimento dos cidadãos: é a da defesa nacional, da despesa pública e dos investimentos militares e de segurança, do equipamento das forças armadas, do serviço militar, do recrutamento e do envolvimento da população no esforço de defesa nacional e comum europeu. Há uma espécie de covardia generalizada. Os principais partidos políticos não querem gastar dinheiro, ou pelo menos não querem dizer que têm de gastar recursos. Não aceitam publicamente que as novas realidades europeias e internacionais exijam um enorme esforço militar e de defesa, dado que a paz, a liberdade, a democracia e as independências nacionais estão em causa e são ameaçadas. Tentam calar responsabilidades e compromissos, pois entendem que a população é avessa à despesa com a defesa e adversária de qualquer alteração no serviço de recrutamento. Não encaram sequer a discussão sobre o serviço militar e cívico, pois calculam que tal lhes faça perder votos. Escondem planos e projectos de investimentos consideráveis, na renovação técnica e no desenvolvimento, pois sabem que tudo isso implica despesa e investimento. Com receio de eventuais reacções desfavoráveis, fazem os possíveis por esconder ou esquecer a necessidade de tomar decisões urgentes sobre a armada, os submarinos e a força aérea, cujas renovações são agora de extrema urgência e de muito significativas despesas. Os principais partidos políticos, candidatos a governar, fizeram tudo o que puderam para arredar este tema das consciências dos cidadãos. Não por pacifismo, mas por covardia. E por vontade clara de reservar para si, nos gabinetes e nos corredores do poder, o direito de se exprimir e de agir em consequência.

 

Sem grande esperança e com pouco optimismo, aqui ficam lembretes para discussões e debates perdidos, mas que poderão ao menos ser retomados com o novo governo e o novo parlamento. Mesmo sabendo que há animais que não aprendem.

Público, 17.5.2025

sábado, 10 de maio de 2025

Grande Angular - Mais uma oportunidade perdida

 Como nunca, nestes cinquenta anos, as eleições e a campanha do ano corrente foram tão dirigidas para o “chefe”, o “líder”, o “cabeça” e o “primeiro”. Quase nada se sabe sobre a equipa, os colaboradores e os grupos de apoio. Pouco se conhece sobre as instituições, empresas, associações e outros grupos que se sentem mobilizados e empenhados. Mal se percebem as ideias e os programas que cada um deseja ou diz desejar para o seu país. Apenas se sabe que querem o poder. Conquistar o poder. As arruadas são procissões tristonhas de gente, por vezes paga, que seguem o que vai à frente. Só ele (ou ela) conta, só ele (ou ela) se vê, só ele (ou ela) fala, só ele (ou ela) distribui brindes e só ele (ou ela) dá entrevista. Os comícios, cada vez menos, organizam-se à volta dele (ou dela) que, no fim, dá entrevista breve às televisões, geralmente rodeado de múmias sinistras e apagadas, mesmo quando se trata de deputados e ministros. Os principais “eventos” eleitorais são almoços e jantares de carne assada, antes dos quais ele (ou ela), rodeado de carantonhas ou fantoches, desfila uns rápidos lugares-comuns. Antes dessas romarias, crucial é o debate na televisão. Entre eles (ou elas), de modo automático e programado, parecem bonecos articulados. Porque, na verdade, o que interessa são as avaliações, com notas e tudo, de dezenas de comentadores que, quase sem excepção, favorecem os seus amigos com ar sabedor e arrasam os outros com ar de desprezo.

 

É verdade que a eleição política sempre foi, sempre será, um acto de reconhecimento e identificação, para o qual a personalidade e o carácter do “líder” são essenciais. Mas que, excepto quando se trata de um “herói”, mesmo assim exige uma equipa, um programa, uma energia especial, uma preocupação fundamental, umas ideias sobre o que importa fazer e umas certezas sobre grandes princípios.

 

O desvio dos debates políticos para as contas e os impostos de cada um, para os favores prestados e as influências vendidas por cada um, é revelador disso mesmo: do esvaziamento político das eleições e da pasteurização cultural da democracia. O importante é cada vez mais o favor que se fez, a cunha que se meteu, o imposto que se evitou, o amigo que se promoveu, as influências que se exercem e os lugares que se preenchem.

 

Debates e discussões entre partidos e candidatos andam apenas à volta de um tema libidinoso: como se conquista o poder, quem o guarda, como se divide, quem o quer e quem fica sem ele.

 

Os protagonistas das eleições actuais são quase todos bem-talhados e adequados aos tempos que correm. E característicos das eleições que temos. O Chega, uma fabulosa energia de claque de futebol feita de fanatismo e de reflexos condicionados. O PSD (ou a AD), uma eficaz e sub-reptícia máquina de influências, o mais capaz de confundir clientes com eleitores. O PS, um sindicato desnorteado e sem destino, que parece ter negado o futuro, quando apenas queria esquecer o passado. A IL, de uma pureza impecável, a caminho da beatitude. O PCP, nervoso e tenaz à procura de não desaparecer da história. O Bloco, já sem graça, com o seu ar de superioridade das avenidas, de mãos nos bolsos e dogma bem oleado. O Livre, um neófito envelhecido, aparentemente imprescindível. O PAN, que quanto mais conhece os animais, mais gosta da política.

 

Que pensam estes nossos partidos, candidatos a mandar em Portugal e em nós todos, do destino da Europa, periclitante como nunca, ameaçada pela Rússia, marginalizada pela América, cobiçada por África e pelo Islão e desprezada pela China? 

 

Que pretendem eles fazer com a Justiça portuguesa, cada vez mais desorganizada e injusta?

 

Que se preparam realmente para fazer com os grandes serviços públicos ou as grandes empresas nacionais, umas miseravelmente vendidas, outras estranhamente desmanteladas, outras ainda entregues aos mais desvairados traficantes de influências?

 

O Estado português, já agora a nação portuguesa, ou o país e a sua população, se quiserem, raramente estiveram tão dependentes, tão frágeis, tão vulneráveis como hoje. Quem o diz é designado por céptico e pessimista, fanático do “bota-abaixo” e descrente da pátria. Mas é garantido que esse tem mais razão do que uma mão cheia de burocratas, de “influenciadores” e de caciques. Quem se ocupa realmente dos caminhos de ferro, dos portos, do mar e dos rios? Quem está de facto a tratar dos aeroportos e da companhia de aviões? Quem se encarrega com força e solidez da energia do futuro? Quem vai tentar voltar a dar um módico de dignidade e de autonomia, ou de afirmação do interesse nacional, nas telecomunicações, na produção e na distribuição de energia? Quem vai tentar reconstruir ou construir alternativas autónomas à energia, às telecomunicações, aos cimentos, às celuloses, à madeira, à metalurgia e a outros sectores que demonstravam, pelo menos parcialmente, alguma solidez?

 

Para além do miserável oportunismo de última hora, que entendem fazer para elaborar, pôr em prática políticas de população e de imigração necessárias para a economia, dignas de uma nação antiga e orgulhosa, próprias de uma cultura, crentes nos direitos humanos, guardadoras das liberdades e respeitadoras do sentido de humanidade?

 

Para além de distribuir subsídios, ratear subvenções, fornecer descontos e isentar de impostos, alguém tem um plano, um projecto, uma intenção, uma ideia de como se cria riqueza, como se reforça a economia, como se formam gerações de profissionais, como se criam cientistas, como se dá liberdade a empresários? 

 

É ou não verdade que a vida urbana, nas grandes cidades portuguesas, se deteriorou muito nos últimos anos, talvez últimas décadas? Que a situação na saúde e nos serviços públicos decaiu significativamente? Que o funcionamento da Justiça se danificou, parece que sem emenda? Que as oportunidades para os jovens diminuíram? Que o tráfico de pessoas e de trabalhadores aumentou sem controlo nem limites? Que os transportes públicos, sobretudo citadinos, se transformam em zona de perigo e incómodo? Que os riscos de cair na pobreza não diminuem? Alguém é capaz de negar, factos e números na mão, este declínio, este progresso adiado? Se assim é, por que razão os partidos e os candidatos não se sentem mobilizados para abandonar o “cliché” banal e o palavreado automático e para se sentirem empenhados em dar e procurar o melhor? O mais sensível? O mais sério? O mais sólido? Em vez do mais ligeiro, o mais fátuo, o mais ilusório e o mais enganador?

 

Há quem não confesse, nem sob tortura, em quem vai votar. É compreensível: não quer ser culpado.

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Público, 10.5.2025

sábado, 3 de maio de 2025

Grande Angular - Um país frágil

 As eleições são más conselheiras. Péssimas oportunidades. E circunstâncias ruins. Com elas à vista, perde-se rapidamente a serenidade. Revelam-se comportamentos irracionais. Mente-se com desfaçatez e sem vergonha. A presunção e o narcisismo crescem de modo quase ofensivo. Algumas das mais vis condutas humanas são exibidas em permanência diante de todos. O apagão desta semana foi bom exemplo e oferece evidência de tudo quanto precede.

 

O governo considerou exemplar o seu comportamento. Gabou-se mesmo do êxito pela ausência de vítimas (“Não houve um só morto”, disse o Primeiro ministro em momento particularmente infeliz). Os governantes e as autoridades esconderam-se e, quando apareceram, foram quase hilariantes. Um recomendou jerricans de petróleo para as maternidades. Outros sugeriram que a culpa era toda do estrangeiro, de Espanha, de França ou mais simplesmente da Europa. Não faltou quem sugerisse um ciberataque, a última ameaça da moda. Não ficou esquecida a alusão à eventual autoria russa ou muçulmana. As autoridades chegaram tarde. Não falaram a tempo e horas. A população viveu mal durante muitas horas. A ansiedade foi grande. Os prejuízos terão sido importantes, ainda não se fizeram as contas. Muitas instituições e organizações, escolas, hospitais, empresas e serviços suspenderam, diminuíram ou encerraram actividades. Milhões de pessoas viram as suas vidas, trabalho, emprego, deslocação e actividade doméstica, ameaçadas e perturbadas. Mas ao governo, não faltou a frase rainha: “Em Espanha, foi pior!”.

 

Uma parte do que aconteceu, ou não, a propósito do apagão, ficou a dever-se à campanha eleitoral e ao modo como esta suscita as paixões menores e os vícios maiores.  Mas o essencial não está aí. Se não houvesse eleições, teria acontecido muito provavelmente a mesma coisa ou quase. O problema está na fragilidade do nosso país e das nossas instituições. Faltam, estão ultrapassados, não existem, são desadequados, os sistemas de emergência, a gestão de stocks para situações excepcionais e a manutenção de reservas para tempos de guerra ou de crise.

 

A história recente está recheada de experiências e acontecimentos nos quais a imprevidência, a falta de prevenção, a ausência de substituição e de reservas e a impreparação dos serviços são as regras. Não faltam exemplos: todos os casos graves de incêndios florestais, as inundações de Lisboa e Porto, os temporais da Madeira e dos Açores, a seca no Alentejo, a falta de reservas de água em muitas regiões, certas greves (da estiva, das ambulâncias, do INEM, dos controladores, dos enfermeiros), o colapso das urgências médicas, as crises de abastecimento de cereais e combustíveis… 

 

país não está preparado. Os planos de emergência elaborados em muitos gabinetes são anedotas teóricas, burocráticas, desactualizadas, sem espírito prático, sem sentido de urgência e sem participação das populações e das autarquias. Nos piores momentos, os governos limitam-se a aparecer tarde, a tentar culpar terceiros, a procurar louros e dividendos. Em plena crise, quase ninguém, pessoa, família, instituição, empresa ou serviço público sabe o que deve fazer, o que lhe compete, onde e com quem. Alguém se lembra de ter visto, regularmente, nas suas caixas do correio ou nos seus emails, avisos sobre as emergências e as crises? Alguém jamais viu, entre nós, informação completa, prática e actualizada, sobre as reservas estratégicas, de guerra ou de emergência, a manter em casa, nos bairros, nas autarquias, nas empresas e nas instituições? Quem sabe, entre nós, o que deve fazer, onde, quando, com quem e como, em caso de emergência, acidente, desastre ou crise?

 

Podemos ter a certeza de que reinam a má gestão de recursos e a péssima organização de serviços de apoio. Ninguém duvida de que, nas administrações, os planos de emergência estão desactualizados, são inoperantes, se encontram esquecidos, mas são muito bem elaborados no papel, sem qualquer espécie de sentido prático.

 

O apagão não é obra da natureza, é obra de gente. Como tal, não deveria ter acontecido. A acontecer, deveria haver a possibilidade de “autonomizar” a rede nacional. Seria necessário haver regiões autónomas dentro da rede nacional. É indispensável haver mecanismos de emergência prontos a entrar em operações. Os municípios deveriam estar envolvidos desde o primeiro minuto. As autoridades públicas nacionais e locais, os órgãos de fiscalização e regulação, as grandes empresas nacionais e internacionais, deveriam ter obrigações drásticas para actuar imediatamente em caso de emergência. As mais importantes instituições públicas, incluindo hospitais, clínicas, escolas, lares, bombeiros, polícias, órgãos de comunicação e outros, deveriam ter obrigatoriamente uma grande capacidade de produção autónoma de emergência. As autoridades, a começar pelo Primeiro ministro e pelos ministros, deveriam ter obrigações taxativas de informação e comunicação imediatas e deveriam cumpri-las.

 

Além do apagão, para muitas outras circunstâncias deveria haver regras claras e normas imperativas de actuação. Como, por exemplo, a fixação de níveis mínimos de stocks de emergência de alimentos, medicamentos, produtos de uso doméstico e combustíveis. Ou, nas empresas e nas instituições, a existência de estruturas de intervenção no plano individual, autárquico e local. Ou ainda, mecanismos e dipositivos conhecidos e disponíveis de substituição e de emergência em caso da falta ou de falha (luz, calor, água, energia, transporte, alimentação, primeiros socorros, etc.).

 

Estas, apenas algumas sugestões conhecidas e evidentes. Sem esquecer as obrigações a cumprir pelos Governos, imediatamente e diante de todos. Ou ainda, a responsabilidade autónoma, sem intervenção dos governos e das autoridades políticas, das entidades e serviços de protecção civil que, para cumprir os seus deveres e mobilizar a população, não devem ficar dependentes dos governos.

 

É uma tendência moderna dos sistemas políticos: distribuir, recompensar, fazer obra e criar emprego, em detrimento da que deveria ser a primeira prioridade, proteger os seus cidadãos. Servir as populações garantir-lhes a liberdade. Ajudar a que os cidadãos sejam fortes e saibam vingar na vida. Por isso, a previsão, a prevenção e a comunicação são tão essenciais. O verdadeiro drama e a real ameaça estão, não nas ocorrências, mas antes das inundações, das chuvas, da seca, dos incêndios e de outros desastres. Assim como antes do apagão, obra humana.

Público, 3.5.2025

sábado, 26 de abril de 2025

Grande Angular - O 25 de Abril cumpriu-se

 A pergunta é muito frequente: “O 25 de Abril cumpriu-se?”. A resposta é clara: sim! A frase é muito repetida: “O 25 de Abril não se cumpriu!”. O comentário é simples: Sim, cumpriu-se! Outra frase é parecida: “Falta cumprir o 25 de Abril!”. Não, não é verdade, não falta cumprir o 25 de Abril. Uma frase é também curiosa: “É preciso outro 25 de Abril!”. Não, não é preciso. Nem é possível. Está feito. Sem esquecer a frase mais dramática, diante de qualquer desastre, atraso, incompetência, injustiça ou pobreza: “Foi para isto que se fez o 25 de Abril?”. Não, não foi para “isso” que se fez o 25 de Abril, foi para permitir a liberdade dos portugueses.  E lembrando também a sua versão mais vaidosa, reservada a certas pessoas: “Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril!”. Sim, foi para isso que fizeram o 25 de Abril, isto é, foi para o mal e o bem, a glória e a miséria, o erro e a bondade.

 

O 25 de Abril cumpriu-se porque, nessa data e graças ao que imediatamente se seguiu, os presos políticos foram libertados, as polícias políticas foram extintas, criaram-se partidos políticos, os sindicatos ficaram independentes do Estado, viveram-se as liberdades mesmo antes das respectivas leis, a Censura foi extinta, as guerras nas colónias cessaram, os deportados e refugiados no estrangeiro regressaram, passaram a editar-se jornais e livros sem censura, rádio e televisão fizeram-se sem exame prévio, convocaram-se eleições, elegeu-se uma Assembleia Constituinte e, pouco depois, elegeu-se o Presidente da República e o Parlamento livre. Cumprido este “caderno de encargos”, que não é pequeno nem fácil, o 25 de Abril terminou. Começou então o processo histórico político e social, com cidadãos a escolher e decidir, com eleitores a designar partidos e a dar-lhes poder para os representar.

 

Os militares fizeram o 25 de Abril, derrubaram um governo e um regime, terminaram com a guerra, exageraram na revolução política e social, correram riscos, dividiram-se, quase chegaram à guerra civil, uns deixaram-se tentar pela revolução social, outros reagiram, salvaram a democracia, garantiram a liberdade e retiraram-se da vida política (na verdade, foram despedidos pelos políticos de modo muito discutível…). Naquele tempo, os militares foram os principais responsáveis pelos acontecimentos mais marcantes.

 

Foram as eleições que deram os argumentos essenciais para a democracia que se seguiu. Foi graças a estas que os portugueses escolheram os seus representantes, as instituições e as políticas. O 25 de Abril permitiu as eleições, não as fez, quem as fez foram os portugueses, os partidos e os eleitores. Quem as permitiu foram os militares. Os civis colaboraram, influenciaram, participaram, acabaram por ganhar gradualmente poder de decisão e protagonismo, graças à retirada dos militares da cena política e das instituições. Já estava longe o 25 de Abril e lentamente os civis, com as decisões dos portugueses, escolheram a Constituição, organizaram o regime, elegeram os governantes e os representantes.

 

O notável esforço que se seguiu, nas obras, nas estradas, nas infra-estruturas colectivas, na protecção social, na educação, na saúde, na cultura, nas empresas e nas relações laborais foi obra de escolhas, de luta política, de combate ideológico, não foi obra do 25 de Abril, nem dos militares, muito menos dos grupos de civis que tentaram apoderar-se do Estado e do poder sob pretexto do 25 de Abril.

 

Os erros e disparates cometidos depois do 25 de Abril, a começar pela descolonização, pelas nacionalizações abrutalhadas e pelas ocupações de empresas, casas e herdades, não foram obra do 25 de Abril, foram, isso sim, feitos de homens e mulheres, de autoridades, de políticos, de eleitores e de nós todos que decidimos e escolhemos.

 

O 25 de Abril não tem herdeiros, nem legatários. Não tem testamenteiros nem proprietários. Não há fiscais do cumprimento do 25 de Abril. Não há sacerdotes da fidelidade aos princípios do 25 de Abril.

 

O 25 de Abril não pode servir como desculpa ou pretexto para todas as ideias políticas e sociais, para as injustiças e incompetências. O 25 de Abril não é culpado pelo mal que se fez, nem responsável pelo bem que se realizou.

 

O 25 de Abril não tem culpa do crescente desinteresse do Estado pelos serviços públicos. Isto é, não é por causa dele que os políticos e os partidos, sobretudo o PS e o PSD, deixaram a Justiça degradar-se e o SNS declinar.

 

O 25 de Abril não tem culpa na descolonização mal feita nem no tratamento infame infligido aos repatriados e retornados.

 

            O 25 de Abril não provocou a emigração de centenas de milhares de portugueses, nem a imigração de centenas de milhares de estrangeiros.

 

O 25 de Abril não é responsável pela permanente instabilidade das instituições políticas, pela sucessão de eleições antecipadas nem pelas repetidas dissoluções do Parlamento.

 

O 25 de Abril não é o autor nem o responsável pela persistência, na sociedade portuguesa, da corrupção, do favoritismo das cunhas e do nepotismo.

 

O 25 de Abril não tem responsabilidades no crescimento da mais forte corrente de demagogia que Portugal conheceu nos últimos vinte ou trinta anos e que é protagonizada pelo partido Chega…

 

Desde 1974, Portugal mudou muito. Bem e mal. Em muitos aspectos, progrediu e melhorou. Noutros, atrasou-se e marcou passo. O conforto e o bem-estar da população são incomparavelmente superiores. Mas a desigualdade e a pobreza persistem. Desapareceu o analfabetismo, mas a qualidade dos estudos, dos conhecimentos e da cultura deixam a desejar. Aumentaram muitíssimo a esperança de vida e o envelhecimento, mas nunca a natalidade esteve tão baixa e a má sorte dos idosos é chocante. Deixaram a agricultura centenas de milhares de portugueses e as cidades cresceram significativamente, mas a qualidade da vida urbana é medíocre e o cuidado pela lavoura e pelo campo desaparece. Houve enorme progresso tecnológico nas actividades produtivas e na vida quotidiana, mas as produções nacionais, tanto industriais como agrícolas, definham. As actividades culturais crescem por todo o pais, mas é enorme o escândalo da ruína do património cultural português. Há saúde para todos, mas quase dois milhões de pessoas não têm médico de família e as filas de espera por actos médicos são incomensuráveis.

 

De tudo o que precede, bem e mal, o 25 de Abril não é culpado nem responsável. Do que aqui consta e muito mais, os únicos responsáveis são os portugueses, as suas escolhas, as suas decisões. E é assim que deve ser.

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Público, 26.4.2025