sábado, 14 de setembro de 2024

Grande Angular - Valores mais altos do que telemóveis

 Há mais de cinquenta anos, um estranho acontecimento ocupou as primeiras páginas dos jornais de todo o país. Em Lamego, no Liceu, um aluno tinha sido apanhado a copiar, num exame, de maneira especialmente original e moderna. Não propriamente a copiar, mas sim a burlar com métodos criativos. Aparentava sinais de ferimentos na cabeça, por cima dos quais uma ligadura dava o toque realista. Na verdade, o truque escondia um minúsculo receptor de rádio que recebi indicações para resolver as questões do exame. Em casa, seu irmão, pequeno génio de tecnologia, tinha desenvolvido um transmissor artesanal de grande eficácia. Cinco minutos depois de começada a prova, dirigia-se ao Liceu, pedia uma cópia do enunciado, corria para casa e ditava ou inspirava as respostas. Um comerciante vizinho, no seu rádio, ouviu vozes que identificou como respostas a um exame. Foi ao Liceu e denunciou a marosca. Os professores foram ver e rapidamente detectaram a aldrabice. O aluno chumbou, mas foi reabilitado no ano seguinte. O irmão foi rapidamente recrutado por uma empresa especialista naquelas técnicas. Toda a gente compreendeu o castigo do burlão, mas o país inteiro simpatizou com os irmãos e seu feito. A tal ponto que, nessa noite, a loja do denunciante foi apedrejada e vandalizada. Nunca mais reabriu.

 

Esta pequena história serve, entre outros usos, para perceber o imenso abismo tecnológico, pedagógico e moral que nos separa daqueles dias. Os telemóveis de hoje, ou antes, os smartphones são poderosas armas ao alcance de toda a gente, que servem para todos os fins imagináveis: burla, jogo, invenção, cultura e lazer. Investigação, cálculo, informação, espionagem e roubo. Meditação, namoro, organização, controlo e gestão. Banditismo, terrorismo, filantropia e solidariedade. Os smartphones são portas abertas de cada um para o mundo e deste para cada um.

 

A discussão actual sobre o uso dos telemóveis nas escolas não é mais do que a repetição, actualizada, da mesma questão debatida há vinte anos. Pode ou deve proibir-se ou admitir os smartphones nas escolas? A sua proibição não vai atentar contra direitos fundamentais, a liberdade de expressão e o direito à informação? A sua admissão, pelo contrário, não vai liquidar o espírito da escola, a autoridade dos professores, o esforço de aprendizagem e o recato necessário para pensar e estudar? Convém notar que, há trinta anos, estes aparelhos pouco mais eram do que telefones e canais de mensagens escritas. Hoje, são tudo o que se sabe e ainda se não conhece.

 

O dilema não se limita à alternativa habitual, sim ou não. Na verdade, o problema é muito mais complexo. Todas as questões particulares são pertinentes. Quem deve ou pode ter a autoridade para tomar esta decisão? O Parlamento, o Governo, o Ministério, a Escola ou o professor?

 

A que se deve circunscrever a decisão? À escola no seu todo? Às salas de aula? Aos recreios e cantinas? Às salas de estudo e convívio?

 

As decisões sobre os smartphones são equiparáveis às que dizem respeito às tabletes, aos computadores e outros dispositivos? Que fazer com as necessidades evidentes de utilização destes para mil e uma funções educativas? Mesmo admitindo que a qualidade e a beleza das aulas magistrais são insubstituíveis, é evidente que há muitas outras formas de aprendizagem que não se limitam às aulas.

 

Além de troca de correspondência e de comunicação verbal, o smartphone também pode servir de dicionário, vocabulário, máquina de calcular, biblioteca, máquina de fotografia e cinema, reprodução musical, arquivo, compra e venda do que se quiser, actividade bancária e bolsista, aposta e vidência. Sem falar nas redes sociais e em todas as funções (saúde, estacionamento, informações, turismo, horários, mercado, etc.) essenciais para a vida quotidiana. É possível proibir umas funções e admitir outras?

 

Nada se passa sem que atravesse também os smartphones. Tudo o que é importante e tudo o que não é importante começa, acaba ou passa pelos smartphones. É o mais esplendoroso instrumento de liberdade, de morte, de conhecimento e de destruição. Faz algum sentido tomar uma qualquer decisão sobre o uso destes aparelhos nas escolas?

 

Faz todo o sentido. O uso intensivo e permanente do smartphone é absolutamente destruidor do que de melhor se pode passar na escola. O ensino, o diálogo e o debate são incompatíveis com o smartphone. O recato, o silêncio e a reflexão são destruídos pelo smartphone. A imaginação, a criatividade e o esforço pessoal são substituídos por todos os recursos “fast” que os smartphones proporcionam. O processo educativo inclui dimensões, qualidades e métodos não substituíveis por ciência esquemática, ensino plastificado e cultura empacotada.

 

Sei bem que a liberdade de expressão e o direito à informação, as duas flores mais frágeis da democracia, também estão ligadas ou podem beneficiar dos smartphones. Como sei que os ataques contra as redes sociais e o uso doloso das mesmas são ameaças contra as liberdades. Mas também sei que, tal como tantos outros instrumentos, aparelhos e funções, também estes podem e devem ser regulados. Guiar automóveis, usar armas, pilotar barcos e aviões, beber álcool ou consumir certas substâncias medicinais ou recreativas, exigem autorização, têm regras, só estão acessíveis em certas condições, segundo os locais e as idades. Regular o uso dos smartphones nas escolas, eventualmente também noutros locais de carácter reservado ou privado, é aceitável do ponto de vista da liberdade, desde que não seja instrumento de opressão de qualquer espécie (por exemplo, proibir uns e permitir outros). Nas escolas, muito especialmente nas salas de aula, os smartphones são instrumentos de perturbação e de destruição de valor superior, naquele momento e naquela ocasião, o da aula. A sua proibição nas salas de aula, com ressalvas excepcionais, justifica-se do ponto de vista da liberdade individual, do pensamento e do conhecimento.

Permitir ou proibir crianças de dez anos ou adolescentes de quinze de usar smartphones onde quiserem e quando quiserem são prerrogativas e deveres dos pais e dos familiares. Mas, nas salas de aulas, não são eles que têm autoridade para tanto. Nenhuma máquina desempenha com vantagem as funções da aula e do ensino. Nenhuma cópia é superior ao diálogo e ao estudo. Nada substitui o carácter humano do processo educativo.

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Público, 14.9.2024

sábado, 31 de agosto de 2024

Grande Angular - Referendar a imigração

 Pretender, de um dia para o outro, referendar a imigração, um dos mais complexos problemas de Portugal e da Europa, revela as intenções dos seus proponentes. Que são demagógicas e oportunistas. Oferecer-se para trocar a iniciativa de um referendo por um voto do orçamento exibe a baixeza moral e o cinismo dos seus autores. Felizmente que Ventura e Chega fizeram esta proposta, pois ela acaba definitivamente com as dúvidas que poderiam subsistir quanto aos seus planos. Fazem tudo o que podem e lhes deixam fazer para possuir a democracia, capturar o regime e sentar-se no poder. Nem sequer têm vergonha para esconder as suas intenções: revelam-nas abertamente, na convicção de que a provocação paga dividendos. O que não impede que tenham trazido a público dois problemas importantes. Primeiro: para que servem e como se convocam os referendos. Segundo: a necessidade urgente de uma política de imigração séria e consequente.

 

Os portugueses em geral e a classe política em particular não têm mostrado especial afecto pelo referendo. Foi recusado na Constituição e pudicamente aceite, mais tarde, numa sua revisão. Foi utilizado duas vezes para o aborto e uma para a regionalização. A participação eleitoral ficou abaixo dos 50%, o que é insuficiente: a lei considera o referendo não vinculativo.

 

A grande oportunidade histórica para realizar um referendo, a aprovação da primeira Constituição democrática, foi deliberadamente perdida, os poderes não quiseram e a opinião pública não se importou. Outras oportunidades de semelhante poder simbólico foram as duas mais importantes revisões constitucionais (1982 e 1989), igualmente afastadas. Outra hipótese, bem calhada, era a adesão plena à União Europeia: foi posta de parte pelos partidos e pelas autoridades do seu tempo. As razões pelas quais não se gosta de referendos são difíceis de determinar. Receio de que a opinião pública critique os partidos? É possível. Confiança absoluta nos mecanismos partidários clássicos da democracia representativa? É crível, mesmo sabendo que muitos países com pergaminhos democráticos recorrem ao referendo e à iniciativa popular com frequência. Receio do veredicto popular que possa contrariar os poderes do dia? Certamente. E muitas mais razões. Na verdade, o referendo não é por si próprio um vício. Nem uma virtude. É aceitável que certos temas não possam ser referendados em qualquer situação, por razões de ordem constitucional, legal e até moral. Por exemplo, não se pode referendar a perda de independência. Nem o estabelecimento de ditadura. Nem a declaração de guerra. Mas poderia em teoria referendar-se a maior parte dos grandes temas da política nacional. O que não é o caso entre nós. Na verdade, a Constituição exclui da possibilidade de referendo uma quantidade excessiva de matérias.

 

É frequente ouvir quem tolere o referendo, desde que não se aplique a certas condições. É natural que assim seja. Mas é forçoso pensar que não se deve aceitar o referendo apenas quando não há risco de perder. Quem luta contra o referendo sobre matéria constitucional, a integração europeia, a liberdade religiosa ou a imigração teria o dever de estar disposto a qualquer resultado, favorável ou não às suas opiniões.

 

Outra coisa é a condição concreta. Um referendo sob pressão dos acontecimentos é condenável. Referendar a prisão perpétua ou a pena de morte, depois de crimes hediondos, é demagógico. Referendar qualquer tema no seguimento de factos que comoveram a opinião e que tenham uma qualquer relação com o terrorismo, o conflito social, o crime abominável, a perseguição religiosa, a violência familiar, o tráfico sexual, o racismo e a imigração ilegal é o mesmo que procurar soluções preconceituosas para problemas complexos. 

 

Referendar qualquer princípio ou política a título de compensação política é igualmente negativo. Por isso, é razoável que a legislação preveja condições especiais para realização de um referendo. Por exemplo, entre a apresentação de uma proposta e a sua realização deveria mediar um longo prazo de pelo menos três a cinco anos, para que haja reflexão, debate, estudo e ponderação. E ânimos acalmados. Além disso, uma proposta de referendo deverá recolher pareceres circunstanciados das autoridades parlamentares, governamentais e presidencial, além de apreciações fundamentadas das grandes instituições judiciais, científicas, religiosas e outras. Sobre o conteúdo e a oportunidade.

 

Neste aspecto, o tema da imigração, proposto pelo Chega, é uma aberração. Pretendem os seus autores realizar o referendo o mais rapidamente possível, quando na sociedade há questões de vivacidade excessiva, isto é, a conjuntura não é favorável. Além disso, os seus proponentes não estão interessados nos resultados, nem sequer convencidos da justeza das suas opiniões. Com efeito, eles próprios anunciaram as suas condições, em especial o facto de renunciarem à sua proposta no caso de obterem um ganho de causa na votação do orçamento! 

 

Por outro lado, é sabido que uma parte dos problemas da imigração reside na percepção dos residentes nacionais e dos imigrantes. Há ou não racismo nas instituições e na política? A imigração está ligada ao trabalho clandestino, às más condições de vida e à marginalidade? A imigração é fonte de comportamentos ilegais perante os trabalhadores, as crianças, os velhos e as mulheres? A imigração tem correlação com o tratamento desumano de animais? Há ou não há relações entre as comunidades imigrantes e o recrutamento e treino de actividade terroristas? Em que condições é que os residentes nacionais têm comportamentos desumanos, odiosos e violentos para com os imigrantes? A imigração é fonte de dispêndio excessivo e injusto em saúde e educação? 

 

Nada disto está devidamente estudado. Há opiniões sobre tudo e mais qualquer coisa, dependendo das crenças de quem as exprime. Sobre todas estas realidades, há percepções, desconfiança, generalizações e medos, quase não há factos nem certezas. A ideia de não estudar estes assuntos, nomeadamente de não inquirir a naturalidade, a prática religiosa e a pertença a certas comunidades, constitui erro inadmissível. Deriva de uma boa intenção, a de não estabelecer desigualdades, mas resulta exactamente no seu contrário, aumenta o preconceito e provoca o comportamento irracional.

 

A obscura proposta de Ventura e Chega vai adiar e criar dificuldades à definição de uma política de imigração, necessidade indiscutível.

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Público, 31.8.2024

sábado, 24 de agosto de 2024

Grande Angular - Ao serviço do povo. Ou do público.

 Antigamente, dizia-se, com orgulho, que a política devia ser feita “ao serviço do povo”. Era sobretudo a esquerda que assim se exprimia, mas também por vezes a direita. Com o tempo e as modas, “serviço público” foi ganhando o favor dos políticos. Povo era mais trabalhador, mais combativo… A merecer atenção. Público ficou a ser mais neutro, mais interclassista, mais “toda a gente” … Mais consumidor e eleitor. O “interesse público” ou o “serviço público” são expressões mais pacíficas e menos reivindicativas. Quase todos os partidos rectificaram a sua linguagem e substituíram povo por “público”. Nos extremos, à esquerda e à direita, ainda se prefere “povo”, mais popular ou mais populista.

 

Assim é que “fazer política” é servir o povo ou servir o público. Em doses variáveis, também pode ser servir os seus amigos, uma classe social, a si próprio ou instituições e empresas. É aqui que surge uma equação ou uma questão dramática. Conquista-se o poder político (os votos e os respectivos mandatos) para servir o povo e o público? Ou serve-se o povo e o público para conquistar o poder político? E quando se está a servir o povo e o público, estamos a falar de quem? Da população? De uma classe social? De um partido? De certas famílias, grupos e empresas? Qualquer político ou todos os políticos responderão de modo equivalente. Dizem que se conquista o poder político para servir o povo e o público. Consideram os seus adversários apenas interessados em beneficiar a sua classe social, os seus amigos e os seus clientes. E reservam para si próprios o estatuto de impoluto servidor. Nada de novo.

 

No entanto, a situação que vivemos é exemplar. Ninguém tem a maioria parlamentar. Ninguém pode, sozinho, aprovar qualquer coisa de jeito. Mas ninguém quer ficar com o ónus sem ter o mérito. Para o PS, aprovar os planos do governo, sem nada retirar, é fonte de angústia. Reprovar os projectos demagógicos do governo não é compreensível pelos beneficiários. Não aprovar os bons projectos do governo também é nefasto para as intenções do partido. Para a oposição, um recurso possível consiste em aprovar as suas medidas que obriguem o governo a fazer o que não quer. Mas isto tem dificuldades, a começar pelo facto de o governo ter meios para adiar as medidas da oposição. Mas também por causa da insuficiência de votos: o PS e o Chega não têm, sozinhos, votos suficientes. Juntar esforços é mau para os dois… 

 

A distribuição de dinheiro é um dos mais velhos expedientes utilizados para ganhar votos e apoios ou para incomodar as oposições que não têm esse recurso. Também é instrumento de demagogia, dado que as oposições não conseguem ou têm dificuldade em votar contra os “bodos aos pobres”. Assim como não lhes é fácil arranjar votos para os seus próprios “bodos”. O PSD e o governo dedicam-se agora a exactamente este exercício: distribuir a fim de mais tarde recolher. Sem tirar nem pôr. Dar o mais possível ao maior número, dar cheques e vantagens, à procura de benefícios ulteriores e na tentativa de retirar argumentos à oposição e aos populistas.

 

Apesar de não ser inédito, nem original, o Chega é um caso à parte. Não quer gerir a democracia. Pretende capturá-la ou destruí-la. Por “dentro” ou por “fora”. Com ou sem eleitorado. Com ou sem protesto nas ruas. Tudo o que este partido faz tem um sentido: incomodar os partidos democráticos, prejudicar o governo, dar voz e força a tudo o que seja protesto, criar fontes de conflito e liquidar as vias democráticas de governo. Isso já se sabe. Todos sabemos. Só que, como sempre acontece nestes casos, o Chega tem razões. Todas as fontes de descontentamento são as suas razões. Todos os protestos são também seus. As reivindicações de todas as populações são suas. Sobretudo quando os governos ou os partidos democráticos não ouvem essas razões e nada fazem para as tratar e resolver. Em vez disso, reclamam contra o Chega e garantem que este é fascista, racista e xenófobo. É possível que o Chega seja um pouco ou muito disso tudo, mas esse não é o ponto. É típico da democracia: reclamar contra o protesto, em vez de tratar das causas do protesto. 

 

Entrámos numa fase da vida política particularmente sensível. A situação internacional é ameaçadora, mas a nacional, por uma vez, não o é assim tanto. Por enquanto. Mau grado as pressões e revindicações sociais, apesar dos perigos populistas, a situação social e económica do país oferece alguma tranquilidade. Desde que os partidos parlamentares e de governo façam o que têm de fazer, cumpram os seus deveres e abdiquem do seu egoísmo interesseiro. Caso contrário, os partidos democráticos serão severamente julgados por não terem criado condições de governo. Por não terem querido tomar as decisões necessárias a assegurar a realização de reformas. Por não terem abdicado dos seus interesses a fim de tratar de forma mais segura da prosperidade do seu povo.

 

Na melhor tradição republicana, o PSD e o PS estão a arranjar lenha para se queimar. Alimentam populismos e protestos. Estão a ajudar a crise em vez de tratar dela. Cada um dos dois está obcecado, no Parlamento e no governo, com o prejuízo que pode causar ao outro. O PS quer tornar o governo incapaz, quer legislar em vez dele, quer ficar com os louros da oposição e denunciar a impotência do governo. E não quer dar os seus votos aos projectos do governo, a começar pelo orçamento, porque não quer ser cúmplice e quer ganhar votos para eventuais eleições. O PSD e o seu governo querem tudo exactamente ao contrário, o que quer dizer, tudo igual.

 

Utilizando os lugares comuns consagrados, o PSD e o PS não estão a servir os interesses do povo, nem os do público, estão a procurar satisfazer os seus. Hoje, o PSD e o PS não procuram o poder político para servir o povo, antes tentam satisfazer o interesse público para ganhar o poder. Ninguém é totalmente cínico ou sincero, ninguém é absolutamente velhaco ou bondoso. Todos têm de tudo um pouco. Em cada um, a verdade é a proporção de bom e de mau. No caso presente, sabendo o que sabemos, com as ameaças internacionais, com um governo minoritário, com os perigos do populismo, perante a previsão de dificuldades sociais, estes dois partidos têm a mais estrita obrigação de encontrar a solução de governo estável, sólido e competente.

 

É assim que se serve o povo. Ou o público.

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Público, 24.8.2024

sábado, 17 de agosto de 2024

Grande Angular - Para que servem os Pactos de Regime?

 A pergunta em título é de resposta múltipla. a) Para nada. b) Para disfarçar. c) Para enganar. d) Para adiar. e) Para evitar escolhas difíceis. f) Para transferir culpas por incompetência própria. g) Para responsabilizar os adversários. h) Todas as acima. A resposta certa é a última!

 

O “pacto de regime” é um mantra da democracia. O mais actual de todos. Já foi a educação. Cada vez que um político não sabia o que dizer, muito menos o que fazer, a saída era imediata: a escola! A frase começa por “a escola é muito importante para…” e termina com a identificação: a cidadania, a tolerância, o clima, a ecologia, a moral, os costumes e o civismo. Inventaram-se slogans agora com menos fulgor: “Educação para a saúde”. “Educação para a cidadania”. “Educação para o Património”. Com frases destas, evita-se a reflexão e a responsabilidade. E dá-se um ar de seriedade. Uma versão parecida era, por exemplo, “a cidadania começa na escola”. A fórmula dava igualmente para tudo. O que permitia culpar as gerações anteriores por defeitos e erros, ao mesmo tempo que remetia as soluções para as gerações futuras. Um “mantra” é coisa mágica. É feitiço. 

 

Agora, o mantra é o “Pacto de regime”. É antigo, mas tem cada vez mais saída e adeptos. Já houve tentativas no passado, nunca se chegou bem a vias de facto e o que se conseguiu falhou. Mas não retirou validade à bruxaria. O “pacto de regime” para a saúde é hoje o mais falado, o que tem mais adeptos, mas não é único. A educação, a luta contra a pobreza, a imigração e novamente a justiça estão entre os temas a que mais se alude para o referido “pacto”.

 

Como se trata de mágica, não é necessário tratar dos aspectos práticos. Mas tal é necessário. Na verdade, essas questões põem em causa o valor fundamental do “pacto”.  Como se faz um “pacto de regime”? Assinam todos, Presidente, Primeiro-ministro, Ministro da pasta, líderes dos partidos e presidentes dos grupos parlamentares? Não parece possível encontrar tal unanimidade. Nem responsabilidade. Como se pode tomar compromisso por longos períodos, sem ter em conta as gerações e as mudanças? Se é “de regime”, quem fica de fora? Se alguém ou alguns não querem assinar, já não é bem regime, mas quase. Tem o mesmo valor?

 

E a sociedade civil, trabalhadores, patrões, académicos e técnicos? Sem estes, um “pacto de regime” mais parece um acordo entre políticos, só entre “eles”, o que dá imediatamente mau aspecto. São sempre “eles nas costas do povo”. O que enfraquece a ideia de “pacto” e de “regime”. Mais valia recorrer a um dispositivo clássico chamado “referendo”, que aliás em Portugal tem má reputação e os partidos detestam.

 

Se o mais importante do “pacto” for a presença dos partidos políticos, dado que são eles que fazem os governos e os parlamentos, as perguntas óbvias são simples. A assinatura do líder partidário de hoje vale quanto tempo? Quantas legislaturas? E se a direcção de um partido, ou de vários, muda? Os novos líderes partidários ficam obrigados às assinaturas e aos pactos dos líderes anteriores? E se for um novo Ministro ou um novo Primeiro-ministro? Pode contrariar os “pactos” já assinados? Ou tem a obrigação de os seguir, como se fosse a lei do país? E se um novo governo entende, com a força do seu eleitorado, mudar o “pacto” e os seus dispositivos, como deve fazer? Mas se um governo pretende fazer a política nova, tem de pedir autorização aos restantes signatários dos “pactos”?

 

A acção legislativa fica, entretanto, limitada? Um parlamento não pode aprovar novas leis que contrariem os “pactos” precedentes? Mas não parece acertado limitar a soberania e a liberdade de um parlamento eleito, desde que as suas leis sejam legais e aprovadas pela maioria. Fica-se com a impressão de que um “pacto” tem duas possíveis existências. A primeira é autoritária e antidemocrática, obrigando as gerações futuras, os governos e as maiorias a respeitar decisões prévias. Decisões que nem sequer têm força de lei, muito menos de Constituição. São regras morais, ou crenças filosóficas e boas intenções que teriam mais força de lei do que as leis propriamente ditas. A segunda é de absoluta inutilidade e de mera propaganda. 

 

Não é por acaso, mas as ideias de “pactos de regime” surgem sempre em momentos estranhos. Com governos minoritários. Com oposições impotentes. Com presidentes hiperactivos. Com partidos egocêntricos. Em momentos de indecisão e transição. Surgem sobretudo quando um ou mais partidos se recusam a fazer o que deveriam, isto é, alianças parlamentares e coligações de governo, formais, duráveis e programáticas. Quando os partidos não querem fazer governo estável de maioria e de legislatura. Isto é, a ideia de “pacto de regime” surge sempre em momento de fraqueza, de indecisão, de cálculo interessado e de fuga à responsabilidade. 

 

O mais importante “pacto de regime” que se conhece tem um nome, Constituição. Esse é o “pacto”. Respeitado por todos. Só alterado em condições muito especiais, a fim de não mudar todos os dias. Suficientemente maleável para permitir viver em tempos diferentes.  Mesmo absurda em tantos aspectos, a nossa Constituição foi pacto que deu uvas. Um verdadeiro milagre. Permitiu 50 anos de vida, assim como sobreviveu a várias revisões, duas das quais atingiram a alma e o essencial, e ainda bem, pois vivíamos um quadro constitucional insuportável. Foram essas duas grandes mudanças (incluindo o essencial das estruturas económicas e o poder político) que permitiram que a Constituição sobrevivesse até hoje sem desastre de maior. 

 

Além da Constituição, há uma espécie de “pactos de regime” silenciosos, invisíveis, mas que têm sido muito eficazes. Nunca tratados como tal, mas discretamente aceites. Um é o que considera irrevogável a presença de Portugal na União Europeia. Nem todos aceitam, vários momentos vivemos nas últimas décadas em que a saída de Portugal da União ou do Euro foi defendida publicamente em campanhas eleitorais. Sem grande êxito, aliás. Também a participação de Portugal na NATO, de que é fundador e membro desde 1949, é tão sólida com um “pacto de regime” (e mais ainda, de dois regimes…), nunca foi objecto de assinatura formal entre partidos, mas quase todos a aceitam, com as reservas habituais dos comunistas que entendem que o país deveria sair. Um especial respeito pelas Forças Armadas faz também parte destes pactos invisíveis. Respeitados, em geral.

 

Pactos já temos. Falta é governar bem. Com maioria.

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Público, 17.8.2024

sábado, 10 de agosto de 2024

Grande Angular - Os culpados habituais

 As políticas públicas têm, entre nós, resultados muito variados. Há, ao longo dos anos, êxitos indiscutíveis, como nos casos dos serviços domésticos, da mortalidade infantil, da alfabetização e do desenvolvimento da ciência. Vamos admitir que os responsáveis por estes feitos são os governos (uns mais do que outros), as autarquias (com diferenças entre elas), a Administração Pública, as empresas e os cidadãos. É o que se chama uma história feliz. Todos contribuíram para o bem de todos.

 

Mas também há resultados negativos. Ou seja, erros, falhanços, ineficácia, injustiça e corrupção. Os responsáveis serão mais ou menos os mesmos, dos cidadãos aos governos, passando pela empresas e pelas autarquias. Só que há algo mais a dizer. Cada um culpa os outros pelos erros e atrasos. Cada partido, com anos de governo, culpa os anteriores e os sucessores. Os partidos sem experiência de governo culpam os outros. As autarquias culpam os governos e a Administração central, além dos partidos das suas oposições. Os cidadãos culpam quase todos: “eles”.

 

Será sempre assim. É muitas vezes assim.  O eleitorado lá vai fazendo distinções, por vezes acertadas, por vezes ilusórias, mas sempre verdadeiras pois são as suas escolhas. É frequentemente difícil apurar quem foi responsável pelos erros e pela inércia. A democracia é assim. Por isso a “não democracia” culpa tudo e todos, com os chavões habituais: “são uns inúteis”, “ladrões” ou “corruptos”. Não se vai lá muito longe com esta disposição de espírito, mas a democracia é assim. Bom é saber guardá-la, com as suas imperfeições e as suas insuficiências.

 

Este relativismo sereno não pode ocultar os casos mais sérios. Há na verdade situações e falhanços que merecem análise atenta. Não propriamente para designar o culpado e encostar o responsável no pelourinho. Mas para perceber porquê. Só depois disso será possível fazer melhor.

 

É difícil eleger os casos mais graves e que melhor nos podem servir para aprender. Mas, nos tempos que correm, o primeiro parece ser o Serviço Nacional de Saúde. Aquele que foi, para muitos e durante anos, a pérola da democracia portuguesa e o caso mais brilhante das políticas públicas, transformou-se, diante de todos, com notícias sucessivas, no caso mais flagrante e no insucesso mais cruel. O fiasco das urgências, das maternidades, da obstetrícia e das cirurgias ultrapassa os limites do entendimento. Dinheiro? Investimento? Previsão? Organização? Vencimentos? Ganância? Concorrência? Mudança de costumes? Alteração da procura? Tudo pode ser invocado. Mas tudo era previsível. E para tudo havia recursos. O que faltou? O que falhou? Por que razão PS e PSD, ao longo de décadas de governo, não souberam gerir, não conseguiram corrigir, falharam as previsões, descuraram o sistema e deixaram o SNS entregue ao acaso e aos profissionais que, contra o vento, tentam fazer muito mais do que os seus deveres?

 

Segundo caso de incompreensível incompetência, o do aeroporto de Lisboa. Após dez, vinte, trinta anos de hesitação, de promessas, de estudos, de contradições, de certezas, de garantias e de demagogia, ainda estamos nas vésperas das decisões, na antevéspera dos concursos e longe de certezas sobre a dimensão, a localização, o equipamento e a modalidade. Ao longo das décadas, vários líderes do PS e do PSD, Primeiros-ministros dos dois partidos e diversos ministros de ambos, anunciaram convicções e tomaram decisões. Contradisseram-se e desmentiram-se. Negaram o que fizeram e mudaram de opinião. E não foram só os partidos, os governos e a Administração pública, foram também as mesmas empresas de auditoria, de projecto, de consulta, de advogados, de engenharia e de lobby. O aeroporto já teve pelo menos cinco localizações, três variantes e quatro modalidades. Com frequência, as mesmas pessoas ou as mesmas instituições disseram, em poucos anos, o que se devia fazer e o seu contrário.

 

Terceiro caso de inegável incompetência, de absoluta insensatez e de incompreensível falhanço: o caminho-de-ferro, a rede de comboios, o sistema antigo, as novas linhas e o famigerado TGV. O que se passou realmente nestes trinta anos durante os quais todos os governos e os seus dois grandes partidos, PS e PSD, prometeram renovar, revalorizar, equipar, modernizar, aumentar e melhorar as redes existentes e construir novas e todos, sem excepção, fizeram exactamente o contrário? Fecharam centenas de quilómetros de linhas. Apodreceram outros tantos. A “grande velocidade” foi adiada décadas. Os equipamentos ficaram obsoletos. O sistema actual é um verdadeiro escândalo de desconforto, de insegurança e de ineficácia.

 

Quarto caso a merecer análise, o estado a que a justiça chegou. A morosidade é proverbial. A tendência para a prescrição inscreveu-se nas tradições nacionais. A luta entre corpos profissionais, agressivos e auto-suficientes, atingiu cumes inéditos. O uso e abuso de escutas telefónicas e a gestão das mesmas ao longo do tempo e em conformidade com as qualidades dos “escutados” ou de suas vítimas desesperam qualquer pessoa ciosa do Estado de direito e dos direitos dos cidadãos. A divulgação de segredos e de conteúdos de escutas é hábito que distorce o direito e o sentimento de justiça. A evidente desigualdade social que a justiça portuguesa confirma e dilata é indiscutível. A corrupção continua a minar impunemente os alicerces da democracia. A incapacidade de adiantar e terminar processos que envolvam muito dinheiro, políticos reputados e ricos poderosos começa a ser lendária. A perda de confiança na justiça, por parte de tantos cidadãos, é notória e perigosa. A justiça vive em desequilíbrio profundo, favorecendo alguns profissionais, certos corpos e os poderosos. Com uma característica especial: como toda a gente depende da justiça, como quase todos aspiram a justiça e como muitos receiam represálias, estabelece-se uma crença: não é assim tão grave, a justiça ainda faz muito, são só uns casos excepcionais… Verdade é que parece ser o caso mais flagrante de impotência do legislador, de fraqueza do soberano e de incapacidade dos reformadores. 

 

PS e PSD têm de comum uma história de serviços prestados ao país e à população. Essa história é indiscutível. Mas também têm de comum uma enorme ineficácia e um estranho hábito de uso e abuso do poder político. Como têm de comum terem deixado decapitar a inteligência e a capacidade técnica do Estado, deixando-o à mercê da demagogia e dos vampiros habituais.

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Público, 10.8.2024

sábado, 3 de agosto de 2024

Grande Angular - Pesadelos dos dias de Verão

É uma das ideias mais sinistras, ou talvez apenas hilariante, da história da democracia portuguesa! O Parlamento “chama”, convoca ou solicita ao Presidente da República que se apresente numa Comissão de Inquérito Parlamentar! A ideia, se é que se lhe pode chamar assim, foi do partido Chega. O regimento diz que um partido com número suficiente de deputados pode impor uma comissão de inquérito sem que esta tenha de ser aprovada pela maioria. Aquele partido tem essa quantidade. E como é seu hábito, utiliza os meios postos à sua disposição pela democracia para inviabilizar, ridicularizar e eventualmente destruir a mesma democracia. O plano é inteligente. Mas tão facilmente desmascarável que surpreende que os outros partidos, alguns dos outros partidos se deixem embalar.

 

O Parlamento não pode nem deve convidar ou convocar o Presidente da República! Se o fizer, deverá simplesmente ser mandado à escola ou ao sanatório. O Parlamento também tem o dever de cumprir a Constituição e as leis, tem a obrigação de não convidar ou convocar o Presidente da República. O Parlamento não tem essas competências.

 

O Presidente da República não deve ir ao Parlamento prestar declarações ou sequer esclarecimentos, não deve hesitar em responder, não precisa de ponderar na resposta, nem sequer de medir as palavras. Não é não! O seu dever é não ir ao Parlamento e dar à Comissão de Inquérito uma ensaboadela constitucional.

 

Já são conhecidas as opiniões de gente competente, de esquerda e de direita, da academia e da política, de funções públicas e privadas, para que se perceba que a questão nem sequer é realmente polémica. Estamos perante uma provocação medonha de carácter político e constitucional.

 

É, todavia, curioso ver os comportamentos dos outros partidos. Parece cada vez mais evidente que estes, alguns destes, conforme as ocasiões, não se importam de utilizar o Parlamento, as hesitações regimentais, as provocações do partido Chega e as tentações pecaminosas dos outros partidos para incomodar o Presidente da República, o Governo, os partidos da oposição…

 

Já com os casos da banca e da TAP, agora com as gémeas, se tinha percebido que o partido Chega utilizaria este e outros dispositivos para pôr em crise o Parlamento, o Governo, o Presidente e Constituição. Até agora, a habilidade tem funcionado. Ainda por cima, os pequenos partidos, com especial brilho para o Bloco, aproveitam ao máximo o dispositivo e as iniciativas dos outos. O caso das gémeas só chegou àquele estado de deliquescência, de má-criação demagógica e de hostilidade porque os outros partidos deixam correr, contribuem com perguntas e questões, ajudam à missa e são mesmo por vezes tão agressivos quanto os autores da iniciativa.

 

Dizem que o Verão político é propício à coreografia e a jogos florais para passar o tempo. Como há quem diga que é esta a estação do disparate. Tudo isso é possível e talvez verdade. O certo é que não estamos em tempo adequado a essas cenas. O mundo e a Europa estão em mau estado e sob ameaças diversas, convinha que estivéssemos preparados para organizar o nosso futuro colectivo. Ora, aquilo a que assistimos são exercícios de rasteiras e chicanas com o fim de aumentar as sondagens e de evitar ou incitar a convocatória de novas eleições.

 

O governo do PSD está a sair-se melhor do que se pensava, mas tem o seu futuro apertado: ou se mantém por impotência da oposição, à espera de aumentar os votos; ou é impedido de governar e fica à espera de ganhar votos como vítima. O PS está a sair-se pior do que se esperava. Vê-se na cara que estão entalados entre a oposição que pode derrubar o governo e a doce oposição de Sua Majestade que o pode encostar às cordas por muitos anos. O partido Chega está a sair-se como se esperava, ágil, arruaceiro e irresponsável como é o seu carácter, à espera que a democracia lhe ofereça tudo o que não merece: tribuna e importância. De qualquer modo, já conseguiu algo de valioso para si: os grandes partidos democráticos não sabem como se comportar diante de um brigão que utiliza a paz que lhe oferecem. Quanto aos pequenos partidos, pouco ou nada se espera, a não ser uma voz de vez em quando. Pena é que se deixem tantas vezes absorver pelas manobras demagógicas dos debates e dos inquéritos parlamentares.

 

Entre os partidos e neste Parlamento alguém ouviu ou presenciou alguma discussão séria sobre a posição de Portugal na Europa, diante dos problemas que se abrem todos os dias, das dificuldades francesas e alemãs, das provocações húngaras, dos problemas polacos, da tragédia ucraniana e da reforma da NATO? Alguém esteve presente diante de um debate sobre a evolução da política americana depois das eleições de Novembro? Alguém deu conta de uma reflexão pública e partilhada entre os partidos, o governo e o Parlamento sobre a enorme crise em curso no Próximo Oriente e no Mediterrâneo com o terrorismo islâmico e o massacre israelita?

 

Vindo mais para casa, onde está a acção conjunta, que envolva vários partidos ou instituições, a propósito de situações urgentes que não se resolvem com flores de estilo e manobras habilidosas? Já se assistiu a um debate sério sobre as Forças Armadas quase em vias de extinção? Já alguém ouviu falar de um debate e de uma acção de órgãos de soberania e de partidos sobre a tão crítica justiça? Já se reparou que as filas de espera nas ruas e diante dos serviços de imigração ou das Lojas do Cidadão não se resolvem com minorias de governo, com duodécimos nem com inquéritos parlamentares armadilhados? Já alguém assistiu a uma discussão séria e produtiva no Parlamento e nas instituições sobre as reformas urgentes do Serviço Nacional de Saúde e sobre a decadência dos cuidados de saúde pública ao longo dos últimos dez ou vinte anos? Já alguém pressentiu um qualquer debate ou uma conversa sobre a possibilidade de encontrar uma solução política maioritária e capaz de olhar para o que falta? Já alguém ouviu rumores e reflexões sobre os problemas e não sobre manhas e tropelias?

 

Infelizmente, o que parecem ser pesadelos de noites de Verão são sinais profundos e factos reais de crise séria, que não se compadece com coreografia, nem com pezinhos de dança e bailado artístico, nem com o habitual cinismo. Por que esperam os partidos democráticos? Por mais uma sondagem?

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Público, 3.8.2024 

sábado, 27 de julho de 2024

Grande Angular - Comissões de inquérito

 mais famosa Comissão de Inquérito Parlamentar era, até agora, a que tratou do “Caso Camarate”, isto é, o incidente com o avião que transportava Sá Carneiro e Amaro da Costa e seus acompanhantes, todos vítimas mortais. O caso era em si suficiente para ficar na história. Mas há mais motivos para não esquecer. Comissões de Camarate houve dez! E mais de trinta anos! A primeira foi criada em 1982, dois anos depois da “ocorrência”. A última, a décima, foi criada em 2012 e terminou os seus trabalhos em 2015. Nem todas as anteriores chegaram ao fim dos mandatos, mas as que chegaram aprovaram diferentes conclusões, desde a certeza da avaria, até ao erro humano e às dúvidas não fundamentadas, para acabar em suspeitas de atentado e até, finalmente, a garantia de que se tratou de crime. A vida deste inquérito é um caso irrepetível de má conduta, ineficácia, envolvimento político em processos judiciais, legislação absurda e tropelias de toda a espécie. Houve para tudo. Menos para se fazer justiça. Foram comissões de inquérito para a chicana, para o incómodo entre facções partidárias. Havia quem não quisesse inquérito. Como havia quem garantisse que se tratava de acidente, não existia nada para inquirir. Procurava-se incomodar sucessores de Sá Carneiro e de Amaro da Costa. Tentava-se descobrir uma conspiração internacional, mesmo antes de tentar descobrir a verdade. A última comissão terá talvez feito o melhor trabalho de todas. É provável que o seu relatório final seja certo e conclusivo, nunca se saberá realmente, mas foi fora do tempo, sem consequências penais ou políticas.

 

Nestes mesmos trinta e cinco anos, várias comissões parlamentares de inquérito, CPI, foram aprovadas ou recusadas, algumas delas deram espectáculo e tempo de antena. Foram perto de 90 as CPI aprovadas. Onze tinham como tema de investigação os bancos: sistema bancário, TOTTA, BPN, BES, CGD, BCP e BANIF. Boa parte destas comissões não serviu para nada. Ou não acabaram os seus trabalhos, ou não chegaram a conclusões. Por defeito próprio ou porque as legislaturas acabaram. Ou as conclusões eram ditadas pela maioria política, o que retira valor ao trabalho. Mas também houve casos em que as CPI deram origem a procedimentos de relevo. O que se passou, por exemplo, com o BES ou com a colecção Berardo, o BCP e a CGD, terá talvez começado ali, nas salas de inquérito da Assembleia. Parece que, em conclusão, houve algumas comissões que serviram para alguma coisa.

 

Nos últimos anos, a actividade de inquérito tem vindo a crescer ou a prometer. Para a presente legislatura, já há várias propostas feitas, sendo que só uma, a das “Gémeas”, iniciou os seus trabalhos. Antes disso, em legislatura anterior, o computador do assessor de Galamba, a demissão da presidente da TAP, o vencimento de secretária de Estado e a indemnização da administradora da mesma TAP já tinham brilhado como autênticas vedetas. 

 

A partir de agora, a CPI mais famosa pode bem ser a do “Caso das Gémeas”, tal como ficou designado pela voz corrente. O que se tem visto nas televisões arrepia! Tudo se pode ver ali. Guerrilha política. Telenovela de mau gosto. Insídia. Cinismo a jorros. Falta de educação e de cortesia. Sem hesitar, com respaldo em normas jurídicas obtusas, há deputados que exigem ver a correspondência privada, seja do Presidente da República, seja a dos vários protagonistas, mãe, médico e amigos das “Gémeas” ou até de pessoas apenas evocadas. Disse bem: correspondência privada! Como entendem exigir a apresentação de documentos privados de empresas estrangeiras. Como deputados, são maus inquiridores. Como inquiridores, são maus deputados. Como deputados inquiridores, têm dificuldade em perceber que há direitos dos cidadãos que constituem limites à sua acção.

 

Este inquérito ao “caso das Gémeas” é o mais recente exemplo de aviltamento de uma nobre faculdade, a de representar e apurar a verdade. Desde o início que se percebeu que a ideia era uma espécie de institucionalização da velhacaria, do disfarce e da dissimulação. Os autores da proposta, os seus principais actores e os protagonistas, de quase todos os partidos, lutam contra o Presidente da República, contra os governos, contra outros partidos, pelas suas reputações pessoais e partidárias… Quem acompanhe, pela televisão, estes debates, ou antes, estes interrogatórios, perceberá que o que está em causa é a política mais rasteira que se imagina. Com o acréscimo de se tratar de encenação perfeita. Em nome da verdade, a favor da igualdade de direitos e por conta da luta contra as cunhas, cria-se um espectáculo de justiça exemplar. Absolutamente enganador. O caso, pela mãe e pelas crianças, é comovedor. Pela cunha e pela mentira, é repelente. Pelo oportunismo e pelo cinismo, é desprezível. Mas é provável que já se saiba tudo o que há para saber. Que os juízos morais já estejam feitos. E que nada mais haja a fazer. É difícil levar a tribunal o Portugal das cunhas, a mentira dos notáveis e a arrogância dos deputados.

 

Estas comissões de inquérito sofrem de falta de eficácia e de boa organização do trabalho. Há sessões que podem durar cinco, dez ou mais horas. Há depoimentos que duram mais do que interrogatórios de uma polícia política. As instalações ao serviço dos deputados, dos inquiridos e das testemunhas, assim como dos jornalistas e assistentes, são horrendas, toscas, não dignas de trabalho parlamentar sério, sem cortesia nem facilidades de trabalho. Os deputados não se dão ao respeito. As testemunhas são maltratadas. Os visitantes são desprezados. Os inquiridos sentam-se nas esquinas das mesas, são tão respeitados como criminosos em tribunais.

 

Muitos deputados julgam que têm ali tribuna para a história. Fazem perguntas longas como relatórios. Maltratam as pessoas. Desconfiam dos inquiridos ou insultam as testemunhas. Debatem e exprimem as suas opiniões como se estivessem em sessão plenária, não em comissão de inquérito. Julgam que são da polícia judiciária. Pensam que são procuradores. Acreditam que são detectives. Comportam-se como juízes. Acham-se dotados de poderes acima dos mortais. Com algumas excepções de deputados que quase fizeram a sua reputação ali, pelo rigor e pela qualidade do seu trabalho, a maior parte dos inquiridores está preocupada com os seus camaradas, os seus eleitores, os jornalistas e os seus fans.

            

Solução? Ter paciência e esperar pelas próximas gerações.

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Público, 27.7.2024

sábado, 20 de julho de 2024

Grande Angular - Complexos de superioridade

 Somos tão melhores! Somos, quem? Conforme o caso, nós somos os Portugueses, os Europeus, os democratas, os ocidentais, os brancos, os cristãos e os intelectuais.

 

Somos melhores do que os outros. Os outros, quem são? São os Americanos, os Russos, os Asiáticos, os Africanos, os Judeus e os Muçulmanos.

 

Muitos Europeus, de esquerda e de direita, desprezam os americanos, têm medo dos russos, consideram os chineses inferiores e pensam que estão acima dos africanos. Os Europeus de esquerda acrescentam a esses preconceitos alguns juízos mais sofisticados. Os americanos seriam incultos, os russos brutos e os chineses atrasados. Mas sobretudo os Europeus consideram-se superiores moral, política e intelectualmente. Têm melhores sentimentos, história mais interessante, leram mais livros, são mais democratas, têm passaporte e falam várias línguas.

 

Os americanos seriam bebés grandes, atrasados mentais, populistas, prontos para matar os povos indefesos, amantes da violência, imperialistas e apenas ciosos de liberdade quando esta lhes traz dólares. A maioria dos americanos, para muitos europeus, de esquerda como de direita, é composta de gente analfabeta, dada a desportos violentos, a hambúrgueres e cerveja. Os americanos, que votaram Reagan, Bush e Trump, seriam idiotas, imperialistas, evangelistas e racistas.

 

Os franceses, com excepção dos intelectuais e dos profissionais da moda, seriam pequeno-burgueses de simpatias extremistas, racistas de tradição, exploradores de árabes, convencidos de que podem mandar na Europa. Os que votam nas direitas, aliás cada vez mais, seriam fascistas.

 

Os alemães são sempre os mesmos, pesados, brutos, exploradores, violentos, amantes de cerveja, eternos invasores dos seus vizinhos, disponíveis para aventuras fascistas, usaram os franceses para se promoverem a democratas, mas agora querem é mandar em todos. E só pensam, evidentemente, em conquistar os vizinhos e comprar as suas indústrias.

 

É assim que os Europeus se enganam.

 

Estão em curso mudanças profundas, tão vastas e tão rápidas como raramente se viu na história. Também é verdade que tudo anda mais depressa. Que tudo se sabe mais rapidamente. E que tudo e todos comunicam e estão ligados a todos e tudo. 

 

Muitos não souberam perceber o que se passava com as nações. Com as comunidades nacionais. Com as comunidades de língua, cultura e tradição. Consideraram que tudo isso era nacionalismo de pacotilha, conspiração obscurantista e capitalismo selvagem. Quando não fascismo puro e duro. E de qualquer modo racismo. Há uma falsa racionalidade na política democrática contemporânea que evita a nação e a história. As tentativas de reescrever a história, de restituir, de devolver, de reinterpretar e de traduzir em dialecto correcto a herança histórica europeia estão a destruir a democracia.

 

Muitos não conseguem entender que as populações estão em mudança acelerada, inescapável, em processo que ultrapassa as vontades de um governo ou de um só país. A circulação de pessoas, a miscigenação e as migrações são partes estruturais da história do presente. É impossível estancar, com democracia, tais tendências. Mas é possível ordenar, controlar, legalizar e administrar. Com o assentimento dos povos. Com tolerância. Caso contrário, a explosão racista e a desordem estão aí, ao virar da esquina. E a falsa igualdade generosa acaba por ser o mais eficaz estímulo ao mercado negro de pessoas, à ilegalidade e à exploração mais vil que se pode imaginar.

 

O contexto internacional é um incentivo à ansiedade. Os Russos procuram uma vingança histórica. Os Chineses querem consolidar um lugar no posto de comando das potências. A Índia não quer ficar para trás. A Europa está a perder e não quer perceber. Os Estados Unidos estão a deixar de ser hegemónicos, sendo embora ainda dominantes, mas não sabem como deixar de o ser e não toleram essa hipótese. África, América Latina e Ásia, que estão à venda a quem der mais, a quem envie ajuda militar e capitais, deixaram de ter fidelidades históricas ou amizades electivas. 

 

É uma verdadeira metamorfose aquilo de que se trata. Ao que dizem, para os animais que passam por essa via, é dos momentos mais dolorosos da vida. As nações e os continentes estão actualmente num processo desses, não se duvide. Quem não o percebeu será quem mais sofrerá. Os que menos percebem são evidentemente os que mais perdem na balança de poderes. Estados Unidos à cabeça. Europa a seguir. Estas duas potências, separadas ou em conjunto, deveriam repensar o seu lugar no mundo.

 

Na Europa, há várias reacções possíveis contra estes processos. Mas há sobretudo três erradas. A primeira consiste em negar e considerar que a Europa será sempre a grande Europa, mesmo que já não seja. A segunda é a aceitação e a rendição, deixando que a Europa se entregue aos grandes pesos pesados no mundo, a América, a Rússia, ou mesmo a China, quem sabe. A terceira é falar, denunciar e vituperar, sem nada fazer. Isto é, considerar que a crítica é suficiente para convencer povos, demover amigos e derrotar adversários.

 

A comparação entre o Parlamento Europeu, calmo, aparentemente estável, com a actual vida política nos Estados Unidos e em França, sem falar de Israel e da Ucrânia, deixa-nos uma suave e doce impressão. A tentativa permanente de encontrar uma base racional e de diálogo merece aplauso e dá-nos consolação. Mas não se apaga a sensação de que não se trata de racionalidade e serenidade, antes é sonambulismo e falta de poder.

 

Para tentar fazer o nosso lugar no mundo em que vivemos e sobretudo aquele em que vamos ter de viver, importa começar por perceber. Por que razões os nacionalistas, a extrema-direita e os radicais conservadores protestam, criticam e acabam por ganhar eleições e encontrar-se em via ascendente nas Américas, em França, na Itália, na Alemanha, na Hungria. Por que razões as migrações descontroladas provocam racismos de todos os lados, dos nacionais e dos estrangeiros. Por que razões a abstenção e o afastamento político da maior parte dos eleitorados persistem em crescer. Por que razões as novas teorias do género, das minorias, do legado histórico, da restituição e do arrependimento estão a destruir a Europa e a liberdade.

 

Quando os Europeus começarem a perceber, então talvez se possa fazer luz.

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Público, 20.7.2024

sábado, 13 de julho de 2024

Grande Angular - Pare, Olhe, Não escute!

 As últimas semanas têm sido intensas com os assuntos relativos à Justiça. Há momentos em que se pensa em pequena guerra civil. Em rivalidade corporativa ácida. Em luta institucional sem tréguas. Ou conflito político irreparável. É provável que todos estes epítetos sejam adequados. Até insuficientes. Certo é que, tal como os vulcões, há turbulência grave periódica. Por causa das relações entre corpos da Justiça, por ingerência dos governos nos processos, por tentativa dos magistrados e dos procuradores de influenciar a política, por acção dos sindicatos, por estas e outras razões, há quase quarenta anos que os episódios graves se sucedem. Há outros tantos anos que os termos de “crise da justiça” e “justiça em crise” fazem parte do vocabulário. A ponto de se tornarem lugares comuns. E realidades com as quais estamos condenados a viver.

 

A corrupção parece estar no centro de tudo. Mas é só aparência. Mesmo com a porta giratória “Política/Justiça” e com governantes arguidos, vigiados, presos e condenados, há sinais de algo bem mais importante e mais grave: são as condições de exercício do poder político, seja pelas autoridades democráticas e dos partidos, seja pelas autoridades judiciais. Entre as primeiras, não falta quem queira condicionar a justiça e estabelecer regras de imunidade e de impunidade para os seus gestos. Entre as segundas, crescem e multiplicam-se os que pretendem capturar a democracia, condicionar a vida política e construir para si próprios um estatuto de intangíveis. 

 

Esta luta e este enredo duram há muitos anos. Com ganhos ora de uns ora de outros. Infelizmente, nas actuais circunstâncias, qualquer optimismo relativamente às “reformas da justiça”, ainda possível há dez ou vinte anos, não tem hoje fundamento. Os métodos e os vícios de trabalho, a desconfiança, a sede de poder e a vontade de vingança fazem com que não se veja quem possa levar a cabo as tais reformas. Não se vê quem. Quem, pessoa. Quem, partidos. Quem, autoridade. Os entendimentos entre partidos, corpos judiciários e restantes protagonistas, incluindo académicos e advogados, deixaram de ser possíveis. Esperam-nos anos de resignação e submissão a uma má justiça, até que novas gerações, gradualmente, consigam construir os alicerces e as bases políticas, legais, institucionais e constitucionais para uma justiça decente. Até que os eleitores, os políticos e os magistrados se entendam quanto ao essencial papel da justiça para a liberdade e a democracia. Até que novas gerações consigam, peça a peça, lei a lei, instituição a instituição, método a método, fundar a justiça na democracia e garantir a democracia com a justiça. Podemos, evidentemente, começar já. Quanto mais cedo, melhor. Mas tenhamos a certeza de que tudo vai demorar muito tempo.

 

Na crise actual, a escuta telefónica ocupa um lugar primordial. Esta simples ferramenta de investigação ganhou uma dimensão dramática. Foi graças às escutas, à sua utilização longa e intensiva; à sua proliferação sem critério; ao seu uso arbitrário; à comercialização dos seus resultados; e às manobras institucionais de cópia, apagamento e distribuição, que bom número de processos surgiram nos tribunais, nas polícias, nas televisões e nos jornais.

 

Já tudo foi dito sobre as escutas. Curiosamente, quase toda a gente aceita a sua utilidade. O que se discute é a parte operacional. Quantas pessoas? Quanto tempo? Quem decide? Quem avaliza? Como se guardam? Escutam-se só as pessoas de quem se desconfia ou também terceiros? Escutam-se pessoas, por métodos de rastreio, logo se verá se vem alguma coisa? Ou escutam-se apenas pessoas com culpas? Escuta-se quem corrompe ou quem é corrompido? Escuta-se quem comete crimes, quem trafica droga, armamento e sexo, quem prepara terrorismo e quem navega na alta finança? 

 

Tudo isto se discute, inclusivamente os procedimentos destinados a preservar direitos. Com e sem aval de juiz. Com pequenos ou grandes prazos de validade. Com e sem rastreio de inocentes. Com duração de escuta de meses ou anos. Com períodos de conserva de registos durante anos. Toda a gente tem ideias sobre estes temas.

 

Só falta de facto discutir o mais importante: devem ou não as escutas ser feitas e autorizadas? De todos os métodos de investigação, as escutas telefónicas e similares (microfones escondidos em casa, no emprego e no carro, câmaras de filmar disfarçadas) estão certamente entre as que mais ferem os direitos do cidadão e as que mais contrariam um invisível pacto de lealdade que as democracias deveriam respeitar. É um dos meios de investigação mais violentos. Tal como buscas a domicílio sem mandato. Ou intrusão domiciliária. Ou violação da correspondência. Ou perseguição disfarçada. Ou tortura e interrogatório agressivo. Ou tomada de reféns para obrigar à confissão e à denúncia. Ou chantagem e ameaças contra familiares e amigos. Alguns destes métodos são permitidos legalmente, muitos são proibidos ou de tal modo controlados que quase estão proibidos. Mas as escutas são as que mais vezes são usadas e talvez as que permitem mais abusos.

 

É estranho que se trate das escutas como mera técnica para a qual é necessário um processo de salvaguarda. Mas o problema é que a escuta é uma violação de direitos. Pura e simplesmente. De direitos que deveriam ser respeitados. E de métodos que deveriam ser banidos. Como a tortura. A busca e a vigilância domiciliária. A violação de correspondência.

 

Aliás, não se sabe com rigor, nem sequer com uma qualquer aproximação, o que as escutas evitaram. Ataques de terrorismo desmontados? Em Nova Iorque, em Paris, em Londres, em Madrid, em Moscovo, em Israel, na Cisjordânia? Crimes prevenidos? Droga apreendida? Contrabando de armas dissuadido? Fraudes financeiras evitadas?

 

Quem defende as vantagens da escuta tem a obrigação de assumir as suas opiniões. De mostrar as vantagens do procedimento. De garantir que não se trata de direitos fundamentais. De mostrar como os traficantes, os terroristas e os bandidos necessitam das escutas para as suas acções e não têm meios mil vezes mais sofisticados para comunicar.

 

A escuta, a vigilância, a intrusão e a perseguição, legais e ilegais, são hoje métodos correntes e aceites nas sociedades, sobretudo nas ditaduras, mas também muito nas democracias. É necessário começarmos a pensar e a discutir as escutas como uma questão de direito fundamental e, não apenas como um processo de investigação. Proibir as escutas é dar uma ajuda à liberdade e aos direitos dos cidadãos.

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Público, 13.7.2024

sábado, 6 de julho de 2024

Grande Angular - O futuro começa em casa

 Grande número de comentadores comporta-se como políticos: definem programas e tomam partido, não duvidam. Semelhante número de políticos comporta-se como comentadores: especulam, prevêem alianças e analisam as hipóteses de equilíbrios futuros. É interessante. Pode ser formativo. Aprende-se sempre qualquer coisa. Mas pouco adianta.

 

Governantes, dirigentes partidários e comentadores, quando não são os mesmos, passam grande parte do seu tempo a congeminar e a atrever-se. As discussões sobre as perspectivas e as expectativas dos partidos, designadamente as possibilidades de alianças e as probabilidades de eleição antecipada, são igualmente curiosas, informadas e estimulantes. Mas quase absolutamente inúteis. Graças à televisão, hoje não se faz política, comenta-se.

 

Alguns dos aspectos mais importantes da vida nacional ou algumas das exigências mais urgentes passam ao lado da cena política actual ou ficam fora das áreas de interesse. Como criar um bloco político maioritário, mesmo feito de partes diferentes, capaz de preparar o país e organizar o espaço público nos próximos anos? Qual é o programa político essencial e prioritário capaz de responder duravelmente às necessidades mais gritantes da sociedade? Como responder ao crescente desconforto?

 

Podem ser outras perguntas. Mas o importante é ver o que realmente tem interessado os partidos e os políticos. Como fazer escorregar o PSD? Como retirar votos ao PS? Como liquidar as hipóteses de bloco democrático moderado? Como ferir o Chega? Como obrigar os outros partidos, sempre os outros, a fazer o que não querem? Fazer bem, para o governo, é simplesmente retirar votos ao PS e ao Chega. Fazer bem, para o Chega, é fazer com que tudo corra mal. Fazer bem, para o PS, é tornar a governação do PSD impossível. Fazer bem, para o PCP e o Bloco, é incomodar e dividir o PS. Todos querem que sejam os partidos e o Parlamento a governar contra o governo. Pelo seu lado, o governo quer governar contra ou apesar do Parlamento.

 

A direita radical vocifera, nada tem a oferecer a não ser desordem. A direita moderada perdeu causa e ímpeto, engana-se a si própria. A esquerda moderada está atarantada, provavelmente em vias de divisão. A esquerda radical vive o seu Outono crepuscular, tão auto-suficiente quanto inútil. Mas é com estes que temos de viver, não com Sebastião ou Salvador. Nem com negros amanhãs.

 

Não há praticamente voz com esperança. O optimismo do governo é falso e disfarçado. Faz lembrar aquelas crianças com medo, a percorrer corredores sombrios e a murmurar “não tenho medo, não tenho medo”! A esperança risonha da oposição reside na expectativa de que tudo corra mal, que os portugueses vivam pior. Ora, todo este ambiente falso e postiço contrasta com as tonalidades do tempo que vivemos, um dos momentos mais perigosos da idade contemporânea. As aflições do mundo, que são medonhas, terão inevitavelmente efeito em Portugal. Mas os portugueses não querem saber. E os dirigentes não querem que se saiba.

 

Portugal é um país pequeno, relativamente pobre, pouco sabedor e mal preparado. Sem o estrangeiro amigo, isto é, sem o Ocidente, o país sofre e declina. Já houve tempos, há séculos, em que o nosso país tinha voz e teve um papel. Motor ou vanguarda, como lhe quiserem chamar. Deu um contributo para a história do mundo muito superior à sua dimensão e à sua aparente capacidade. As circunstâncias globais e a determinação dos portugueses conjugaram-se para uma era excepcional. Nada se repete. Hoje, as circunstâncias ultrapassam-nos. A dimensão, a sabedoria, a fortuna, a força e o trabalho exigidos para tratar do mundo estão fora do nosso alcance. Os portugueses dificilmente contribuirão de forma ousada para a paz e o progresso da humanidade. Mas poderão seriamente contribuir para a sua própria prosperidade.

 

Em vias de perder importância mundial, nas vésperas de crises políticas inéditas e sob o risco de fragmentação a curto prazo, a Europa é fonte das maiores inquietações. Portugal vive mal com uma Europa em crise. A Europa já não é um continente quase dominante, muito menos hegemónico. É doloroso perder aquele que foi o seu papel durante séculos. A decadência nunca foi boa conselheira. Nem fácil de viver. Os Europeus vivem muito mal as ameaças externas, a desunião e a desordem.

 

A perder a sua indiscutível hegemonia, a América prepara-se para uma verdadeira explosão política. Qualquer que seja o resultado das eleições deste ano, a América vai-se afastar ou deixar cair a Europa e alguns dos seus aliados. Os americanos reagem muito mal quando não são obedecidos e respeitados. Pior ainda quando se preparam para viver num mundo em que já não mandam, mas com o qual têm de compor.

 

A China é a grande novidade no mundo. Secularmente espezinhada, ferozmente explorada, sem democracia nem liberdades, com pouco respeito pela vida humana e com desdém pela cultura e pela história, aquele grande país prepara a sua vingança milenar e vai querer, pela primeira vez, influenciar o mundo e obrigar os outros povos, não apenas a respeitá-la, mas também a obedecer-lhe. Uma das dificuldades reside no facto de o mundo não saber como tratar com uma China vencedora e dominadora.

 

A Rússia voltou a transformar-se na pior ameaça contra a Europa e a democracia. Com enormes recursos de matérias-primas, mas com evidentes dificuldades económicas, a Rússia recupera a sua posição de parceiro do terror nuclear, mas perdeu o seu papel de exemplo e de influência. Volta ao seu lugar de protagonista da violência imperialista. De ninho de oligarcas e de berço de terroristas. Qualquer vitória russa é uma derrota da Europa.

 

O Próximo Oriente, que não é uma potência, mas sim um vulcão, por razões próprias e alheias, por petróleo e finanças, contribui eficazmente para a desordem universal que se prepara. Completada por uma África esfomeada e desordeira.

 

É neste mundo em perfeita convulsão, com futuro desconhecido e sorte incerta, que Portugal deve procurar o seu lugar. Com a garantia de que não pode influenciar, mas com a certeza de que deve defender-se e preparar-se. Se às forças políticas e militares que nos ultrapassam, acrescentarmos as ameaças climáticas e o pesadelo demográfico, depressa veremos que nos esperam tempos perigosos. Para os quais nos devemos preparar. Na Justiça, na saúde, no equilíbrio social, na educação e na criação de riqueza. Se não nos prepararmos, ninguém o fará por nós. Pelo contrário: os outros apenas tornarão as coisas piores. O mundo já está a arder, Portugal ainda não.

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Público, 6.7.2024