sábado, 30 de setembro de 2023

Grande Angular - A Europa em perigo

Não é a luta de classes que ameaça a Europa e a paz. Nem o espectro do comunismo, reduzido agora à ínfima espécie. Pode ser que a globalização acelere a decadência europeia. Mas é sobretudo, uma vez mais, como quase sempre na história, a questão nacional que ameaça. As nações, os Estados nacionais e as ambições dominadoras manifestam-se e não se encontram respostas neste formidável arranjo que é o da União. Talvez seja a mais sólida aliança política pacifica da história recente, mas hoje revela-se frágil e insegura. Incapaz de progresso federal, aliás arriscado. Mas também inapta para resolver as perenes questões nacionais. Sem ultrapassar esta velha certeza: a de que a democracia é de pertença ou nacional.

 

Do Brexit à Catalunha, da Irlanda à Escócia, da Padânia à Polónia e da Península Balcânica ao Mar Negro, sucedem-se os sinais alarmantes de conflitos inevitáveis. Ou antes, dificilmente reparáveis. Agora, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, com os conflitos na Arménia e no Azerbaijão, com as candidaturas de mais nove países à União, com as dificuldades húngaras e polacas e com as vagas descontroladas de emigrantes africanos e asiáticos, a Europa conhece um período de vulnerabilidade como já não se sentia há muitas décadas.

 

Há uma espécie de regresso do nacionalismo que cria a intranquilidade. Todas as pulsões antidemocráticas e antieuropeias procuram no populismo nacionalista a sua energia. Com uma razão certa: a Europa e a sua União não têm sabido conciliar o espírito federal com a tradição nacional. As votações tão significativas das correntes nacionalistas em França, em Espanha, na Itália e na Alemanha, por exemplo, além da Hungria e da Polónia, são sinais de que o nacionalismo está em ascensão. As manifestações de crise das democracias e do sistema europeu têm sido tonificantes para a direita nacionalista. Nos programas de muitos partidos, é o nacionalismo o motor retórico, não a antidemocracia.

 

Desde os anos cinquenta que, por duas ou três vezes, os europeus conseguiram o que sempre pareceu impossível: conciliar, com paz e democracia, aspirações federais com tradições nacionais. Nem sempre foi fácil, várias vezes a Europa (o Mercado comum, a CEE, a CE, a UE…) esteve à beira do colapso. Mas talvez nunca, como agora, os perigos fossem tão grandes, as ameaças tão letais e os inimigos tão importantes.

 

Os dirigentes europeus têm o hábito de desvalorizar os problemas. É o que eles entendem por acalmar os espíritos. Mas esta maneira olímpica de considerar que graves são os problemas a longo prazo, como as alterações climáticas, para os quais tudo é urgente e nada imediato, pode levar facilmente ao desastre. No Brexit, em Barcelona, em Lampedusa, em Marselha e em Kiev está de facto a jogar-se tudo. É nestes sítios que a Europa morre devagar. É nestes locais que renasce o nacionalismo na sua vil espécie. Pior mesmo só o nacionalismo imperialista de Moscovo, que também é uma ameaça contra a Europa.

 

Com as más recordações da história e com a justificada repulsa do nacionalismo, os dirigentes europeus não conseguem encontrar o seu caminho. A resposta não é “mais burocracia europeia”, “mais fundos de coesão”, “mais indemnizações e subsídios” … Já se percebeu que esses argumentos, válidos durante décadas, não valem o que valiam. Parece evidente que só respostas que preservem o espírito nacional e as tradições culturais, em combinação com a ideia europeia, terão o condão de interessar aos eleitorados descrentes.

 

Faz parte da ortodoxia considerar que o patriotismo é bom e o nacionalismo mau. O primeiro significaria amor à pátria e à comunidade, assim como solidariedade para com os seus iguais. Enquanto o nacionalismo, tendo o mesmo ponto de partida, a nação, significaria o sentimento de superioridade de uma comunidade de cultura e etnia, com exclusão de outras. A nação, como tal e com esta designação, é recente, tem poucos séculos, serviu de base para a afirmação dos Estados modernos. Já a pátria, como sentimento de pertença, tem muitos séculos, talvez milénios. É muito fácil afirmar-se patriota e detestar o nacionalismo. Mas a verdade é que têm ambos a mesma fonte, a mesma etimologia e raízes afins.

 

A esquerda tem tendência a dizer-se patriota, mesmo quando é nacionalista. A direita prefere considerar-se nacionalista, mesmo quando não é patriota. Os russos em geral, e os comunistas em particular, sempre se disseram patriotas, até porque o seu Estado tem muitas nações submetidas. Mas o nacionalismo russo é uma das grandes ameaças contra a paz na Europa. Os nazis, pouco interessados em compor com outras nações, consideravam-se nacionalistas, sem remorsos e com orgulho. Cultivavam o espírito conquistador, como os russos sempre fizeram. Os revolucionários franceses foram nacionalistas e patriotas sem escrúpulos nem hesitação. Portugueses, espanhóis ou italianos oscilaram, ao longos dos tempos, entre o nacionalismo e a patriotismo. Já os ingleses foram sempre as duas coisas, além de imperialistas.

 

Como é evidente, não há um patriotismo europeu. Muito menos nacionalismo. Pode haver, é certo que há, um orgulho europeu, que a União tem sabido cultivar, com cautela e sabedoria. Mas sem grandes resultados. Na verdade, o patriotismo de cada nação europeia é mais forte. Em tempos de crise, como actualmente, a situação é ainda mais dedicada: na verdade, os argumentos políticos contrários à ordem estabelecida socorrem-se do nacionalismo para se oporem. Aí se fundam várias espécies de populismo.

 

A Europa da democracia e da liberdade e a Europa da grande cultura e dos direitos humanos só se defendem se conseguirem combinar os seus impulsos federalistas com os seus sentimentos nacionais. Só o alcançarão se souberem defender a nação, sem nacionalismo. E se souberem proteger a sua cultura sem xenofobia. E se perceberem que ter pátria é melhor do que ser apátrida.

Que existe de comum entre a guerra da Ucrânia, a crise económica internacional e o desastre migratório do Mediterrâneo? Aparentemente, nada. Na verdade, muito. A Europa está a perder, vive cada vez mais dependente, nas últimas décadas, da força americana, da indústria chinesa, da energia russa, da mão de obra asiática e africana, dos produtos alimentares e das matérias primas de todo o mundo. Parece que a Europa encontra satisfação na sua vocação de parque temático e de atracção turística. A sua força é o seu passado. Não o seu futuro.

.

Público, 30.9.2023 

sábado, 23 de setembro de 2023

Grande Angular - Estrangeiros nas Forças Armadas

 É uma discussão envenenada! A cada frase, espreitam os riscos ou as acusações de nacionalismo, totalitarismo ou cosmopolitismo capitalista. Pode ou não, deve ou não haver estrangeiros nas Forças Armadas? E que género de estrangeiros? Todos, imigrantes naturalizados, descendentes de segunda geração? De língua materna portuguesa? Residentes em Portugal há quanto tempo? Podem os candidatos ter dupla nacionalidade? Deverão ser obrigatoriamente originários dos países de língua portuguesa? Contratados a prazo ou integrados em carreiras? Recebem vencimentos iguais aos outros soldados e oficiais ou têm tratamento especial? Podem ser promovidos na carreira até ao topo ou têm limites? Podem ser enviados para qualquer país onde se realizem missões de que Portugal faça parte? Podem cumprir, integral ou parcialmente, o serviço ou o contrato em dois países diferentes, ao serviço de dois Estados? Incluindo em países donde são originários? Necessitam conhecer a história de Portugal, falar português, saber algo de geografia de Portugal e estar familiarizado com as leis portuguesas? Pode ou deve exigir-se a estrangeiros mais conhecimentos e mais formação do que a portugueses de origem?

 

Na ausência de candidatos nacionais, como parece ser a situação actual, que fazer? A primeira solução é evidente. Melhores vencimentos. Melhores condições de trabalho e de desenvolvimento profissional. Mais oportunidades para fazer carreira e mais capacidades de reciclagem na vida civil. Melhores condições de saúde, melhor seguro de vida e de doença, mais facilidades para os membros da família. Mais reconhecimento da dignidade profissional. Tudo o que actualmente faz falta nas Forças Armadas portuguesas.

 

E se não houver candidatos? Nem bem pagos. Nem com oportunidades de formação profissional e de emprego subsequente? Nem com seguros de saúde, pensões e reformas de especial valor? E se os portugueses, homens e mulheres, não quiserem pura e simplesmente fazer a tropa, nem cumprir serviço militar? Se assim for, deixa de haver Forças Armadas e exército nacional.

 

É estranho que se possa tratar deste problema como se fosse simplesmente profissional. Não há candidatos portugueses que cheguem? Então recorre-se a estrangeiros. Como para as estufas de Odemira, as vindimas do Douro e os sapatos de Felgueiras. É preocupante pensar que exista quem aceite que o serviço militar, de conscrição ou de contrato, seja uma oportunidade profissional como outra qualquer. Da disponibilidade da vida aos riscos evidentes, tudo o que é militar é diferente. Incluindo a ordem e a disciplina. Assim como o espírito e o sentimento patriótico. O que não quer dizer que o serviço, obrigatório ou não, exija passividade, perda absoluta de direitos e abdicação das crenças de cada um. Um cidadão pode sempre reservar uma área pessoal de objecção e até de negação, se necessário for, por motivos de religião, doutrina ou moral. Os Estados modernos e as Constituições democráticas prevêem, felizmente, eventualidades excepcionais para esta área de actividade muito singular.

 

Mas, no essencial, a prestação de serviço militar, como conscrito, voluntário ou contratado, tem exigências e consequências muito especiais. O risco de vida, a total e permanente disponibilidade, o sentido do dever, o sentimento de pertença, a dedicação integral, o reconhecimento de uma autoridade estabelecida, um vasto código de obediência, o sacrifício de muitos aspectos da vida privada, a aceitação de obrigações excepcionais e do condicionamento de certos direitos fundamentais, todas estas características revelam uma condição singular e de elevado grau de exigência. Como ainda se podem referir as restrições aos direitos de expressão, associação e reunião. Felizmente, na época moderna e em democracia, existem mecanismos jurídicos e políticos suficientes para impedir que esta exigências se transformem em autocracia e totalitarismo. Mesmo assim, o universo militar é especial e por isso mesmo merece especial tratamento. Não choca que, a exigências excepcionais, correspondam compensações excepcionais, dos vencimentos ao desenvolvimento pessoal, dos seguros e da assistência à protecção dos familiares. O elevado grau de exigência e a renúncia a certos direitos justificam a retribuição.

 

As economias de mercado e a globalização, assim como as redes sociais, têm tido efeitos devastadores nas nações e nas comunidades de identidade. Nem sempre é bom, nem sempre é mau. Ao abrir fronteiras, quebram-se conflitos e preconceitos. Mas, ao perderem-se referências nacionais, perdem-se muitas características culturais. Ao destruir identidades, desfazem-se meios de defesa e protecção, até por vezes de dignidade pessoal. As ditaduras detestam instituições. Uma coisa é certa: a destruição de comunidades culturais, por vezes nacionais, acompanha quase sempre o rolo compressor do totalitarismo político e da tirania económica. A renúncia a valores culturais, incluindo factores de identidade nacional, em nome da modernidade, do igualitarismo e do cosmopolitismo, é equivalente a uma submissão aceite e desejada. Um país que renuncia à sua língua materna e que aceita que a educação se processe numa língua estrangeira, inglês seja ele, é um país que está a caminho da abdicação da identidade própria. Uma população que aceita a igualdade absoluta, que admite que uma língua estrangeira seja oficial nas escolas e que abre a estrangeiros as portas de acesso a funções de defesa nacional, é uma população a caminho da sua própria desistência. Pode ficar mais rica, talvez. Pode ficar mais moderna, quem sabe. Pode viver mais confortavelmente, possível. Mas não fica mais livre, mais culta e com mais dignidade. 

 

As Forças Armadas deveriam ficar reservadas aos portugueses. Aquelas servem essencialmente para proteger uma população, o seu Estado, a liberdade dos seus cidadãos, a democracia e a independência. Numa só expressão, para defender a comunidade nacional. Não se vê como é possível que estrangeiros, mercenários ou profissionais de qualquer nacionalidade, possam cumprir esses deveres. Não se trata tanto de patriotismo, nem de nacionalismo. Muito menos de xenofobia. Trata-se simplesmente de liberdade individual e dignidade humana. 

.

Público, 23.9.2023

sábado, 16 de setembro de 2023

Grande Angular - Habituamo-nos a tudo

 Será realmente verdade que nos habituamos a tudo? Ao bem e ao mal, sobretudo a este último? Será real esta triste sina? Será verdadeira esta maldição que nos diz, em resumo, que nos habituamos, que deixamos correr, que acabamos por considerar um mal necessário, que estimamos que não há nada a fazer, que temos a certeza de que poderia ter sido pior…?

 

Será sempre assim, como com as ruas de Lisboa, que acabamos por considerar normais e até em estado razoável? Com estas ruas sujas, mal varridas, com lixo nos passeios, restos de obras por todo o lado, buracos na calçada e no piso, móveis velhos, erva daninha nos passeios, sarjetas entupidas, fios eléctricos e de telefone pendurados nas casas e nos telhados…. É inevitável? Terá de ser sempre assim? Não conseguimos fazer melhor? Habituámo-nos de tal maneira que já nem sequer vemos ou sentimos o que está diante de nós, que pensamos que é inevitável, que é normal, que nem tudo se faz num dia?

 

É forçoso que, há décadas, não haja praticamente início de ano lectivo sem furos nos horários, sem falta de professores e sem obras inacabadas? É realmente impossível impedir que haja dezenas, centenas ou milhares de professores colocados ao Deus dará, a dezenas ou centenas de quilómetros de casa, longe dos filhos, dos maridos e das mulheres, em quartos esquálidos, sem sala de estar nem mesa de trabalho? Não é possível prever, com antecedência, a colocação de professores com algum sentido humano, a fim de permitir, não privilégios ou benesses, mas tão simplesmente uma vida asseada, com algum repouso que ajude ao trabalho pedagógico? O facto de Portugal ter quase eliminado o analfabetismo, com 150 anos de atraso, é suficiente para considerarmos normal esta miséria pedagógica, este atropelo administrativo, este permanente desaire escolar, este constante desatino educativo?

 

É inevitável que as administrações escolares e sanitárias não sejam capazes de prever a demografia dos professores e dos médicos, dos enfermeiros e dos alunos, dos auxiliares e dos estudantes, a fim de antecipar a reforma, a mudança de gerações e a mobilidade espacial? Temos mesmo de nos habituar a esta vida indigente em que faltam professores, médicos e enfermeiros? É normal que quantos mais médicos e professores há, mais faltam?

 

Estaremos de tal modo intoxicados que acabamos por considerar normal que as administrações não consigam prever as necessidades de profissionais, de mão de obra, de técnicos, de especialistas, designadamente de médios e professores? A resignação é de tal modo fatal que somos incapazes de reagir ao número crescente de emigrantes, de técnicos, de especialistas e de universitários que se vão embora com a certeza de terem sempre melhores oportunidades, mesmo se à custa do sacrifício das migrações?

 

Será que vivemos em paz e dormimos tranquilos quando sabemos, sem qualquer dúvida, que há milhares de asiáticos, de árabes, de africanos e de latino-americanos a serem explorados nas piores condições imagináveis, nos endereços “marados” e de conveniência, nas plantações inexistentes, nas estufas de ficção e nas empresas de fantasia?

 

Vivemos em paz quando tomamos conhecimento de que em muitos endereços disfarçados há, num quarto ou num rés-do-chão, dezenas de domicílios fantasma, para enganar os serviços de estrangeiros e de identidade que se querem deixar enganar? Somos capazes de passear à beira-rio, em tranquilidade, sabendo que àquela mesma hora centenas ou milhares de asiáticos, em condições confrangedoras, trabalham nas culturas forçadas, fazem vindimas pela noite fora, arrancam cortiça, trabalham no tomate, na flor e na batata, em condições simplesmente inaceitáveis e condenadas por todos os tratados e convenções internacionais que Portugal subscreveu?

 

Temos mesmo de nos habituar a ouvir ministros, vizinhos da imbecilidade, garantir que estamos a viver melhor do que há 50 anos, que estão a ser preparados planos, que os prolemas estão identificados, que as situações mais graves estão sinalizadas, que as estratégias  estão a ser preparadas, que novos grupos de trabalho estão a ser criados, que novos recursos financeiros vão ser libertados, que estão todos a trabalhar a fim de que as filas de espera nos hospitais diminuam, que os professores vão ser colocados, que as escolas vão abrir a tempo e horas, que os professores não ficarão a saltar de casa em casa e de região em região durante cinco, dez, quinze anos?

 

Apesar de haver mais de uma centena de Observatórios, digo bem, uma centena, para tudo quanto existe à face da terra, Migrações, Saúde, Educação, Racismo, Transportes, Descentralização, Pobreza, Desigualdade, Estrangeiros, Envelhecimento ou Nascimentos, apesar disso, estamos mesmo condenados a nunca acertar nas previsões, nunca colocar professores a horas, nunca formar médicos a tempo, nunca contratar enfermeiros suficientes, nunca construir residências universitárias que bastem e nunca julgar criminosos a tempo? Temos de nos resignar a esta espécie de DNA fatal das autoridades políticas portuguesas que consiste na incapacidade de prever, na impossibilidade de agir a tempo e na dificuldade em preparar profissionais e recursos?

 

Será que nos habituámos de tal modo à incompetência, à ineficiência e à desigualdade que já não reagimos aos atrasos da justiça, aos anos e anos de espera por que um rico, um político, um malandro ou um poderoso sejam julgados?

 

Será razoável habituarmo-nos às filas de espera diante das lojas do cidadão, das repartições de finanças, dos serviços de segurança social e de outras repartições da educação, da saúde e da justiça, de Verão e de Inverno, com chuva ou com sol, como cidadãos ordeiros e contribuintes obedientes?

Somos obrigados a aceitar como hábito este desaustinado caminho em que se produz pouca riqueza, em que se cria pouca empresa e se melhora pouco, mas onde, à falta de fazer mais e melhor e na impossibilidade de ter casa e comboio, escola e hospital, distribuem-se vales e bónus? Temos mesmo de nos habituar a crescer devagar, a desenvolver lentamente e a melhorar pouco, tão pouco? Temos de nos contentar com pouco, menos do que os outros? Temos de ficar satisfeitos e gratos com o melhor do que nada? Mesmo?

 

Má sorte a de sermos um país pobre e pequeno! Triste sina a de sermos mal governados! Sombrio destino o desta estranha forma de vida tão cheia de pobreza e de resignação! E, pior que tudo, este jeito tão nosso de nos habituarmos a tudo! 

 

Público, 16.9.2023

sábado, 2 de setembro de 2023

Grande Angular - Um candidato a Presidente da República

Talvez nunca tenha havido, como agora, tantos bons candidatos à Presidência da República. Entre prováveis, possíveis, hesitantes e presumíveis, há pelo menos uma dúzia que podem ser facilmente enumerados. Sem falar em surpresas e candidatos de última hora. Reconheço que a qualidade dos hipotéticos candidatos é extraordinária. Inteligentes e experientes: quase todos! Cultos e interessados: a maior parte. Com currículo e obra feita: todos! A maior parte com provas prestadas na política, na comunicação social, na televisão e noutras instituições. Alguns com experiência internacional indiscutível. Não sabemos, na verdade, se todos seriam bons presidentes, mas temos a certeza de que a regra não será a da ambição deslocada. Eis uma certeza: teremos, em 2026, uma campanha interessante e uma eleição entusiasmante.

 

É sintomático o facto de o papel do Presidente se ter enriquecido e valorizado. Os seus titulares fizeram o possível, de tal modo que a sua presença e as suas funções, mesmo sem alterar as regras formais do semipresidencialismo, têm ficado mais importantes e até mais necessárias. O Presidente já tem agora um papel decisivo no processo legislativo, mesmo quanto ao seu conteúdo, não apenas na forma e no processo. Cada vez mais eleitores olham para o Presidente como uma fonte de poder e um recurso de esperança. Internacionalmente, o Presidente da República é cada vez menos figura de cera.

 

Numa altura em que o sistema partidário e o panorama político estão a mudar, a figura singular do Presidente assume um peso especial. Novos partidos surgem, velhos desaparecem e outros transformam-se. As bases políticas, as crenças e os programas dos partidos estão em evolução. Em Portugal, como também em toda a Europa, as realidades partidárias e as políticas propostas são hoje muito diferentes do que eram há dez ou vinte anos. Portugal foi atingido por esta onda inovadora, talvez menos do que a maioria dos europeus, mas para lá caminha. Nesta realidade, o papel do Presidente da República, mesmo em semipresidencialismo, é fonte e centro de interesse. O facto de ser eleito directamente pelos cidadãos e não ser hereditário, nem eleito pelo Parlamento, aumenta o seu peso e avoluma a sua presença.

 

Tudo o que precede pode ser motivo de satisfação e esperança, mas também de instabilidade e desastre. A participação do Presidente no processo legislativo, por exemplo, pode melhorar consideravelmente a qualidade das leis aprovadas, assim como as suas amarras sociais. Mas também pode ser fonte de quezília institucional e de conflitos inúteis entre os órgãos de soberania. Já conhecemos, em Portugal, as duas situações, sabemos bem aquilo de que se trata. De qualquer maneira, a eleição directa do Presidente não pode ser desvalorizada. Não há entendimento para, nesse capítulo, rever a Constituição. É legítimo pensar que a maioria dos eleitores prefere claramente a eleição directa. É possível que a população tenha mais esperança na acção dos Presidentes do que na evolução dos partidos. Quer isto dizer que a eleição presidencial directa é um facto irreversível com o qual temos de viver.

 

Os próximos anos serão, em Portugal, tal como na maior parte das democracias europeias, particularmente difíceis. Os efeitos da guerra na Ucrânia far-se-ão sentir durante muito tempo. A transformação da balança de forças internacionais será longa e difícil. A democracia, como sistema de governo e regime político, está em recuo na maior parte do planeta. O futuro imediato de grandes nações como a América, a China, o Brasil, a Índia ou a Rússia é pelo menos inquietante e de qualquer modo imprevisível. O descontrolo e o desespero dos movimentos migratórios põem em causa a paz de regiões e continentes, assim como a sobrevivência de multidões. As consequências da pandemia não estão afastadas. Lidar com as alterações climáticas será, no futuro, combate de Sísifo e trabalho Hercúleo. O equilíbrio entre a liberdade individual e o Estado de protecção social é cada vez mais necessário. O Presidente da República portuguesa não é seguramente capaz de resolver qualquer uma destas questões universais. Mas é bom que esteja ao corrente, que saiba do que se trata, que esteja atento, que tenha experiência dos problemas e das suas causas. António Guterres é essa pessoa capaz, informada e experiente.

 

Cá dentro, em Portugal, nenhum destes grandes problemas internacionais tem uma dimensão aterradora. No entanto, há sinais crescentes de incómodo. Por exemplo, a persistente crise de Justiça, talvez a mais grave fragilidade do nosso país. Ou a permanente desigualdade social, uma evidente vulnerabilidade da nossa sociedade. Sem falar nas enormes dificuldades que todos os sistemas de serviços públicos conhecem actualmente e para as quais as autoridades não encontram remédios. Mas há mais. O recurso à emigração de muitas dezenas de milhares de portugueses é sinal inequívoco do mal-estar da nossa comunidade. A pertinaz prática de exploração e de tráfico de trabalhadores estrangeiros ilegais não é uma boa notícia para os portugueses nem para o futuro da sociedade. A flagrante dificuldade, por parte das autoridades e dos agentes económicos, em encontrar vias de desenvolvimento e de progresso mais robustas, é sinal de debilidade política e revela a necessidade de nova energia e sobretudo de novo cuidado. Para todos estes problemas, a ideologia tradicional e o espírito de permanente luta das classes têm-se revelado inúteis e contraproducentes. O chamado neoliberalismo mostra ser tão impotente quanto o socialismo.  Um novo pragmatismo é cada vez mais necessário. Um novo compromisso entre a liberdade e o Estado social é indispensável. Há poucos políticos conhecidos capazes de contribuir para um futuro imediato com mais progresso. António Guterres é, para mim, um desses políticos.

 

Conhecemo-nos há muitos anos. Já estivemos próximos e distantes. Já trabalhámos em conjunto e ficámos afastados. Já dele pensei bem e mal, já esperei e já desesperei. É a história. É a vida, dirá ele. Penso agora, sem dúvida, que António Guterres seria um muito bom candidato e um melhor Presidente da República. Sei que há dificuldades. Pela sua vida, pelo mandato das Nações Unidas, pelos seus amigos políticos e pelo seu partido. Até pelo calendário. Mas creio que se trata de questões com resolução. Pelo nosso país. Convido, proponho e solicito a candidatura de António Guterres à Presidência da República.

.

Público, 2.9.2023

sábado, 26 de agosto de 2023

Grande Angular - O regime está a mudar

 O mais provável é que Marcelo Rebelo de Sousa tenha razão. O seu veto ao programa de habitação do Governo e do Parlamento, isto é, do PS, justifica-se plenamente. Segundo a maior parte dos comentários independentes e das associações interessadas, para já não falar de todas as oposições, de esquerda ou direita, as propostas do Governo são insuficientes, erradas, demagógicas, desnecessárias e gravosas. Os técnicos e especialistas que se têm exprimido e não pertencem à esfera governamental são unânimes: criticam e condenam as propostas feitas. Ninguém as considera à altura dos problemas e da crise actual, quase toda a gente garante que a situação ficaria ainda pior. Quem sabe garante que as intenções governamentais integram e prolongam os erros e as deficiências dos últimos governos que ajudaram a consolidar a crise actual. 

 

Já que pode fazê-lo, o Presidente vetou tudo. Não por motivos constitucionais, jurídicos ou institucionais, mas por razões políticas e programáticas. Não sendo absolutamente inédito, o facto é novo e merece observação. A actuação do Presidente deve ser vista com cuidado, até pelo que implica de novidade ou de impulso inovador. Além do tradicional, o Presidente parece agora desempenhar vários papéis. O de fiscal da acção política, assim como o de provedor do cidadão. Coloca-se como co-legislador, função curiosa e interessante. Assume-se como responsável pelas políticas públicas, em grau e de feição nunca antes atingidos. Assim é que o regime continuará semipresidencialista, mas já não é o mesmo. Além de que esta é uma via sem regresso: será difícil que este Presidente ou os futuros reduzam a sua área de competência e intervenção.

 

O Presidente da República desempenhou na Ucrânia, com garbo e competência, a sua função de representação do Estado. Fê-lo política, cultural e afectuosamente, com brilho e distinção. Mas ultrapassou evidentemente as tradições de cerimónia. Dentro das margens toleradas pela Constituição, foi um verdadeiro chefe de Estado e chefe da política externa, tendo superado, nesta questão ucraniana, os limites semânticos e formais até hoje determinados pelo governo e pelo Primeiro Ministro. Tal como foram expressos pelo Presidente, o conteúdo e o grau de envolvimento do país responsabilizam o Estado e todos os órgãos de soberania como nunca antes. Não é crível que, depois deste ensaio, o Presidente ou outros presidentes futuros aceitem diminuir as suas responsabilidades e os seus poderes. É possível que desta maneira termine ou diminua a patética exibição da dualidade de representação do Estado tantas vezes observada.

 

Assim é que o semipresidencialismo português conhecerá novas formas e diferentes feições. Não é seguro que seja um progresso. Não há provas da superioridade, em Portugal, de qualquer das formas, parlamentar, presidencialista e ou semipresidencialista. Dado que se trata de uma história curta e recente, não temos outras experiências em democracia. Certo é que há quem prefira uma ou outras das formas conhecidas. Por boas e pelas más razões. Mas é verdade que os eventuais conflitos entre órgãos de soberania, os chamados conflitos institucionais, que são também conflitos entre pessoas e entre opções políticas, resultam deste nosso sistema semipresidencialista.

 

Estamos a assistir a uma mudança do regime. O semipresidencialismo é uma espécie de ocapi: bicho esquisito, tem de burro e de cavalo, de girafa e de zebra. Restringe os poderes do presidente, mas não faz dele um adorno democrático. Modera e limita a representatividade do parlamento, reduzindo por vezes esta instituição a um plano secundário. Reforça e reduz, ao mesmo tempo, os poderes e as responsabilidades do governo. Concebido em tempos difíceis, à saída de uma revolução e com o fim de evitar outra, receando o cesarismo e a intenção sidonista, com um carinho dúplice e não confessado pela primeira República e pelo Estado Novo, o semipresidencialismo português é uma espécie híbrida de menor dos males e de maior denominador comum. Àquelas fontes inspiradoras, os nossos constituintes acrescentaram uma picante influência francesa. O resultado é o que temos, nem carne nem peixe. Com prejuízo para a democracia parlamentar.

 

Vivemos tempos de revisão. Já se percebeu que não haverá nada de jeito, a não ser, eventualmente, uma reforma secundária, com pouco significado e alguma demagogia. Se houver revisão, será um exercício fútil de acrescentos e remendos, não de tentativa de reformar e rever.

 

Pense-se, por exemplo, no mais urgente, no mais grave: a reforma da Justiça, a necessitar adequação constitucional. Nada acontecerá. Reflicta-se ainda nos dois mais graves entraves à democracia parlamentar que são o sistema eleitoral e o semipresidencialismo. Podemos ter a certeza de que não teremos novidades nestas áreas. Acrescente-se o facto de hoje se poder ser ministro sem ser deputado. Ou que os partidos decretam a disciplina de voto com tranquilidade sem que haja sequer uma pequena revolta. Se o regime evolui, como se disse, é para não ser revisto.

 

Estamos a escolher, por inércia e tradição, uma via de mudança de regime não explicita e não discutida. À margem da querela jurídica, interminável e estéril, o que está a acontecer é o estabelecimento, por parte do Presidente da República, de uma prática política, de um hábito de intervenção presidencial programática, doutrinária, de contrapeso, de fiscalização política e social e de colaboração legislativa, não apenas constitucional e jurídica. Esta mudança é quase imperceptível, mas lá que existe… 

 

É verdade que muito depende das personalidades dos presidentes. Cada novo presidente acrescenta. Veja-se a França, por exemplo. Ao longo de quase um século, assistimos a várias mudanças do regime, o que não é exactamente a mesma coisa que mudança de regime. Com personalidades tão diferentes, nenhum presidente pôs realmente em causa o semipresidencialismo gaulista. 

 

Estas mudanças operam-se diante de nós. Pode parecer estranho, mas é assim. Estamos habituados a pensar sempre em mudanças radicais de regime. Mais ou menos revolucionárias, umas vezes violentas, outras impostas por forças exteriores. Por dentro, pacificamente, gradualmente, não são casos muito frequentes, mas também não são raros. Em certo sentido, os regimes são como as pessoas ou as nações. Mudam, mas ficam as mesmas. Não são iguais, são diferentes, mas são os mesmos regimes. Como as mesmas nações.

.

Público, 26.8.2023

domingo, 20 de agosto de 2023

Grande Angular - Antes que seja tarde

 Acudir a tempo e horas ou não chegar tarde é uma das principais exigências de várias profissões. Como dos bombeiros e dos médicos, por exemplo. O tempo e a oportunidade são factores essenciais para evitar o desastre, mas também podem ser a sua principal causa. Por melhores que sejam as intenções, tudo cai por terra quando não se chega a tempo. Tentar o que quer que seja já fora de horas é inútil, mesmo por vezes prejudicial, dado que uma tentativa falhada agrava a condição. Não perceber a tempo é um convite à desgraça.

 

Tudo o que precede aplica-se à política e à gestão do espaço público e das instituições. Política, economia e sociedade dependem do tempo e do momento. Chegar tarde à inflação ou à doença, não chegar a tempo às migrações ilegais e às situações de conflito social, podem ser suficientes para que tudo se agrave e se torne mais difícil, até mesmo impossível, com más consequências para os cidadãos e a comunidade.

 

O actual governo, o Parlamento, o Presidente da República e as instituições, numa palavra, as autoridades ainda têm tempo (e meios) para resolver os actuais problemas mais críticos, ainda podem acudir ao que parece ruir todos os dias. É preciso que queiram, que estejam dispostos a arriscar, que não considerem prioritárias as suas vidas pessoais, que não acreditem em mitos ideológicos, que não se sintam prisioneiros de correligionários e que não estejam cativos de paixões menores. Nada disto é fácil, mas também nada é impossível.

 

As divisões dentro do Partido Socialista não parecem ter a gravidade que se lhes atribui. A competição, que vai ser feroz, não é pelo presente, mas sim pelo futuro. A opinião pública parece desafecta do actual governo, mas não necessariamente da actual solução parlamentar. O Partido Social Democrata ainda não parece estar à altura da alternativa, se é que algum dia estará. Do Chega vem muito barulho por pouca coisa. Dos outros partidos não é mesmo de esperar nada. Apesar da conflitualidade crescente, o Presidente da República, sem projectos para depois de terminado o mandato, não parece interessado em forçar uma ruptura insanável. A União Europeia vê Portugal com bons olhos, desde que não incomode. Há meios financeiros que suportem uma acção enérgica. A rotina e a imobilidade favorecem o Partido Socialista e o Governo. Mas prejudicam o país. E é provável que a perturbação eleitoral e a dissolução sejam pelo menos tão nefastos quanto a estabilidade ou a estagnação. É um dilema clássico: os termos da alternativa são ambos maus. E de ambos sofrerá a população.

 

A solução está evidentemente em prosseguir e manter a estabilidade, mas retomar a iniciativa e reformar. Em primeiro lugar, a recomposição do governo. Sabemos que é um tique dos primeiros ministros: não ceder! Este defeito transformou-se numa virtude, o que é um erro crasso. Um primeiro ministro que “defende os seus”, que “protege” os colaboradores, que “não dá o braço a torcer” e que não “faz a vontade dos detractores”, passa, nas crónicas medíocres, por um herói. Na verdade, é um pusilânime sem ideias nem autoridade. Toda a gente sabe que pelo menos meia dúzia de ministros e mais ainda secretários de Estado não estão à altura, não são capazes, enganaram-se no ofício, ficaram prisioneiros de causas menores e não conseguem arranjar colaboradores capazes. Ou simplesmente não têm jeito. Toda a gente sabe que estão nesse caso os responsáveis pelas infra-estruturas, pela Saúde, pela Educação, pela Justiça, pela Agricultura, pela Habitação…. Insistir no absurdo acaba sempre em drama ou tragédia.

 

Dizem os comunistas que “o importante são as políticas, não as pessoas”. Tal não é verdade, são tão importantes umas como outras. No caso presente, é tão evidente que é necessário mudar e alterar, que por vezes somos levados a pensar que o exercício do poder político tem efeitos negativos e perigosos na audição, na inteligência e na sensibilidade. E na visão.

 

Ficará na história quem decida tomar em suas mãos a grande reforma da Justiça, que demora anos a levar a cabo, que terá efeitos durante décadas, que será responsável por uma profunda mudança social e que dará nova vida às ideias de democracia e de liberdade, tal como as conhecemos em Portugal. Quem tome a responsabilidade de avaliar os seus nós e defeitos e de criar as condições para uma mudança fundamental de recrutamento, de disciplina, de procedimentos, de legislação e de organização da Justiça prestará um tal serviço ao país que os séculos não o esquecerão.

 

O primeiro ministro, ministro ou dirigente que consiga recuperar as rédeas, os meios, os recursos e a vocação do Serviço Nacional de Saúde, pondo termo à sangria de pessoal, à ineficiência, à desigualdade social, à miséria de meios e à ausência de previsão ficará com nome e memória comparáveis aos fundadores do SNS.

 

Será recordado, por décadas a vir, aquele que perceba a crueldade dos serviços púbicos, que conheça a injustiça das grandes administrações e que tenha compreendido o desprezo com que os cidadãos são tratados em tantas instituições. Ninguém esquecerá aquele que saiba voltar a dar vida e energia aos transportes públicos, especialmente à rede de comboios, conciliando eficácia com igualdade e com humanidade. Ficará conhecido, por uma população grata, quem dê estabilidade ao sistema educativo, quem trate da permanente algazarra escolar e quem volte a dar honra e dignidade ao ofício de docente.

 

Mais do que pela imprensa, será lembrado pelos corações e pelos espíritos das populações quem consiga conter a corrupção, dominar o nepotismo e contrariar o privilégio partidário.

 

E mais haverá. Mas o primeiro ministro sabe. E toda a gente sabe. A imobilidade já só é defendida por quem tem medo e respeitinho. Há heróis na história que souberam resistir às campanhas adversas, aos inimigos insidiosos e aos ataques injustificados. O problema é que não estamos numa situação dessas. Poucos são os que atacam o primeiro ministro, o governo ou o partido. Mas muitos são os que já não acreditam nele e neles. 

Público, 19.8.2023

sábado, 12 de agosto de 2023

Grande Angular - O mal dos outros e o nosso

 O mundo não está bem. Raramente, nas últimas décadas, esteve tão perto de abismos diversos. É um daqueles momentos de transição que revelam perigos inéditos. É verdade que o mundo está sempre em mudança. Já deveríamos estar habituados. Mas o problema das evoluções bruscas é a dimensão e a profundidade. Reside no facto de os principais equilíbrios serem postos em causa. São momentos de transformação em que muitos perdem e alguns ganham: Estados, nações, povos, classes sociais, partidos e empresas estarão, dentro de poucos anos, em posição bem diferente da que conhecem hoje. São verdadeiras placas tectónicas em movimento.

 

Os Estados Unidos perdem, já não são a nação hegemónica. A Europa, sempre invejável, já só tem protagonismo se for parte do Ocidente, ao lado dos Estados Unidos. O mundo bipolar da Guerra Fria está longe de nós. Apesar de garantir um lugar no novo mundo fragmentado, a Rússia perde, não sem estrebuchar, deixando o planeta suspenso. A brutal invasão da Ucrânia é o mais recente feito da barbárie que julgávamos afastada. Graças ao seu esforço, a China ganha, ajudada pelo Ocidente que lhe deu as bases para uma posição invejável. O Japão, atá há tão pouco tempo uma potência ascendente, estagna e pesa pouco. A Índia, pelo contrário, surge no horizonte com cores de novo poder. No Próximo Oriente, Israel treme nos seus fundamentos, enquanto Estados islâmicos poderosos se preparam para uma nova era militar e financeira. Outras nações, africanas e asiáticas, querem garantir pelo menos um lugar de acessório indispensável. Mas toda a gente percebe que está tudo em causa. Drama é o termo mais tranquilo. Tragédia é mais provável.

 

Ceder parte da sua força, perder uma grande dose do seu poder e alienar uma enorme porção da sua fortuna não se fazem sem convulsão. Ascender às primeiras posições e obter lugar de proeminência só se fazem com inevitável perturbação da ordem estabelecida. Estas transformações fundamentais deixam o planeta em crise. A despesa militar não cessa de aumentar.

 

A América Latina já entrou em percurso agitadíssimo. A droga liquidou o continente. Do Equador à Colômbia, da Venezuela ao México e ao Brasil, aquele mundo prepara-se para viver um novo ciclo de violência. Em África, trava-se mais uma guerra de partilha e extracção, com um número inédito de protagonistas. As numerosas ditaduras locais aliaram-se às forças interessadas na divisão e nos despojos. Rússia, China, Europa, Estados Unidos, poderes islâmicos e regimes militares africanos preparam-se para deitar fogo ao continente. A democracia, em flagrante recuo no mundo, deixa de ser aspiração ou disfarce para povos e Estados. Cada vez mais confinada ao Ocidente, a vocação universal dos direitos humanos recua todos os dias. Os novos grandes poderes deste mundo declaram mesmo que a democracia e os direitos humanos são apenas tradições de uma pequena parte da humanidade.

 

E Portugal? E os portugueses? E nós? Onde estamos no meio destas ameaças? A primeira resposta é simples, optimista e errada: não estamos no centro de nenhuma destas controvérsias e por isso não seremos arrastados para uma situação dramática. Na superfície, está certo. No essencial, é falso: neste mundo, o nosso destino será o da Europa, teremos tanto a perder e a ganhar como qualquer um dos nossos vizinhos.

 

A segunda resposta é mais complexa, céptica e verdadeira. Sem envolvimento directo em nenhum dos vendavais, temos as nossas próprias misérias. Apesar das mudanças das últimas décadas, os nossos contemporâneos vivem a alegria de algum sossego, vivem a calma de agitações suportáveis, mas vivem também situações intoleráveis de uma sociedade dura e de um Estado moralmente medíocre. Até quando?

 

Tivemos uma Jornada da Juventude gloriosa. Temos todos os dias resultados desportivos que nos honram. Temos uma formidável temporada de concertos estivais com muitas dezenas de milhares de jovens entusiastas. Temos promessas ilimitadas de novos comboios, de aeroporto, de parques de inteligência artificial, de laboratórios científicos, de novos hospitais e de modernos portos marítimos. Pois bem! Pode ser que tudo isso seja verdade e que os feitos recentes do nosso povo orgulhem muitos. Ma nada é suficiente para esconder a falta de cuidado dos serviços públicos, em fase de desperdício e desatenção como raramente se viu. 

 

Na saúde, a ausência de previsão, de planeamento e de pragmatismo conduziu a esta situação desumana de maternidades fechadas, de urgências encerradas, de pobreza de recursos do INEM e de meses e anos de espera por parte dos doentes. Sem falar no recrutamento por atacado de centenas de médicos latino-americanos. Desfazem-se diante de nós anos e anos de lenta construção do Serviço Nacional de Saúde, agora condenado a uma cada vez mais triste e desigual existência.

 

Tudo o que pede cuidado, sentido de humanidade e de igualdade, eficácia e prontidão, parece condenado a um triste atraso, sem desculpa nem decência. Os custos e o tempo de espera na Justiça, desorganizada e desigual, são um permanente aviso e uma recordação do peso do privilégio. Os tempos de espera e a indiferença em quase todos os serviços que implicam atendimento e atenção, impedem um qualquer juízo de esperança e optimismo. A desordem na escola, o deficiente recrutamento de docentes, a vista grossa para o cumprimento dos deveres e a complacência perante a disciplina pedagógica quase nos fazem desesperar do progresso cultural do nosso povo. A permanente desordem na imigração e o vigor dos traficantes de mão-de-obra clandestina apontam directamente para a desorganização e a desumanidade.

 

Neste quadro sombrio, falta evidentemente uma breve alusão a esta incapacidade de criação de riqueza, de estimular investimento, de garantir melhor salário e mais rendimento, de oferecer oportunidades a uma população dividia e pobre. Vejam-se os números, deixemos de brincar e fazer demagogia com as estatísticas, não continuemos a responder a um passado triste e a um presente difícil apenas com promessas e intenções irresponsáveis. Olhe-se com seriedade para os montantes da emigração e tentemos responder à pergunta mais simples: porquê?

 

É de mau tom ser-se ácido e pessimista. Não fica bem “dizer sempre mal”. Mas não há por onde escapar: os portugueses não têm actualmente razões nem motivos para se sentirem optimistas.

.

Público, 12.8.2023

sábado, 5 de agosto de 2023

Grande Angular - O Papa e nós

O carisma deste Papa é formidável. Procurem-se as qualidades que fazem dele um homem excepcionalmente popular e não é fácil encontrar o dom principal. Talvez seja a bondade. Tem evidentemente outros atributos, mas os outros Papas também tinham. Neste, há algo de diferente, de singular. É possível que seja também a disposição para a justiça social: as suas intervenções têm marcado seriamente o pontificado. Apesar da abstenção relativamente à ordenação das mulheres e ao casamento dos sacerdotes, a sua nota de progresso social é indelével. A sua aversão aos ídolos capitalistas e mercantis é também traço importante do seu carácter e do seu programa. Mas é o homem bom, irradiando generosidade e indulgência, que atrai os povos, os jovens e os fiéis. Essa parece ser a sua graça.

 

Não é adequado tirar conclusões seguras da observação desta Jornada relativamente à religiosidade dos portugueses. É possível que estejamos iludidos pela presença dos estrangeiros cujo grande número pode enganar. É também provável que a dimensão festiva, musical, teatral e lúdica atraia muita gente, sem que isso signifique uma consistente atitude religiosa. Mas é certo e seguro que as actividades religiosas e para-religiosas, mesmo as festivas, mostram um apetite e uma predisposição crescentes relativamente a formas diversas de espiritualidade.

 

Estaremos diante de um renascimento religioso, em moldes muito diferentes do passado? Haverá uma “nova Igreja” nascida nestas últimas décadas, feita de juventude, de festa, de responsabilidade juvenil e de um novo sentido de comunidade? Ou será uma Igreja cada vez mais pequena, mas mais militante, activista e empenhada? Por mais impressionante que esta seja, não é uma Jornada que esclarece.

 

Muito interessante e curioso é o facto de o entusiasmo favorável ao Papa contrastar com uma distância crescente dos portugueses relativamente à Igreja, aos rituais católicos, à comunhão com as comunidades cristãs e simplesmente ao culto religioso regular.

 

O que sabemos nós da religiosidade dos portugueses? O que se conhece realmente da sua prática religiosa? Pouco. Muito pouco. Dentro da Igreja, parece haver receio de estudar e conhecer. Fora da Igreja, há desinteresse. A verdade é que todos conhecemos frases feitas que traduzem o sentimento religioso de tantos. “Sou católico, mas não pratico”. “Há qualquer coisa, mas não sei se é Deus”. “Acredito que há alguém no princípio ou por cima, mas não sei quem é”. “Sou católico, mas não vou à Igreja!”. “Cá por mim, tenho uma relação directa com Deus, não preciso dos Padres para nada!”. “Gosto de Cristo, mas não gosto dos padres!”. “Sou crente, mas não vou à missa, nem me confesso!”. O anticlericalismo e a aversão à Igreja podem ser denominadores comuns a tantos ditos católicos portugueses.

 

Como não há estudos sérios e isentos, ou de qualquer outra espécie, o grau de ignorância é grande. Como as entidades estatísticas não querem ou não podem saber mais sobre as práticas religiosas, não sabemos realmente muita coisa importante que deveríamos saber. Tal aliás como com as questões raciais, em todos os aspectos ligados com a educação, a saúde, a cultura, o rendimento, a criminalidade e o comportamento eleitoral.

 

Raça e religião. Provavelmente também sexualidade. Ou ainda comportamentos familiares e domésticos. Não se pode perguntar. Não se deve perguntar. Não se quer perguntar. E muitos não querem responder. Assim é que desconhecemos o essencial da vários aspectos e diversas dimensões da nossa vida, da nossa sociedade.

 

Temos, aqui e acolá, informações laterais. Mas significativas. Sabemos que os casamentos estão em diminuição acelerada relativamente às uniões de facto e outras formas de conjugalidade ou de comunidade. Temos ainda informações fidedignas sobre os casamentos católicos em rápido declínio absoluto e relativo se comparados com os casamentos exclusivamente civis. Também sabemos que o número de baptizados é cada vez menor, não só porque há menos nascimentos, mas também porque as famílias dispensam o baptizado. É igualmente do conhecimento público o facto de a maioria dos nascimentos serem “fora do casamento”, isto é, resultado de uniões de facto, de maternidades monoparentais e de outras condições, mas não de casamentos católicos.

 

Estas informações não substituem as que não temos sobre vocações, ordenações, frequência de seminários, presença regular na missa, periodicidade de confissão e de comunhão e outros acontecimentos de carácter religioso. Sabe-se melhor, pelo contrário, sobre a prática educativa, isto é, o número de alunos e de escolas ligadas à Igreja: é muito considerável, sobretudo se pensarmos que se trata em geral de ensino pago, em comparação com a gratuitidade da escola pública. Por outro lado, é conhecido o facto de a maior parte da solidariedade social presencial ser obra da Igreja e das suas instituições. Nos bairros miseráveis, nos cantos e recantos onde vivem os “sem abrigo”, nos hospitais, nos asilos e nas prisões, a presença humana e solidária é assegurada quase exclusivamente por religiosos e pessoas ligadas à Igreja. É verdade que a democracia laica e a solidariedade social encontram respostas e argumentos nos direitos sociais, na Constituição e nas políticas públicas. Mas a humanidade exige a presença de pessoas e o seu sacrifico. Na dor e na doença, na fome e no sofrimento, é o religioso que está presente, não o funcionário ou o profissional.

 

Esta Jornada tem-se revelado um êxito muito especial. A popularidade e a alegria têm sido a regra. Portugal e os portugueses ficaram a ganhar. Apesar de se ter gasto de mais. Mau grado os poderes públicos se terem talvez empenhado excessivamente. E não obstante os políticos e as autoridades se terem aproveitado o mais possível da manifestação a fim de cuidarem das suas próprias reputações. Estes defeitos não chegam para pôr em causa a utilidade e o interesse da Jornada. Nem dão qualquer razão à brigada republicana, aos tractores da laicidade e a outros bolchevistas de choque que defendem que o Estado não deve ter qualquer relação com estas iniciativas religiosas.  Como também não é necessário invocar, quase obscenamente, os lucros monetários, o retorno turístico, o marketing internacional e o aumento de receitas…. Social, cultural e politicamente, a Jornada beneficiou o país. 

.

Público, 5.8.2023 

sábado, 29 de julho de 2023

Grande Angular - É difícil viver em Portugal

Dizem que os pequenos gostam de se considerar grandes. É possível. Mas tal afirmação, mesmo se verdadeira, não chega para compreender a tendência de muitos portugueses para a fantasia narcisista. Sobretudo a imerecida. De presidentes a trabalhadores e estudantes, tantos comungam nesta atitude! Todos garantem que somos os melhores do mundo em qualquer coisa. Ou até em muitas coisas. No futebol, para lá vamos a passos largos, com os melhores treinadores e os melhores jogadores do mundo. No atletismo, na natação, no hóquei em patins, no ténis de mesa, no judo e no ciclismo, para lá caminhamos, se é que já não somos os melhores do mundo em várias modalidades. Na vela, no hipismo e na tourada, estivemos sempre entre os melhores do mundo, mesmo se éramos absolutamente de segunda ou terceira categoria. Não há dúvidas quanto ao facto de os vinhos portugueses, sobretudo o do Porto, serem os melhores do mundo. Tal como o peixe, a cortiça e o azeite, todos sem igual. As duas cidades portuguesas mais famosas, Lisboa e Porto, são, sucessiva e alternadamente, os melhores destinos turísticos do mundo. E a nossa natureza é sem igual: já os autores do “Guia de Portugal”, dos anos 1920, consideravam que a “paisagem arbustiva” do Gerês e o “céu estrelado português” eram os melhores do mundo. Hoje, são mais as praias, únicas e melhores. Na religião, além dos reis, feitos “majestades fidelíssimas” pelo Papa, temos a aparição e o santuário de Fátima entre os melhores. E são seguramente portugueses os melhores católicos, como, aliás, os comunistas, igualmente os melhores (e últimos…). Tivemos também o melhor fascismo e a mais doce polícia política. Os Descobrimentos portugueses foram os melhores do mundo, tal como a respectiva colonização, exemplo e modelo de bons costumes. A Constituição de 1976 foi e ainda é designada como a melhor do mundo, a mais avançada e progressiva. Aliás, pouco antes, a revolução de 25 de Abril tinha sido a mais moderna, luminosa e libertadora dos tempos modernos. E a descolonização fora simplesmente exemplar!

 

Estes mitos têm a vida dura. Uns são atemporais, persistem ao longo das décadas. Outros são próprios de cada época, da República, do Estado Novo ou da democracia. Além de serem nefastos, do ponto de vista cultural, têm uma consequência negativa, a de apagar realizações importantes do país e da sociedade, que, sem serem as melhores do mundo, marcaram os últimos tempos. O país pobre e atrasado dos anos 1950 deixou de o ser. Com século e meio de atraso, o analfabetismo quase desapareceu. As mulheres desempenham hoje, finalmente, um papel decente na sociedade e deixaram de ser apêndices dos homens. O nível de vida aumentou muito consideravelmente e os portugueses têm agora em casa água, electricidade, telefone, fogão, instalações sanitárias e esgotos, facilidades que a maioria não tinha há cinquenta anos. A mortalidade infantil, uma das mais altas, situa-se hoje num plano adequado. Em vez de apenas vinte mil, algumas centenas de milhares de estudantes frequentam agora o Ensino Superior. Em contraste com os duzentos mil de há cinquenta anos, perto de três milhões de portugueses recebem hoje pensão ou reforma. O Serviço Nacional de Saúde está, em princípio, acessível a todos os cidadãos. Com mais de 3.000 quilómetros de auto-estradas, o país foi conquistado pela rodovia mais moderna. Estes e outros feitos, importantes, parecem por vezes submersos pelos mitos dos “melhores do mundo”.

 

Ou ofuscados por outros factos pesados e de difícil compreensão. A verdade é que a realidade nega a fantasia. As enormes dificuldades quase superam as conquistas. A desigualdade social e económica persiste, só esbatida por um colossal esforço de redistribuição social. As taxas de pobreza mantêm-se em planos inadmissíveis, com especial relevo para a elevada proporção de crianças e jovens em situação de pobreza. Os serviços públicos dão todos os dias sinais de ineficiência, desumanidade e desconsideração no atendimento. As filas de espera nos hospitais, nos centros de saúde, nos departamentos de finanças e impostos, nas lojas do cidadão e outras instituições crescem a olhos vistos. Os transportes públicos estão a chegar ao ponto de ruptura e de verdadeiro perigo para a segurança. Entre greves, inoperância e burocracia, os tribunais mostram-se cada vez mais incapazes de assegurar níveis aceitáveis de justiça. Ricos e poderosos passeiam-se pelo Estado e pela sociedade com a certeza da impunidade e a garantia do privilégio. Interesses privados, públicos e partidários lutam e associam-se nas melhores empresas portuguesas, destruindo umas e desbaratando outras, perante a inoperância ignorante ou cúmplice de uma Justiça imprópria para a democracia. Imigrantes ilegais, traficantes de mão-de-obra e criminosos de vários ramos aproveitam a complacência única na Europa para inundar as empresas e os alojamentos clandestinos de desgraçados e miseráveis das sete partidas do mundo. Portugal caminha, despreocupadamente, para uma grave crise de ilegalidade e imigração.

 

É certo é que estamos a viver momentos particularmente difíceis, de que as autoridades políticas não parecem convencidas. A Direita arrogante e a Esquerda presunçosa, ambas autoritárias, não estão disponíveis para olhar com isenção e humanidade para os serviços públicos. Estes, que poderiam ser o grande trunfo de uma sociedade mais justa, mesmo se pobre ou remediada, estão a entrar em crise séria de competência, de eficácia e de humanização. Há cada vez mais a certeza de que impera a falta de cuidado e de atenção perante as mais delicadas situações sociais e diante dos mais frágeis e vulneráveis. Há desprezo pelos pobres, pelas filas de espera na saúde, pelo incómodo nos transportes, pela vida urbana desconfortável, pelos bairros suburbanos esquálidos e pelos imigrantes ilegais explorados. Os trabalhadores mais qualificados e os técnicos diferenciados, incluindo académicos e cientistas, vivem já uma crise de oportunidades. Insiste-se no modelo de economia de mão-de-obra barata. Os dirigentes da política e da economia esforçam-se por distribuir, com o que escondem as suas dificuldades em estimular o investimento e a criação de mais riqueza.

 

É difícil viver em Portugal. É o que, ao partir para a Europa, os emigrantes portugueses nos dizem. Espera-se que não haja ainda quem garanta que temos ou somos os melhores emigrantes da Europa!

.

Público, 29.7.2023

sábado, 22 de julho de 2023

Grande Angular - Onde está o soberano

 Fazer cair governos. Dissolver parlamentos. Aprovar votos de censura. Recusar votos de confiança. Desfazer coligações. Exigir demissões de ministros. Tentar ou forçar a substituição de Primeiros-ministros. Eis algumas das modalidades de democracia que bastantes portugueses apreciam. E que muitos políticos cultivam. Convenhamos que se trata de vícios nocivos. Nascem da instabilidade e geram a imprevisibilidade. Coisas que a democracia tem de tolerar, para ser sólida, mas que detesta, porque não são essas as suas especialidades. Talvez por terem estado décadas sem exercício democrático, os eleitores portugueses têm especial afecto por estes dramas.

 

O actual governo, de maioria absoluta, não dura sequer há dois anos. Isto é, menos de metade do seu mandato. Podemos fazer a avaliação em permanência. No Parlamento. Em Belém. Nos jornais e nas televisões. Nos corredores da Academia. Nas empresas. Nos sindicatos. Nos cafés. É bom que assim seja. Essa avaliação é um sal da democracia. Mas não é a democracia. Esta vive dos mandatos certos e seguros. De eleições regulares e com data marcada. Dos direitos políticos fundamentais, a começar pelo de voto, secreto e universal. E das liberdades essenciais para a realização de eleições, isto é, de expressão, reunião e associação. Por outras palavras, é ao povo soberano, ou ao eleitorado, que compete avaliar, recompensar, castigar e substituir. É uma das definições clássicas do sistema democrático: aquele em que o povo demite e elege o seu governo. Por outras palavras, aquele em que os cidadãos se vêem livres de quem não cumpre.

 

Várias entidades (jornais, agências, estações de rádio e televisão, empresas e partidos) fizeram ou mandaram fazer sondagens de opinião. A quantidade e a variedade não surpreendem: nas vésperas do pousio de Verão, antes do encerramento da Assembleia e a coincidir com o debate do Estado da Nação, justificam estas iniciativas. Há coincidência em muitos resultados, tal como há diferenças: nada de anormal. Resulta uma impressão geral fundada em alguns indicadores: a de que os eleitores estão inquietos com o custo de vida, a habitação e os serviços públicos, mas a sua primeira insatisfação é com o governo. Todavia, essa atitude não é acompanhada de uma outra, a da necessidade de derrube do governo, de demissão do Primeiro-ministro, de dissolução do Parlamento e de realização de eleições. Pelo contrário, as várias maiorias expressas não consideram que deva haver eleições antecipadas. Sábio povo e ponderado eleitorado! Os eleitores parecem dizer que sabem que são eles a fonte da soberania, que se consideram os únicos capazes de correr com um governo, de substituir um Primeiro-ministro e de eleger um novo Parlamento. Reconheçamos que é um sinal de maturidade: apesar de sublinharem que o pior da actualidade são as deficiências do governo, os eleitores preferem esperar pelo fim do mandato e pelas novas eleições regulares.

 

Esta é uma realidade importante: a democracia representativa vive de mandatos. Só em circunstâncias absolutamente excepcionais é que se pode encarar a hipótese de os interromper. Mesmo nessas circunstâncias, aliás, estão previstas as formas a adoptar e respeitar. De outra maneira, são os próprios princípios da democracia que estariam em causa. É preciso ter a certeza de que há ameaças e perigos para a democracia, que justifiquem uma interrupção. É necessária autoridade política e moral para levar a cabo tal decisão. É indispensável que haja legitimidade que justifique uma decisão tão extrema. É de absoluta mediocridade intelectual e moral, mas também de discutível legitimidade, interromper mandatos democráticos para favorecer amigos, vingar-se de adversários, incomodar concorrentes ou prejudicar competidores. Já tivemos disso tudo na história recente e nunca resultou, nem foi bom exemplo.

 

Como se pode imaginar, o argumento das sondagens é nulo e ilusório. Na verdade, as sondagens, essenciais para a democracia e fundamentais para a formação da opinião, são por definição volúveis e incertas. Temporárias de qualquer maneira. Transitórias de certeza. Traduzem estados de espírito do momento. Podem facilmente alterar-se com a permanente mudança de circunstâncias. As sondagens devem, por vezes, servir de úteis indicadores, de sinais e de informações sobre os espíritos, os sentimentos e as condições de vida dos cidadãos, mas não devem fundamentar actos tão graves como seja a interrupção de um mandato democrático regular.

 

Já se sabe que o “regular funcionamento das instituições” é um critério importante. Os obstáculos e as ameaças a tal condição são de extrema gravidade e devem ser removidos ou eliminadas a tempo. O problema é que a definição dessa situação é muito difícil e polémica. Mas, de qualquer maneira, não se pode resumir a “problemas sociais”, descontentamento, corrupção ou escândalos. Tudo isto é o pão nosso da democracia, nada justifica a quebra de mandatos legítimos.

 

O recurso à interrupção de mandatos é próprio de pequena política, de trica e intriga. É frequente em países ou situações que privilegiam a ruptura, o afrontamento e o combate. Forçar a queda de governos e de parlamentos é típico de democracias fracas, possivelmente adolescentes e seguramente imaturas. É a esperança dos que vêem sempre a sua fortuna no mal dos outros, dos que esperam que o mal dos povos seja a glória deles próprios.

 

É verdade que uma circunstância merece especial relevo: o voto de censura parlamentar ou a recusa da confiança. Não estamos perante uma interrupção forçada ou artificial dos mandatos, estamos diante de uma legitimidade insuficiente. Um governo necessita de ser reconhecido pelo Parlamento. Quer isto dizer que a confiança é um critério indispensável e que aquela resulta directamente da representação democrática. Nesse sentido, se o Parlamento pode dar a sua confiança, também a pode retirar. E se dá a confiança, também pode dar a censura. E a impossibilidade de formação de um governo, com confiança parlamentar, é um irregular funcionamento das instituições. 

 

A natureza parlamentar do nosso regime democrático é mitigada e sempre foi contestada. Quase toda a gente gosta mais do semipresidencialismo, do presidencialismo, de uma qualquer fora de cesarismo esclarecido ou de variantes iluminadas de substituição do soberano. São infelizmente tradições funestas de um país com poucas horas de voo democrático. Por isso, aos dirigentes políticos, compete, mais do que retirar vantagens do nosso atraso, contribuir para o seu desenvolvimento.

.

Público, 22.7.2023

sábado, 15 de julho de 2023

Grande Angular - O que a democracia não pode resolver

 Dentro de dias, inicia-se o período anual de pousio político. O debate do Estado da Nação marca o encerramento estival do Parlamento. Em paralelo, as reuniões do Presidente da República com os partidos são outro sinal que se transforma gradualmente em rotina democrática. Logo a seguir, uma reunião do Conselho de Estado marca simbolicamente o fim da temporada democrática.

 

Vão fazer-se balanços. Uns optimistas e narcisistas, outros pessimistas e aterradores. Todos terão as suas razões. Mas os caminhos vão dar aos mesmos destinos. Um: a vaidade do governo com a economia e as finanças públicas. Dois: a derrota do governo com a saúde. Três: as dificuldades com as políticas sociais e a agitação que se prepara para a rentrée. Quatro: a avaliação das relações do Presidente com o Governo e o Parlamento, uma espécie de diagnóstico ao semipresidencialismo. Cinco: a patética aprovação, exclusivamente pelo partido do governo, do relatório do inquérito à TAP, em que o Governo era o principal visado, mas acaba por ser o principal ausente. Seis: a cada vez mais visível corrupção. Sete: a impressionante crise da justiça, cuja persistência é talvez o mais inquietante sintoma das dificuldades da democracia portuguesa.

 

Em quase todos os temas que vão ser especialmente debatidos, o denominador comum são as políticas públicas, como sejam as da saúde, da educação e da habitação. É normal que assim seja. Mas há matérias que não são abrangidas por esta noção de política pública. Por exemplo, a corrupção e a justiça. Choca especialmente ver a persistência destes problemas. E é de difícil compreensão a razão pela qual tão pouco se progride, bem pelo contrário, tanto se regride.

 

Verdade é que há problemas que a democracia não pode e não sabe resolver. Um deles é a corrupção partidária. Outro é a crise da justiça. Há mais, mas estes bastam para ver o problema. Da corrupção, sabe-se que os partidos são os seus principais agentes. Em proveito próprio ou a benefício de amigos, o que vai dar ao mesmo. É difícil esperar que agentes partidários, ministros, directores da administração pública, autarcas e outros dignatários, autores ou beneficiários da corrupção, sejam eles próprios os agentes da sua eliminação.

 

O que é mais sério e mais interessante é que esses problemas, não resolvidos e não resolúveis pela democracia, só têm solução em democracia. Quem os tente resolver de outra maneira, ditador, partido único, assembleia de “homens bons”, tecnocrata, igreja ou associação secreta, deixará tudo, depois, pior do que antes! O “messianismo” ou a “vassourada” nunca resolveram e sempre criaram problemas mais graves.

 

Os partidos políticos não conseguirão, mesmo que queiram, clarificar a questão dos financiamentos públicos. É aliás ridículo permitir que o Parlamento pague os vencimentos de assessores, mas proíba que esses assessores trabalhem para o partido. Como se trabalhar para o Grupo Parlamentar não fosse trabalhar para o partido! 

 

Em teoria, os partidos políticos são perfeitamente capazes de resolver a corrupção e de legislar em conformidade. O problema é que são homens e mulheres que fazem os partidos. Mesmo os que lutam contra a corrupção. Na verdade, assiste-se, neste domínio, à síndrome da duplicidade desportiva: pode-se destruir, matar e roubar, desde que os autores sejam amigos e os prejudicados adversários. Outra regra a seguir pelos amigos: não ser visto pelo árbitro, pela polícia ou pela justiça! Tal como o futebol, a política partidária pode ser destituída de moral. Roubar não é necessariamente mau, desde que não se veja. E não é muito diferente do capitalismo: tudo é possível, desde que seja bem feito! E é absolutamente igual ao comunismo: desde que lucrem os amigos e sejam prejudicados os inimigos.

 

A situação portuguesa, no que à justiça diz respeito, é de tal modo caricata que é frequente ouvir opiniões desesperadas. Ao lado da “pequena justiça”, dos milhares de casos resolvidos todos os dias nas comarcas, há a “grande justiça”, a das causas célebres, dos grandes bandidos e das pessoas importantes. Esta última oferece todos os dias o espectáculo conhecido de adiamentos, chicanas, atentados aos direitos dos cidadãos (sejam as vítimas, sejam os arguidos), atrasos, prescrições e toda a espécie de intervenções mais ou menos ilícitas que tornam a justiça dos poderosos uma paródia. E não se vê sequer o princípio da reforma.

 

Tanto no caso da corrupção, como no da crise da justiça, tão ligados um ao outro, há um aspecto interessante, mas que dificulta ainda mais a sua resolução. Os meios tradicionais, leis, mudança de responsáveis, eleições legislativas, dissolução do parlamento e moções de censura, nada resolvem. Aquelas crises não estão ao alcance dos meios tradicionais da vida política partidária. Para eles se exige e espera a intervenção de instituições especialmente dotadas com capacidade de intervir ou de influenciar. À cabeça, evidentemente, o Presidente da República. Mas também instituições públicas com especial autonomia, como sejam, entre outras, as magistraturas, as polícias, a Academia, o Tribunal de Contas, a Provedoria de Justiça e a Autoridade Fiscal. Até as organizações patronais e sindicais poderiam colaborar. Além da decisiva intervenção da comunicação social. Se, nestas áreas e nestas instituições, em democracia, não há iniciativas importantes de debate e de exercício de influência e pressão, podemos ter a certeza de que vamos viver décadas com a corrupção crescente e a justiça em declínio. Curiosamente, estão ligadas uma à outra. Uma não se resolve sem a capacidade actuante da outra.

 

A democracia partidária não é capaz de resolver a questão da corrupção, pela simples razão de que os partidos são seguramente os primeiros entre os autores e os beneficiários.  Também não é capaz, nem deve tentar, resolver a crise da justiça, pela razão evidente de que a justiça necessita de autonomia e sobretudo de independência dos magistrados em tribunal. Mas é decisivo saber que a justiça, não tendo relações com a democracia partidária, deve submeter-se ao princípio da democracia e do Estado de direito. Dramaticamente, a crise da justiça ajuda ao vigor da corrupção. Quer isto dizer que a sociedade, as suas instituições, as suas forças intelectuais e morais, a opinião pública e as aspirações de muitos, são chamadas a procurar soluções e a encontrar o “caminho das pedras” para estas tarefas de que tanto depende a nossa liberdade.

.

Público, 15.7.2023