sábado, 16 de março de 2024

Grande Angular - A glória fátua do desastre

 As eleições realizaram-se a 10 de Março. Há uma semana. Os resultados conhecidos trouxeram grandes surpresas. Mas ainda não se sabe realmente quem ganhou. As previsões têm alta probabilidade, mas não são ainda certezas. O apuramento dos votos ainda não acabou. Não se percebe porquê, mas a contagem de votos de emigrantes fica para o fim. Poderia estar pronta desde as vésperas da eleição. Os resultados poderiam ser logo acrescentados aos primeiros dados conhecidos, evitando-se assim esta verdadeira desconsideração pelos eleitores a viver no estrangeiro. Tudo ficaria resolvido. Mas não. Ficam a faltar quatro deputados que podem mudar os resultados! E ficamos quase duas semanas à espera.  À espera... Os eleitores não percebem. Mas isso não importa.

 

Ainda não se pode dizer com segurança quem tem mais votos e mais deputados eleitos. Para efeitos de indigitação, não se sabe quem, pessoa e partido, vai ser chamado a formar governo. Assim, o governo não existe, nem se conhecem os futuros ministros. Por direito próprio, o Parlamento deveria reunir no dia seguinte à sua eleição. Apesar disso, entre nós, essa inauguração fica dependente de factores burocráticos e políticos pouco recomendáveis. Logo, o Parlamento ainda não reuniu, o que só poderá acontecer lá para 25 deste mês, pelo menos duas semanas depois das eleições. Não se conhecem ainda todos os deputados eleitos. Por isso, o Primeiro-ministro e os seus ministros ainda não tomaram posse. Pelo que não há programa de governo. Muito menos aprovação ou rejeição de uma moção de confiança ou de censura. O que quer dizer que não há sequer ideias sobre a possibilidade de se preparar orçamento novo ou rectificativo.

 

Sendo verdade tudo o que precede, não deixa de impressionar aquilo de que é capaz a imaginação dos políticos portugueses! Imaginação e espírito quezilento. Assim como egocentrismo impertinente e soberba partidocrática. Já vários partidos anunciaram que, sem conhecer governo, votariam moções de rejeição, não se sabe de quê, nem de quem. Outros garantiram que votariam contra o programa de governo e o orçamento que não conhecem pela simples razão de que não existem. Não se dão sequer ao trabalho de afirmar candidamente que “vão ler” ou “vão ouvir” … Não! Já sabem que não votam, nem querem.

 

O PCP vota contra. Ponto. O Bloco vota contra. Ponto. O PS faz oposição e vota contra. Ponto. O PSD diz que “não é não” e já anunciou há muito que não fala com o Chega, nem quer bloco central. O Chega diz que, se não for previamente consultado, vota contra. Convém repetir, pois parece inacreditável. Já há quem vote contra uma moção de censura, que não está escrita, que não se sabe se haverá, cujo autor se desconhece e cujo teor é um mistério. Não se sabe qual é o governo, nem qual é o seu programa, muito menos em que condições é formado, mas já se sabe que há quem vote contra. Parece que a força da oposição, das oposições, reside nesta maravilhosa frase digna de banda desenhada: “Não sei o que é, mas sou contra!”.

 

O PSD deixou-se enrolar naquela que foi a maior vitória dos Socialistas, que perderam a eleição, mas ganharam o combate. Com a ajuda dos mais pequenos e o contributo de umas pessoas avulso, conseguiram demover o PSD e obrigá-lo a afirmar, antes das eleições, que não fariam alianças nem governos com o Chega. Daí o famoso “não é não!”, autêntica corda para o suicídio. Pagou assim uma apólice de seguro de vida aos socialistas. E reforçou o papel do Chega na oposição, coisa que interessa de novo aos socialistas. 

 

De toda a maneira, isto tudo, que passa por ser o mais importante e é o mais falado, é próprio da coreografia do governo, da política e dos partidos, sempre mais interessados no adjectivo do que no conteúdo. Sempre mais preocupados com os processos do que com os objectivos. Sempre mais atentos às suas contas de “ganhos e perdas”, do que à realidade social e económica e à substância dos serviços públicos.

 

Estranho país este, esquisito sistema partidário este, em que os grandes partidos, de quem tudo depende, se revelam medrosos e covardes, enquanto os pequenos partidos, atrevidos como não se imagina, de quem nada depende, com menos de meia dúzia de deputados, ousam dar a entender que tudo depende deles, que “não estão dispostos para isto”, que “estão disponíveis para aquilo”, e que “não contem com eles para aqueloutro”.

 

Não conseguimos afastar esta sensação de que a classe política portuguesa não está à altura de resolver os problemas que cria. Uns, especialistas em minas e armadilhas, entregam-se à intriga com facilidade. Outros ainda, pretensos conhecedores da alma humana, dedicam-se aos adjectivos e aos processos da política, como se os meios fossem mais importantes do que os fins.

 

É lamentável ter de o dizer, mas há quem queira sempre o pior. São condenáveis as generalizações, mas somos obrigados a verificar que quase todos estão interessados no desastre, na impossibilidade de governo, na dificuldade da coligação, na impotência de qualquer solução, no adiamento de qualquer acção e na realização de novas eleições. O Chega quer subir ainda mais. O PSD julga poder assegurar uma maioria. O PS quer ter uma segunda oportunidade. Os pequenos partidos, à beira da evaporação, procuram uma saída. Todos convencidos de que, assim, liquidam o Chega e vão buscar os seus despojos. O que o país pode sofrer, durante os próximos meses, até anos, na economia, na sociedade, na política e na cultura, parece ser totalmente indiferente. O que importa é o casino da política e o puzzle das teorias.

 

Há duas hipóteses. Uma, a aliança da direita, entre PSD, CDS e Chega. Outra, dita de bloco central, entre o PSD e o PS. Quase ninguém quer uma. Quase ninguém quer outra. Acordos sólidos, mesmo se sectoriais ou parcelares, mas com palavra dada e documento escrito, conhecidos pelos eleitores e atraentes para os parceiros sociais? Também quase ninguém quer. Outras maneiras de participar, dialogar e colaborar, com ou sem participação no governo? Ninguém quer nem está para isso. O que terá dado a estes partidos, a esta classe política e a estes políticos para sacrificarem o seu país a interesses menores e a vaidades maiores? Querem a terra queimada e chamar-lhe paz e progresso…

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Público, 16.3.2024

sábado, 9 de março de 2024

Grande Angular - O que é o voto útil?

Parece que, ao contrário dos restantes, o dia de hoje é de reflexão. Serve para pensar no que foi dito e ouvido. E no que nunca foi dito. Os candidatos têm assim um dia de descanso, para fazer o que não fizeram antes: reflectir. Não servirá para grande coisa, dado que se vota no dia seguinte e já não há comícios ou acções. Os eleitores também têm o privilégio de um dia de reflexão. É inútil para o eleitorado em geral, dado que não se pode tornar público, nem partilhar com os outros os resultados dessa reflexão. Mas é um pensamento útil para nós próprios, no recato da nossa vida privada. Ajuda a esclarecer, quando é necessário. Ajuda a decidir, quando ainda há hesitação. Mesmo quando tudo leva a crer que a maior parte dos eleitores já decidiu. Ainda bem. Na verdade, o dia de reflexão parece ter sido forjado para os candidatos terem tempo de descansar, limpar espingardas, preparar as declarações de vitória ou de derrota, visitar os locais onde se vai carpir ou festejar. E preparar o que se vai dizer, à noite, na televisão, onde se joga a democracia.

 

O melhor da eleição é, evidentemente, o dia propriamente dito. Com bom ou mau tempo, cidadãos atravessam as ruas, cruzam-se nos passeios, esperam a sua vez nas filas diante das urnas e conversam. O ruído da cidade é menor do que habitualmente, os carros são mais pacíficos e as buzinas postas em descanso. Mas ouvem-se as vozes dos vizinhos, dos pais a chamar pelos filhos, dos amigos que trocam impressões sobre os resultados de “logo à noite”. Nos locais de voto, um ou outro figurão aproxima-se para votar, logo perseguido pelas televisões. Temos direito a declarações absolutamente inócuas, sempre cheias de esperança. Logo a paz se instala. Conforme os sítios, as classes e as idades, uns juntam-se para almoçar, outros para jantar. Uns reúnem-se em casa, outros em restaurantes. Logo à noite, entre o futebol, a Eurovisão, os Óscares, as telenovelas e outros desportos, as famílias dispersam-se em paz. Ficam os viciados em política que, a sós ou com amigos, passam metade da noite a ouvir comentários e ver sondagens. Alguns fazem apostas. Outros dirigem-se às televisões como se estas fossem pessoas vivas. Há uma velha crença, não destituída de razão, que diz que a verdadeira vitória eleitoral é a que se obtém na televisão durante a noite. Há evidente exagero. Mas também é verdade. São raríssimos os que já disseram: “perdemos”! São multidão os que dizem “ganhámos”! E todos dizem que fizeram o seu melhor. Já houve tempos em que a vigília durava até quase de manhã. Agora, em poucas horas sabe-se o essencial. 

 

Neste dia, com raras excepções, mesmo os adversários parecem respeitar-se. Até os rivais se saúdam. Será que se pensa que o dever foi cumprido? Ou que o direito foi exercitado? Pode imaginar-se que vingue um espírito desportivo, isto é, “vai haver quem ganhe e quem perca”? Por outras palavras, o dia de eleição, o dia de ida às urnas parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece. Parece ser também aquele em que toda a gente sente prazer em pertencer e sente orgulho em decidir. A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.

 

Estranhamente, ou talvez não, todas as atenções se dirigem para o “voto útil”. Tanto dos candidatos e partidos, como dos comentadores, dos jornalistas e dos analistas. Os partidos em primeiro lugar. Cada partido considera que o único voto útil é em si próprio. Para evitar os desmandos. Para impedir os exageros dos outros. Para liquidar as políticas dos adversários, fontes de todos os males. Uns partidos invocam o voto útil, em si próprios, para evitar a direita ou a extrema-direita. Outros, para evitar as coligações de esquerdistas e comunistas. Mas sempre voto útil. Também há os que garantem que o voto útil, em si, é o voto que obriga os outros a fazerem o que eles querem. É o argumento próprio dos pequenos partidos que afirmam que o voto útil é o que lhes permitirá obrigar os grandes a fazer as suas políticas. Já os grandes partidos consideram que votar nos pequenos partidos é inútil E que o voto útil é neles. Só eles podem garantir estabilidade. 

 

Em segundo lugar, os analistas e comentadores. Descobriram eles que, neste misterioso “voto útil”, se encontrava uma gazua teórica para explicar quase tudo o que não percebem. Verdade é que, entre jornalistas, comentadores e analistas, se inventou esta categoria: os eleitores do “voto útil”. Por outras palavras: o “voto útil” é aquele que não tem razão de ser doutrinária, nem emocional, muito menos cultural ou de classe. Haveria um grande grupo de pessoas, ninguém sabe quantas, que não vota por convicção ou sentimento de pertença. Vota num, porque quer evitar o outro. Porque quer derrotar um inimigo, não porque queira um amigo. Quer derrotar quem não gosta, ou quem tem poder a mais, não procura que ganhe aquele de quem gosta.

 

O candidato apela ao voto útil porque simplesmente não sabe que mais dizer. Tem receio de afirmar que os eleitores devem trair as suas convicções ou os seus partidos tradicionais. Não ficam à vontade se lhes disserem que o voto não corresponde a crenças, muito menos doutrina. Inventaram o voto útil. O comentador justifica tudo, analisa tudo, explica tudo. Ou quase. O que não consegue explicar, como sejam as transferências de votos estranhas, as perdas de convicção ou o desgosto nos anteriores favoritos, tudo isso passa para a grande categoria de voto útil. Os candidatos não se dão conta do atestado de imbecilidade que estão a passar aos eleitores que consideram úteis. Os comentadores não percebem que estão a esconder a sua ignorância e que isso se vê.

 

Votar tem alguma utilidade? Tem! Nem que seja em branco. Ou nulo. Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre. Qualquer destes votos é útil, porque a utilidade do voto de cada um é ser o meio de afirmar a sua liberdade, de fundar a sua dignidade, de ser cidadão e de escolher.

 

Se há uns votos que são “úteis”, o que são os outros? Inúteis?

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Público, 9.3.2024

Grande Angular - O que é o voto útil?

Por António Barreto

Parece que, ao contrário dos restantes, o dia de hoje é de reflexão. Serve para pensar no que foi dito e ouvido. E no que nunca foi dito. Os candidatos têm assim um dia de descanso, para fazer o que não fizeram antes: reflectir. Não servirá para grande coisa, dado que se vota no dia seguinte e já não há comícios ou acções. Os eleitores também têm o privilégio de um dia de reflexão. É inútil para o eleitorado em geral, dado que não se pode tornar público, nem partilhar com os outros os resultados dessa reflexão. Mas é um pensamento útil para nós próprios, no recato da nossa vida privada. Ajuda a esclarecer, quando é necessário. Ajuda a decidir, quando ainda há hesitação. Mesmo quando tudo leva a crer que a maior parte dos eleitores já decidiu. Ainda bem. Na verdade, o dia de reflexão parece ter sido forjado para os candidatos terem tempo de descansar, limpar espingardas, preparar as declarações de vitória ou de derrota, visitar os locais onde se vai carpir ou festejar. E preparar o que se vai dizer, à noite, na televisão, onde se joga a democracia.

 

O melhor da eleição é, evidentemente, o dia propriamente dito. Com bom ou mau tempo, cidadãos atravessam as ruas, cruzam-se nos passeios, esperam a sua vez nas filas diante das urnas e conversam. O ruído da cidade é menor do que habitualmente, os carros são mais pacíficos e as buzinas postas em descanso. Mas ouvem-se as vozes dos vizinhos, dos pais a chamar pelos filhos, dos amigos que trocam impressões sobre os resultados de “logo à noite”. Nos locais de voto, um ou outro figurão aproxima-se para votar, logo perseguido pelas televisões. Temos direito a declarações absolutamente inócuas, sempre cheias de esperança. Logo a paz se instala. Conforme os sítios, as classes e as idades, uns juntam-se para almoçar, outros para jantar. Uns reúnem-se em casa, outros em restaurantes. Logo à noite, entre o futebol, a Eurovisão, os Óscares, as telenovelas e outros desportos, as famílias dispersam-se em paz. Ficam os viciados em política que, a sós ou com amigos, passam metade da noite a ouvir comentários e ver sondagens. Alguns fazem apostas. Outros dirigem-se às televisões como se estas fossem pessoas vivas. Há uma velha crença, não destituída de razão, que diz que a verdadeira vitória eleitoral é a que se obtém na televisão durante a noite. Há evidente exagero. Mas também é verdade. São raríssimos os que já disseram: “perdemos”! São multidão os que dizem “ganhámos”! E todos dizem que fizeram o seu melhor. Já houve tempos em que a vigília durava até quase de manhã. Agora, em poucas horas sabe-se o essencial. 

 

Neste dia, com raras excepções, mesmo os adversários parecem respeitar-se. Até os rivais se saúdam. Será que se pensa que o dever foi cumprido? Ou que o direito foi exercitado? Pode imaginar-se que vingue um espírito desportivo, isto é, “vai haver quem ganhe e quem perca”? Por outras palavras, o dia de eleição, o dia de ida às urnas parece ser o mais doce e civilizado dia que a democracia oferece. Parece ser também aquele em que toda a gente sente prazer em pertencer e sente orgulho em decidir. A dignidade do cidadão está ali, naquele gesto com que deita o papel na urna. A utilidade do voto reside ali, na decisão livre e sem vigilância, no sentimento de que se tem algum poder, que se tem algo para dizer.

 

Estranhamente, ou talvez não, todas as atenções se dirigem para o “voto útil”. Tanto dos candidatos e partidos, como dos comentadores, dos jornalistas e dos analistas. Os partidos em primeiro lugar. Cada partido considera que o único voto útil é em si próprio. Para evitar os desmandos. Para impedir os exageros dos outros. Para liquidar as políticas dos adversários, fontes de todos os males. Uns partidos invocam o voto útil, em si próprios, para evitar a direita ou a extrema-direita. Outros, para evitar as coligações de esquerdistas e comunistas. Mas sempre voto útil. Também há os que garantem que o voto útil, em si, é o voto que obriga os outros a fazerem o que eles querem. É o argumento próprio dos pequenos partidos que afirmam que o voto útil é o que lhes permitirá obrigar os grandes a fazer as suas políticas. Já os grandes partidos consideram que votar nos pequenos partidos é inútil E que o voto útil é neles. Só eles podem garantir estabilidade. 

 

Em segundo lugar, os analistas e comentadores. Descobriram eles que, neste misterioso “voto útil”, se encontrava uma gazua teórica para explicar quase tudo o que não percebem. Verdade é que, entre jornalistas, comentadores e analistas, se inventou esta categoria: os eleitores do “voto útil”. Por outras palavras: o “voto útil” é aquele que não tem razão de ser doutrinária, nem emocional, muito menos cultural ou de classe. Haveria um grande grupo de pessoas, ninguém sabe quantas, que não vota por convicção ou sentimento de pertença. Vota num, porque quer evitar o outro. Porque quer derrotar um inimigo, não porque queira um amigo. Quer derrotar quem não gosta, ou quem tem poder a mais, não procura que ganhe aquele de quem gosta.

 

O candidato apela ao voto útil porque simplesmente não sabe que mais dizer. Tem receio de afirmar que os eleitores devem trair as suas convicções ou os seus partidos tradicionais. Não ficam à vontade se lhes disserem que o voto não corresponde a crenças, muito menos doutrina. Inventaram o voto útil. O comentador justifica tudo, analisa tudo, explica tudo. Ou quase. O que não consegue explicar, como sejam as transferências de votos estranhas, as perdas de convicção ou o desgosto nos anteriores favoritos, tudo isso passa para a grande categoria de voto útil. Os candidatos não se dão conta do atestado de imbecilidade que estão a passar aos eleitores que consideram úteis. Os comentadores não percebem que estão a esconder a sua ignorância e que isso se vê.

 

Votar tem alguma utilidade? Tem! Nem que seja em branco. Ou nulo. Qualquer voto é bom, qualquer voto é útil. Votar é usar a liberdade, como aquelas baterias que duram se são usadas. Votar útil é votar livremente. Votar útil é escolher com autonomia. Pode votar-se na direita ou na esquerda, no grande ou no pequeno partido, no autoritário ou no democrata. No machista ou no feminista. No multicultural ou no integracionista. No branco ou no negro. No rico ou no pobre. Qualquer destes votos é útil, porque a utilidade do voto de cada um é ser o meio de afirmar a sua liberdade, de fundar a sua dignidade, de ser cidadão e de escolher.

 

Se há uns votos que são “úteis”, o que são os outros? Inúteis?

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Público, 9.3.2024

sábado, 2 de março de 2024

Grande Angular - O fim dos partidos políticos

 O fenómeno não é novo. Mas é mais real do que nunca. Esta eleição veio acelerar o desaparecimento dos partidos políticos. Pelo menos, tal como os conhecemos durante décadas. A campanha está sobretudo concebida para a televisão e “as redes”. O que quer dizer preparada para as aparições dos chefes à saída dos restaurantes, as visitas dos chefes a hospitais e ao repouso dos chefes. Tudo está pensado para que os momentos importantes sejam os debates e as entrevistas de televisão dos chefes. Até os programas da manhã, que não era possível imaginá-los com política à mistura, são agora feitos de modo a que os chefes apareçam e por ali espalhem os seus talentos privados e as suas sofisticadas modéstias.

 

Na verdade, não estamos perante uma competição entre partidos, muito menos uma apresentação de alternativas. Estamos, isso sim, diante de um combate de chefes. E de uma passagem de modelos. Se a eleição fosse a do Presidente da República, ainda vá. Mas não é. Não se trata de cargo pessoal. Só combate de chefes. Mesmo os que elogiam o colectivo, deixam-se arrastar pelas vaidades dos duelos. Mesmo o Bloco e o PCP, tão palavrosamente elogiosos do trabalho de equipa, acabaram por tudo fazer girar à volta do chefe.

 

São cada vez mais fortes os indicadores das novas tendências, as que substituem o papel dos partidos pela função dos líderes. Poderá dizer-se que não se trata de fenómeno novo. Mas novo é o facto de tal se fazer à custa da dissolução sistemática das estruturas dos partidos. Os organismos partidários são meros instrumentos do Chefe. É visível e deplorável o apagamento de estruturas partidárias. A doutrina comum, a natureza de classe, as inclinações religiosas, as tradições comunitárias e as opções doutrinárias desaparecem, deixando lugar às mais banais proclamações adjectivas.

 

Movimentos novos e partidos tradicionais agem no mesmo sentido, no da destruição do partido como organização política autónoma e reconhecida. Pelo que não percebem das mudanças do eleitorado. Pelos erros que cometem. Por esta espécie de autismo em que os partidos vivem, na certeza de que tudo o que está mal é da culpa dos outros, da extrema-direita, dos esquerdistas, dos imigrantes, da juventude sem credo e do povo sem crença!

 

Sem partidos políticos, não há democracia. É, para muitos, um princípio indiscutível. Mas não é possível deixar de pensar em todas as outras possibilidades. O que é a democracia sem partidos políticos, ninguém sabe. Mas…. Há quem pense que é possível organizar a vida política das comunidades com outras instituições e de outras formas. Teoricamente, a democracia pode ser melhor sem partidos. Com menos “rackets” organizados para capturar o Estado e as autarquias.  Mas também pode ser pior, com movimentos ditos “inorgânicos” e efémeros, sem identidade histórica nem programa, sem doutrina nem valores de referência, quase só energia e protesto. E vontade despótica.

 

Os partidos políticos podem ser fonte de racionalidade, tal como os “movimentos” são factores de irracionalidade. Os novos movimentos, associações e grupos efémeros, dependem de racionalidades ou interesses externos, ligados a uma pessoa, herói ou demagogo.

 

Há vários exemplos em Portugal. É uma realidade em crescimento. Chega, PAN, ADN, Bloco de esquerda, Nova Direita e outros pertencem a esta nova variedade. Os dois grandes partidos, PS e PSD, resistem, mas já exibem as suas fraquezas. O mais antigo, PCP, está em vias de desaparecimento, como em quase todo o mundo. O CDS já despareceu. É possível que a democracia portuguesa seja dominada, nas próximas décadas, por figuras efémeras, agentes de interesses, mafias internacionais…

 

As presentes eleições e respectiva campanha são as mais certeiras demonstrações deste caminho para a destruição dos partidos como centros de racionalidade. Uns desapareceram. Outros nasceram, mas já não são partidos políticos no sentido conhecido. Os que melhor resistem são agora obrigados a compor com movimentos, com iniciativas sem história e talvez sem futuro. Mas que são o que é hoje a política. Os que se mantêm como partidos deixaram de perceber os cidadãos. E deixaram de ter que lhes dizer. Não recebem inspiração, nem lhes dão valores, só subsídios e pensões. O tema não é evidentemente português. O mesmo acontece em vários países, na Itália e em França, ou na Europa central e oriental. Muitos são os partidos socialistas, social-democratas, democrata-cristãos, comunistas e radicais que já desapareceram.

 

Curiosamente, os partidos tinham mais existência, como organizações e estruturas associativas, quando tinham líderes fortes e notáveis (Soares, Sá Carneiro, Cunhal…), do que agora que parece terem dirigentes iguais aos militantes. Em certo sentido, parece poder dizer-se que os chefes muito fortes eram traços de continuidade ou faróis de reconhecimento. Os seus partidos podiam perder ou ganhar, mas eles mantinham-se por períodos razoáveis (talvez de mais, quem sabe?) e os programas duravam com eles. Hoje, líder derrotado é líder morto. Chefe que não vence vai para a rua. Líder que vence, fica e manda.

 

Chefes fortes de partidos fracos são más receitas para a democracia. São partidos com poucas relações com as instituições, as associações profissionais, os sindicatos, as empresas, as religiões, as universidades e outras, que reforçam as democracias e as liberdades. Chefes fortes querem dar voz ao descontentamento, ao protesto e às pulsões naturais das pessoas em dificuldade. São partidos instantâneos e fracos que não existem sem os seus líderes de momento.

 

De modo crescente, as campanhas eleitorais têm sido viveiros de líderes fortes de partidos fracos, o que é confirmado pelas dezenas de comentadores, jornalistas, analistas e académicos que ocupam os canais de televisão. Já ninguém quer saber da espessura política e da vivacidade doutrinária de um partido. A ideia é simples: a mensagem passa se o líder passa. O líder passa se tudo depende dele, se só ele tem voz e se os militantes se limitam às árias do coro ou às funções do papagaio. Aliás, os debates, as entrevistas e os comentários giram cada vez mais à volta das questões adjectivas. Com quem se alia? Quem rejeita? Quem exclui? De quem quer apoio? E se perder muito? E se ganhar pouco?

 

Convém não esquecer: os partidos fracos tornam fracos os fortes líderes.

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Público, 2.3.2024

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Perderam os dois. E nós também

 O combate dos Chefes terminou com uma certeza: a de que perderam os dois. Basta, aliás, o facto de todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) de um dos dois terem apoiado e garantido a vitória do seu preferido, enquanto todos os simpatizantes (políticos, comentadores, analistas e jornalistas) do outro terem afirmado que o seu dilecto era o vencedor, basta esta pequena observação para concluir que ambos perderam. É visível e de lamentar: com raríssimas excepções, os autores dos comentários e das análises das duas ou três dezenas de debates eram aficionados. Conclusão: quem designa o “vencedor” é quem escolhe os comentadores.

 

Vivemos tempos estranhos! O tema mais disputado, o segredo mais bem guardado, a questão bélica mais utilizada, a vexata quaestio mais atraente, a grande força dos contendores e a grande vulnerabilidade dos mesmos traduz-se nas mais absurdas perguntas que se fazem um ao outro e que todos lhes fazem: se perder, o que vai fazer? Se sair derrotado das eleições, quem vai apoiar? Se ficar em segundo lugar, promete apoiar quem fica em primeiro? As perguntas mais frequentes fazem sorrir qualquer pessoa. Em vez de perguntar “o que faz se ganhar?”, pergunta-se “o que faz se perder?”. Realmente importante é o vencedor do debate, não o vencedor das eleições.

 

Esperava-se, em território conhecido, que todos estivessem interessados no que o vencedor vai fazer. Por exemplo, se vencer as eleições, como vai agir para salvar o SNS? Mantém uma política dita de “contas certas”? Que garante fazer com os professores, os médicos, os enfermeiros, os oficiais de justiça, os polícias e os militares? Como pensa o seu partido melhorar a situação dos agricultores? Não vale a pena esperar: não, nada, nunca! O que interessa é saber o que vai fazer o outro, se apoia o vencedor caso perca as eleições!

 

Também há muita gente interessada em perguntas difíceis, mas que, por o serem, seriam justamente as adequadas para uma disputa eleitoral. Como pensa que o nosso país será afectado pelos conflitos em curso, no Próximo Oriente, na Ucrânia, em vários pontos de África e no Extremo Oriente? Qual deve ser a política do Estado português relativamente a esses conflitos? Como se deve preparar Portugal para eventuais alterações da ordem internacional e da NATO em especial? Pode-se esperar sentado pelas respostas: não, nada, nunca! Importante é saber se, sem maioria, apoia os governos dos adversários.

 

As grandes questões de Estado que importa tratar e resolver, como sejam a revisão constitucional, os poderes dos órgãos de soberania, o sistema eleitoral, a organização da Justiça e o conceito estratégico nacional serão também devidamente ocultadas. Que pensam os chefes dos principais partidos? Zero! Não se sabe. Não dizem. Não querem ouvir falar. Estão ocupados com questões mais importantes e decisivas para o país e a população, tais como as de saber o que vai fazer um se perder e se vota o orçamento do outro!

 

A defesa e a segurança, sempre vitais, mas agora, de modo brutal, essenciais, estão ausentes de tal modo que se fica mesmo com a impressão de que não sabem o que pensar nem imaginam o que devem fazer. A organização das Forças Armadas, actualmente com falta de pessoal e de envolvimento da comunidade, sem equipamento à altura, nem capacidade para cumprir as suas missões, está fora das cabeças dos candidatos. Não explicam. Não sabem. Não prometem. Não se comprometem. Mas têm urgência em saber o que fará o outro se perder e sobretudo no caso de perderem os dois.

 

Nas questões internas, para além da habitual distribuição de subsídios e descontos, há matéria urgente. Por exemplo, a política de imigração e o controlo das populações a viver ilegalmente. Ou ainda, os prazos da justiça e o desempenho dos tribunais cada vez mais deficiente. Ou, finalmente, o aumento de criminalidade e da corrupção. Quais são os planos dos candidatos? Estão preparados para os debater diante de nós? Sentem-se capazes de assumir compromissos que não sejam as eternas frases de calendário? Não parece ser o caso. Nada disso é importante. Decisivo é saber se o que perde as eleições vai votar o programa do outro. 

 

Fazem campanha eleitoral não para tornar público o que pensam, mas sim para agradar quem os ouve, dar a impressão de que farão o que se lhes diz, acatar quem lhes fala e dar tudo o que pedem. Os candidatos refugiam-se no novo conceito de proximidade para nada dizer e tudo prometer. E com um único propósito: incomodar o adversário, encostar o outro à parede e vencer, como se fosse luta livre.

 

É impressionante a sensação de receio que os Chefes transmitem! Ambos receiam perder e não serem capazes de fazer governo ou de ficarem nas mãos dos pequenos aliados. Deviam estar preocupados com a sua ambicionada maioria e com o que fazer nesse caso, mas não, estão angustiados com a sua minoria e a do outro. Parece até que nunca aconteceu em Portugal. Na verdade, maiorias de coligação ou aliança não previstas antes das eleições, não anunciadas durante a campanha e improvisadas depois, houve pelo menos três: a de Mário Soares com o CDS de Freitas do Amaral e Amaro da Costa, a de Mário Soares com o PSD de Mota Pinto (o famoso Bloco Central…) e a de António Costa com o PCP e o Bloco. Boas ou más, não estavam previstas, resultaram da necessidade. Boas ou más traduziram o sentido de responsabilidade de um ou mais partidos. Assim como foram o reflexo da vontade de poder e da ambição. Tudo dentro das regras democráticas.

 

Hoje, parece pecado não admitir logo à cabeça que pode perder as eleições ou não dizer com quem fará coligações. Mesmo sem conhecer os resultados das eleições. Mesmo sem saber com que aliados se pode contar. Mesmo sem saber o que o eleitorado quer! Exige-se dos candidatos que digam, desde já, se votam moções de censura (sem ver o texto e sem conhecer as circunstâncias), se viabilizam orçamentos (sem conhecer o conteúdo e sem debater as opções) e se apoiam governos sem ver a exacta composição, sem conhecer o programa e sem avaliar as respectivas opções. 

 

Portugal tem contribuído galhardamente para a transformação do debate político em luta livre sem conteúdo político. Só com adjectivos e sem discussão relevante. Elevação e respeito pelo eleitorado são géneros raros na caixa de ferramentas dos candidatos. É só minas e armadilhas.

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Público, 24.2.2024

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Campanha eleitoral: Falhas intoleráveis

 É um nariz de cera conhecido: “esta campanha eleitoral não vale grande coisa, as anteriores é que eram boas”. Acontece que não é totalmente verdade. Esta pré-campanha começou muito bem. Duas vantagens são já indiscutíveis. Por um lado, os debates de chefes animaram o público que parece acorrer a ver e ouvir. É verdade que ficam a perder os partidos, as equipas e as políticas, tudo se limitando às qualidades e aos talentos dos líderes. Mas estes têm pelo menos o condão de atrair e interessar. Por outro lado, já se percebeu quais são os tabus, isto é, os temas de que os partidos não querem falar, nem assumir compromissos. Grande mérito o de mostrar o que os candidatos pretendem esconder.

 

Em primeiro lugar, a Justiça. Nem é necessário recorrer aos tempos, longos e inacabados, de Sócrates, do BES, da PT, do BNP e de tantos outros. Depois do que se passou recentemente em Lisboa, na Madeira e em Coimbra, há cada vez menos dúvidas sobre a actuação do Ministério Público: as suas ingerências na política, as suas incompetências técnicas ou a sua rivalidade com polícias e magistraturas. Mais ainda do que isso, os últimos anos têm revelado uma Magistratura Judicial absolutamente incapaz de tratar da grande criminalidade associada ao poder político, à grande fortuna, à corrupção, ao futebol ou ao mundo dos negócios públicos ou privados. A rivalidade entre polícias não ajuda. As reivindicações dos oficiais de justiça só complicam. A culpa e o crime de vários juízes e procuradores ilustram este pesadelo, já alimentado pela criminalidade em que estão envolvidos políticos, governantes, administradores de empresas públicas, autarcas, empresários e banqueiros. Todos os casos sobejamente conhecidos e que, há anos, fazem o quotidiano da comunicação social, têm de comum as falhas e as deficiências da Justiça. Sendo que a rivalidade entre Magistrados e entre estes e Procuradores atinge as raias da obscenidade.

 

Nunca vivemos, como agora, tão intensa e delicada crise da Justiça. Agravada esta pela abdicação dos poderes políticos e pela desistência dos órgãos de soberania. Além disso, a passividade dos profissionais e a ineficácia das instituições tornam tudo mais difícil. Para completar este quadro, a rivalidade entre profissionais e as lutas internas entre e dentro dos grandes corpos da justiça são tais que os direitos dos cidadãos são postos em perigo. Finalmente, é confrangedora a paralisia do governo e do Parlamento. Fica-se com a impressão de que os magistrados e os procuradores desprezam e desconfiam dos políticos e de que estes têm medo daqueles e das suas informações. Fora dos debates eleitorais, a Justiça revela bem a sua crise e a sua ameaça. O silêncio dos candidatos mostra bem o seu medo e a sua cumplicidade. Ora, está em causa a liberdade de um povo. Como é sabido, sem Justiça não há democracia. Nem liberdade.

 

Segundo, a política internacional e as questões europeias. Como nunca desde há setenta anos, os perigos e as ameaças são enormes. As guerras em curso, as alianças antigas e novas e as crises iminentes em várias partes do mundo exigiriam esclarecimentos, empenho e compromisso por parte dos nossos políticos e candidatos. A previsível crise da NATO deixa qualquer europeu, ou qualquer português, pelo menos inquieto. O desmantelamento e a suspensão da Aliança são perfeitamente possíveis. Mesmo num pequeno país como o nosso, sem capacidade militar para influenciar o curso da história, exige-se que os governantes esclareçam o seu povo. Estão essencialmente em causa a sua liberdade, a sua segurança e a sua paz.

 

Terceiro, a defesa nacional e segurança europeia são assuntos estranhos e alheios às eleições portuguesa. Pela sua urgência, todas as questões essenciais à defesa e à segurança dos portugueses necessitam de pensamento e esforço colectivo. Sem capacidades para uma defesa auto-suficiente, a nossa política de defesa tem de ser sufragada e devidamente orientada, incluindo o equipamento, o orçamento, o serviço, o recrutamento e a sua organização. Nada disto merece a atenção dos candidatos. Estes têm receio das dificuldades do tema, dos sacríficos impostos, dos gastos e da própria ignorância. Está em causa a capacidade dos portugueses para integrar uma defesa colectiva e uma segurança europeia. Sem o que não passaremos de parasitas. E ninguém nos respeitará.

 

Quarto, as políticas de imigração e emigração. É, por causa dos preconceitos, um dos temas mais delicados. A maior parte dos candidatos receia-o. Ou prefere esconder as suas posições. Ou não quer correr os riscos de um pensamento difícil. Verdade é que Portugal vive um dos períodos, da sua história, de maior emigração para o estrangeiro. E, ao mesmo tempo, o período de maior imigração de estrangeiros. Estes dois movimentos de população traduzem quase tudo o que há de importante numa sociedade: identidade, capacidade económica, educação, rendimentos e condições sociais. O trabalho ilegal, o tráfico de força de trabalho e a residência clandestina são cuidadosamente evitados. Às dificílimas questões da “Integração Versus Multiculturalismo”, assim como do controlo dos movimentos demográficos, os candidatos, em geral, fogem espavoridos.

 

Abundantemente presentes na campanha estão as dádivas, os presentes, o “bacalhau a pataco”, o “cabrito com batatas”, o “vinho a tostão” e o bodo aos pobres! O que cada partido oferece aos eleitores de aumentos ou de reduções, de benefícios ou de isenções, nem anos de orçamento comportariam. Sem fazer as contas, toda a gente oferece tudo o que lhe vem à cabeça. Evidentemente, já são contemplados a educação, a saúde, os salários, o ambiente e a segurança social. 

 

Além do tacticismo político mais imediato e barato. Como, por exemplo, as questões de arremesso desta temporada: com quem não fazes aliança? Quem recusas? Com quem governas caso não tenhas maioria absoluta ou caso fiques em segundo lugar? Quem prometes excluir? São perguntas legítimas, mas fáceis e superficiais. Além de que retiram aos partidos, antes da eleição, liberdade de acção. Na verdade, a melhor resposta é a de simplesmente garantir que se fará o que o eleitorado quiser. Ponto final. Não é possível dizer que, nesta campanha e até agora, não se tenham abordado questões importantes. Não seria verdade. Mas é certo que as ausências são graves e significativas. 

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Público, 17.2.2024

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Perigos, ameaças e fantasmas

 O partido Chega é provavelmente a maior novidade do sistema político português e da história política recente. De importância parecida, mas efémero, foi o PRD dos anos oitenta. Ainda de grande significado, o quase desaparecimento do CDS e do PCP. De menor importância, mas ainda sem que se saiba o seu futuro, o Bloco de Esquerda. Com valor e longevidade por apurar, são a Iniciativa Liberal, o PAN e o Livre. E pouco mais. O Chega, com 12 deputados e 7,5% dos votos, em tão pouco tempo, merece atenção. Em menos de cinco anos, ultrapassou o Bloco e o PCP e é o terceiro partido! Mais do que isso, os valores atingidos nas sondagens, cerca de 20% actualmente, apontam já para uma realidade de peso. Mais ainda: o lugar que este partido ocupa no espaço público, nas redes sociais, no Parlamento e nas reuniões partidárias, fazem dele um fenómeno. Para muitos, uma ameaça. Para alguns, um perigo iminente. Para todos, um espectro. Como na Europa.

 

Sem qualquer dúvida, este partido é nacionalista, de direita, conservador, com veios de extrema-direita e laivos de xenofobia. É populista, diz-se agora. Tem sobretudo uma inteligência intuitiva afinada: mal surge uma deficiência, uma razão de queixa, um problema social, uma incompetência do Estado ou uma qualquer crise, logo André Ventura e o seu partido “saltam”, atacam o problema e denunciam os que entendem ser os responsáveis, isto é, todos os outros, sobretudo o governo e o PSD. Fome, greves, trabalho clandestino, crime, droga, pobreza, violência, miséria nas periferias, filas de espera nos hospitais, baixos salários em todos os sectores, nada escapa ao Chega. Corrupção, nepotismo, favoritismo familiar ou partidário são talvez as principais molas que o fazem reagir com prontidão e espalhafato.

 

Para muitos, é um partido fascista ou neofascista. De simpatias neonazis, evidentemente. E de antepassados salazaristas. Para esses, os responsáveis pelo seu crescimento são as forças de direita, assim como os partidos socialistas que mais não fazem do que a política da direita. Para outros, são variadas as explicações para este fenómeno. Na velha tradição marxista, trata-se de obra e graça do grande capital monopolista e da política do imperialismo. As contradições do capitalismo actual e a decadência do imperialismo americano exigem partidos deste género, dizem. Contra o simplismo desta teoria, elevaram-se opiniões, com outra dimensão epistemológica: este seria um partido tipicamente da pequena-burguesia, aquela que se encontra, sem passado nem futuro, entre o mundo do trabalho e o do capital. Sem ideologia de classe, um partido como este é atraído pela demagogia anticapitalista e sobretudo pela fúria anticomunista. Outras explicações, se assim se podem chamar, filiam este partido na mais pura tradição nacionalista, anti internacionalista, anticomunista e antieuropeia. Seria um partido do passado, contra a modernidade. Já agora, um partido com raízes rurais e católicas.

 

O partido Chega, pobre em doutrina e programa, oportunista e provocador como nunca se tinha visto em Portugal, beneficiando de arguto sentido da ocasião, é o resultado das deficiências da democracia. Das dificuldades do Estado providência e da democracia contemporânea. Da partidocracia reinante, à esquerda e à direita. Vive no abismo que cresceu entre os Estados e a União Europeia, por um lado, os cidadãos e as instituições, por outro. Caça e pesca nas águas turvas das comunidades nacionais em crise causada pela globalização. Nunca se ouviu justificar as suas causas na liberdade individual ou nos direitos dos cidadãos. Nunca se viu fundamentar a sua acção na democracia. O partido denuncia a democracia, não a enriquece nem alimenta.

 

O seu mais eficaz programa diz, em poucas palavras, que deve denunciar todas as crises, dificuldades e carências. Há sempre culpados para os problemas sociais. Protesta contra tudo e todos que reputa responsáveis pelo regime actual. Como ainda não tem currículo, nem experiência política, nem tradição autárquica, isto é, como ainda não deve nada a ninguém, denuncia e acusa todos e cada um. Propõe-se, com enorme despudor, privatizar o que está nacionalizado ou nacionalizar o que privado é. Expulsar, proibir e prender são verbos que conjuga com familiaridade. É partido com a inteligência suficiente para, sem doutrina nem programa, apurar as suas artes no protesto e na denúncia. Chora diante da pobreza, geme perante a corrupção. Escandaliza-se com a corrupção dos democratas. Desespera com a intervenção europeia, a perda de independência e a submissão aos interesses internacionais. Não se sente tolhido pela Igreja, nem pela Maçonaria. Não depende de patrões ou de sindicatos. Usará a democracia enquanto esta lhe for útil, para crescer, usufruir de espaço público, denunciar democratas e vilipendiar poderosos. Se, um dia, a democracia lhe impuser o respeito pelos outros, assim como o obrigue a seguir as leis e acatar a tradição, nesse dia, o mais provável é que atire a democracia às urtigas. A sua palavra de ordem é o mais medíocre dos clichés: “limpeza”!

 

Incapazes de derrotar a direita, os socialistas esperam que o Chega a divida. Querem que o Chega seja o seguro de vida da esquerda, tal como o PCP foi, da direita, durante os anos de ostracismo. Os comunistas e o Bloco limitam-se a denunciar o capitalismo e a culpar os socialistas, estimando que, se estes fizessem o que eles querem, o fascismo seria derrotado. Todos os partidos, sem excepção, deram um precioso contributo para a crescimento do Chega. No governo, os socialistas trouxeram causas ao Chega. Nos hospitais, nas escolas, nas fronteiras, nos transportes públicos, nos bairros periféricos e nos centros das cidades, os democratas estão a alimentar o Chega à mão. O desdém dos partidos democráticos pelo povo e pelas vítimas, pelos pobres e pelos necessitados, é uma linha de vida do Chega. Estes partidos agem como se os eleitores do Chega não fossem cidadãos como os outros. A democracia sem tom nem som, com preocupação pelas intrigas, é uma vitamina do Chega. O Chega não é um inimigo externo, não vem de fora da sociedade, muito menos fora do país: nasce das falhas e da miséria da democracia portuguesa. Jornais e televisões colocaram-no no centro do mundo. Os partidos democráticos fizeram dele o inimigo e a ameaça. Não cessam de a ele se referir. Talvez se queixem, um dia. Mas queixam-se da sua própria obra.

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Público, 10.2.2024

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Grande Angular - Será chuva? Será gente?

O que está a correr mal? E porquê? Num país que ainda há pouco tempo gozava de estabilidade, cooperação institucional, algum crescimento económico, contas certas e paz social, de repente, tudo se estragou. Nas ruas, ouvem-se ruídos e rumores de manifestação. Nos serviços públicos, há espera e ineficiência. Na justiça, há atraso. Na política, há corrupção. Na sociedade, há desigualdade. No espaço público, há descontentamento. Que se passa? São as elites? Será o povo? É a crise mundial? Será a guerra?

 

Para explicar o mundo, os acontecimentos, a história e a política, não há nada melhor do que uma boa teoria da conspiração. Basta imaginação, não são necessárias provas. Uma boa argumentação vale todas as demonstrações. Quanto mais estapafúrdia, mais crível é. Se forem referidos poderes ocultos, religiosos, maçónicos, financeiros, mafiosos e feiticeiros, melhor ainda. Se houver militares, a verosimilhança é enorme. Se ninguém tiver pensado nisso, a força de uma explicação pela conspiração é quase absoluta. 

 

Uma boa conspiração poupa a inteligência e dispensa o estudo dos factos e das causas. A conspiração da situação actual é, para muitos, simples e clara. O Presidente quis liquidar o governo socialista. O governo e o seu partido pretenderam liquidar o Presidente. Maçonaria e católicos entraram na dança. Os barões do PSD zangaram-se mais uma vez. Os minoritários moderados do PS querem já macular os primeiros passos dos novos dirigentes. Procuradores e juízes digladiam-se, mas, em conjunto, atiram-se aos políticos. Os 31 crimes de Sócrates passaram a 6 e são agora 22, o que nos permite avaliar o rigor e a validade das acusações.

 

Os casos actuais, as gémeas brasileiras, as estantes do IKEA, as casas dos políticos em vários locais do país, as declarações de rendimentos e de residência oficial, as contas no estrangeiro, os dinheiros sem origem certa, tudo tem explicação em razões mais ou menos ocultas, em misteriosas personagens sinistras.  Parece haver um “Deus ex Machina” que regula e promove o mal. Ou um conspirador a tecer as teias do diabo? Nestes tempos, a teoria da conspiração tem adeptos. Claro que não é verdade. Mas ocorre a tantos espíritos!

 

Com excepção das “contas certas” e da taxa de crescimento, tudo parece estar a correr mal. Parece cada vez mais que “há alguém por trás disto”. Tudo conjugado com as guerras e as crises “lá fora”. “Não é por acaso” é uma das frases mais vezes repetidas.

 

Além da pura loucura e de uma concepção mesquinha da história, a principal causa de uma boa teoria da conspiração reside na ignorância. Quando não se conhecem as causas de um qualquer fenómeno, quando não se percebe o curso dos acontecimentos ou quando se desconfia sem saber porquê, esta explicação, ou antes, esta insinuação vale uma verdade.

 

Sucedem-se as crises. Algumas como nunca ou quase nunca se viu. Bloqueamento das estradas. Polícias em permanente manifestação. Professores em falta. Alunos sem aulas. Serviços públicos em deslasse. Esperas inadmissíveis nos hospitais. Avolumar de casos de corrupção. Incapacidade para julgar os caos difíceis de poderosos e políticos. Impotência da justiça. Em seis meses, quatro eleições, três das quais antecipadas por razão de crise. Políticos detidos, presos, em recurso, arguidos, processados e suspeitos: há para todos os gostos como nunca aconteceu no nosso país. Episódios inéditos de má literatura política, como os casos do computador do assessor do ministro, o das gémeas e o das estantes com dinheiro.

 

Há razões mais profundas que explicam as crises actuais? Há seguramente. Para além da incerteza internacional e das guerras, assim como do mau ambiente económico europeu, há a incapacidade nacional de criar riqueza de modo consistente. A dificuldade em formar gerações de técnicos, cientistas, gestores e artistas de elevado nível. A decrescente capacidade técnica dos governos e da Administração Pública. A tentação para fazer o que é fácil e dá nas vistas, em detrimento do que faz falta. O especial talento para dar e distribuir, em detrimento de criar e poupar. A impossibilidade, por parte dos empresários privados e das instituições públicas, de criar emprego qualificado em grandes proporções. A inaptidão para suster a imigração e reduzir a emigração. A persistência, entre as elites e no seio do povo, da “cunha”, da corrupção e da trafulhice. E outras, certamente. A verdade é que todas estas explicações não explicam a coincidência no tempo das crises actuais. Esta resulta evidentemente dos efeitos de arrasto (umas puxam pelas outras) e sobretudo da falta de talento, de sabedoria, de disciplina e de orientação política para cuidar dos serviços públicos, para gerir e organizar, para liderar e manter a disciplina.

 

Parece fácil dizer o que precede? Talvez. Mas pense-se apenas no paradoxo dos últimos tempos. A saúde financeira é razoável. As condições económicas nacionais e internacionais, apesar das dificuldades do mundo, não eram más de todo. Havia uma maioria absoluta que podia garantir a estabilidade. Nas regiões autónomas, as coligações podiam facilmente ser sólidas. As relações entre órgãos de soberania eram excelentes. O apoio do Presidente da República ao governo e ao Parlamento era manifesto. A simpatia do governo pelo Presidente da República era sem par. As classes sociais estavam em paz. Os patrões não se sentiam mal. Os sindicatos estavam sossegados. Tudo isto ruiu. Tudo se desfez em pouco tempo. Tratou-se do maior desperdício político das últimas décadas. 

 

Ao lado das causas profundas, há evidentemente as causas imediatas. E estas residem em grande parte na deficiente gestão do serviço público, das instituições e dos grandes serviços. São estas deficiências que explicam a simultaneidade das crises no Serviço Nacional de Saúde, nas escolas, na Justiça e nos tribunais, nas polícias e forças de segurança, na agricultura, na habitação e nos transportes públicos. Raramente, talvez nunca se tenha visto uma simultaneidade como esta na história recente de Portugal.

 

A democracia portuguesa comemora os 50 anos do 25 de Abril, os 50 anos das eleições livres e os 50 anos da Constituição, com uma desordem institucional jamais vista. Festejam-se com quatro eleições. Três dissoluções de parlamentos e assembleias legislativas. Três governos demitidos. Prisão ou acusação de vários políticos de elevada importância. Milhares de polícias na rua a manifestar. Órgãos de soberania à bulha. 

 

Onde estão as causas? Chuva não é certamente. É gente, com certeza.

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Público, 3.2.2024

sábado, 27 de janeiro de 2024

Grande Angular - Prova de fogo

Um grupo de pessoas de direita ou de extrema-direita entende levar a cabo uma manifestação. As intenções e o espírito são de ordem nacionalista, possivelmente xenófobas ou racistas. A manifestação está convocada para a zona do Martim Moniz e da Mouraria, isto é, bairros onde vivem comunidades de imigrantes, africanos, asiáticos e outros. Está também convocada, para a mesma hora e no mesmo local, uma contramanifestação. Entretanto, circula uma carta, assinada por uns milhares de pessoas, solicitando que a primeira manifestação seja proibida. Outras vozes, na imprensa, exigem também a proibição. O executivo da Câmara Municipal de Lisboa condenou, por unanimidade, a realização desta manifestação.

 

Uma manifestação não necessita de autorização, mas apenas de informação remetida às autoridades, a fim de, se tal for necessário, serem tomadas providências. Do ponto de vista da liberdade de expressão e do direito à manifestação, este dispositivo parece suficiente.

 

Proibir esta manifestação é um acto grave e de sérias consequências. É a melhor maneira de abrir uma temporada de violência na sociedade. Deixá-la correr sem qualquer intervenção é igualmente gesto condenável e de maus efeitos: haverá afrontamento e violência. Deixar correr as duas, manifestação e contramanifestação, é ainda pior, é quase garantir que haja confronto físico. Em poucas palavras, qualquer destas soluções é uma má resposta ao problema.

 

É verdade que a situação é delicada e perigosa, ainda por cima com eleições marcadas para breve. A “questão racial” está a ser fomentada há anos, racistas e anti-racistas procuram-se mutuamente. Por ausência de políticas de imigração e de integração, pelo aumento de imigração ilegal, pela exploração de trabalho clandestino e pelas condições de vida de milhares de imigrantes, por todas estas razões, é possível prever a iminência de afrontamentos. É possível que estejamos a viver um desses momentos que marcam uma viragem, para pior, da situação e dos acontecimentos. É alto o grau de nervosismo. É garantida a vontade de mostrar forças.

 

Grupos e partidos nacionalistas e de extrema-direita desejam um momento dramático para dizer que “isto aqui é Portugal”! Para isso, estão dispostos a tudo. Querem choques violentos para depois afirmarem que já não se pode ser português em Portugal. Do outro lado, esquerdistas, antifascistas e anti-racistas querem uma oportunidade dramática e se possível violenta para demonstrar que “Portugal é um país racista”! Ambos ficariam satisfeitos com o confronto. Ambos receberiam com delícia a proibição da manifestação.

 

A discussão pública sobre a imigração e o debate sobre as respectivas políticas estão por fazer. Estes temas são difíceis, por isso mesmo urgentes. São igualmente recheados de preconceitos, o que reforça a necessidade de esclarecimento e de elaboração de políticas. Assim é que importa que não se deixem abrir feridas nem azedar ânimos, o que só tornaria mais inútil o debate nacional. Parece, pois, essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Este e outros a seguir. Mas, evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão. Por isso não é imaginável que se proíba a liberdade e o direito de expressão e de manifestação.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de antidemocratas. Sejam eles de extrema direita nacionalista ou fascista, sejam revolucionários comunistas e aparentados. Todos estes querem ultrapassar a democracia e criar novo regime que a elimine. É o seu direito. São livres de assim pensar e tentar convencer a população, desde que não cometam actos ilegais, como sejam a violência contra pessoas, a segregação à força, a destruição de bens, o roubo, a agressão de qualquer espécie… Isto é, que cometam actos ilegais de qualquer espécie. Nesses casos, terão de ser detidos e julgados. Mas não podem ser atacados pelas suas opiniões.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de racistas e xenófobos. Brancos, negros ou de qualquer outra origem. Os racistas e os xenófobos são pessoas frequentemente detestáveis, não escondem a sua animosidade pela democracia e têm um orgulho infundado na superioridade da raça branca. Podem defender as suas ideias. Podem publicar as suas opiniões e até divulgá-las. Não podem é agir em consequência dessas opiniões, segregar outrem de serviços e empresas, ser violentos, expulsar de locais públicos e ofender as outras pessoas. Noutras palavras, não podem cometer crimes de ofensa, agressão ou segregação, proibidos na lei em todas as circunstâncias. Mas a liberdade de expressão é intocável.

 

A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais da democracia.

 

O direito a manifestação de todos os cidadãos, protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável. Evidentemente que se pode, por razões de segurança, condicionar esse direito de manifestação, não no essencial, mas na circunstância. Por exemplo, a hora e o local de manifestação. Este caso da manifestação nacionalista do Martim Moniz e da Mouraria parece um exemplo de escola. Evidentemente que o local traduz uma procura de afrontamento e de confronto social no que pode ser considerado uma provocação. Assim sendo, é legítimo que as autoridades nacionais e camarárias obriguem os manifestantes a alterar a circunstância (hora e local), sem renunciar ao essencial (a manifestação e a expressão de opinião). Como é igualmente legítimo que a contramanifestação seja deslocada na hora e no local. É um imperativo de ordem pública e de paz social que essas manifestações não coincidam no espaço e no tempo. Mas não se pode proibir uma nem outra.

 

O que está em causa na próxima semana é a liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser proibidas!

 

Se a democracia portuguesa não consegue viver com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática, sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.

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Público, 27.1.2024

sábado, 20 de janeiro de 2024

Grande Angular - Sonho de uma noite de Inverno

 Dentro de pouco mais de uma semana, ficaremos a conhecer as listas completas de candidatos à Assembleia da República. São listas exclusivamente subscritas por partidos ou coligações de partidos. Movimentos, associações e grupos de cidadãos estão excluídos. Independentes também não se podem candidatar, a não ser que se submetam a fazer parte de uma lista partidária, o que quer dizer que estejam dispostos a perder a sua independência. A não ser que façam prova de fidelidade partidária, mais de dez milhões de portugueses não se podem candidatar a eleições legislativas.

 

O fabrico destas listas é um dos momentos mais polémicos da política portuguesa. Esse gesto traduz a realidade da vida partidária e das relações dos partidos com a sociedade. É através das listas que se pode escolher e sanear quem vai ser eleito, quem fica na vida política e quem é despedido. O dispositivo essencial das listas consiste na ordenação dos candidatos: são eleitos os que vêm à frente, são afastados os que vêm atrás ou ficam cá para baixo. Mas tudo depende, evidentemente, do número de votos que a lista recebe. Nos partidos com muita autoridade, tudo se passa sem ruído percebido pelo público. Nos partidos democráticos no poder, o clima é tenso, mas pacífico. Nos partidos democráticos na oposição, o momento é febril e adequado a ajustes de contas. 

 

De qualquer maneira, dos 230 deputados a eleger, 190 já estão eleitos. Já podem tomar providências, alugar casa ou reservar hotel em Lisboa. Foram as escolhas dos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos. Os cidadãos não escolheram absolutamente nada. A não ser os muito pequenos partidos que podem eleger alguns ou nenhuns deputados. Assim como os últimos 30 ou 40 deputados eleitos que vão compor os grupos e definir quem tem maioria. Na verdade, são estes que decidem a vitória eleitoral e respectiva amplitude. Justiça seja feita: o eleitorado ainda tem a escolha destes últimos deputados. Ou seja: escolhe quem vence, mas não escolhe quem o representa.

 

Há cinquenta anos, abstiveram-se cerca de quinhentos mil cidadãos. Há vinte anos, um pouco mais de três milhões.  E há dois anos, perto de cinco milhões e meio optaram pela abstenção. Melhor do que taxas e percentagens de abstenção, estes números brutos revelam um profundo mal-estar. De muitas democracias, com certeza, mas a nossa é a que nos traz aqui. Como toda a gente sabe, existe um problema muito sério, cada vez mais difícil, de legitimidade e de representatividade dos parlamentos eleitos.

 

E tudo poderia ser tão diferente! Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução dentro da democracia! Poderíamos ter 230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado. Este seria alguém já conhecido pela comunidade, ou que passaria a sê-lo depois da campanha e da eleição. Seria um elemento da região, ou de sítio vizinho, ou mesmo vindo de longe (da capital, por exemplo) mas que se tinha apresentado localmente para ser seleccionado. Aliás, o “candidato a candidato” por um partido deveria ser seleccionado pelas assembleias dos partidos. 

 

O termo “o meu deputado” faria assim sentido para todos os deputados, com responsabilidades pessoais, contas a prestar, mandatos a receber, lutas a conduzir e batalhas a travar. O distrito de Lisboa, por exemplo, em vez dos actuais 48 deputados, uma verdadeira sociedade anónima que ninguém conhece em maioria, seria dividido em outros tantos círculos, cada um com o seu deputado, de acordo com a dimensão demográfica. O resto do país teria o mesmo tratamento.

 

O “meu deputado” seria o que foi eleito, evidentemente, poderia ou não ser do meu partido ou daquele em quem votei. Desde que é eleito, um deputado representa todo o eleitorado, não apenas o seu partido. Esse “meu deputado” teria reuniões regulares com os seus eleitores (os que quisessem estar presentes) e teria anunciado, à porta do seu gabinete e na NET, os dias em que receberia os seus eleitores que lhe apresentariam casos e poderiam assim elogiar, criticar e fazer sugestões ou reclamações.

 

O “meu deputado” poderia ser um membro do partido que eu apoiaria, ou de um outro partido que teria ganhado as eleições. Mas poderia também ser de um movimento cívico, de um grupo de defesa do meu bairro ou da minha cidade. Ou de um movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião, dos idosos, dos doentes ou de outro qualquer grupo de referência. Poderia até ser apenas independente absoluto, sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições.

 

O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertencesse aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina. Mas as relações de cada deputado com o seu partido mudariam de modo significativo. Os deputados saberiam que eram eleitos pelo que eram, ou também por isso, não apenas pelo nome do partido. O que quer dizer que teriam mais força e mais autonomia.

 

Ao mesmo tempo, os partidos saberiam que se não respeitassem os deputados e a sua liberdade, estes poderiam pura e simplesmente informar o eleitorado. Além disso, quando os partidos escolhessem as suas listas, teriam de ser muito mais exigentes e seleccionar os melhores, tanto do seu ponto de vista como dos interesses das comunidades. Caso contrário, perderiam a eleição. Ou os candidatos em questão apresentar-se-iam por eles próprios. As listas partidárias teriam de ser as melhores e não apenas o rol dos fiéis, dos que causam menos problemas à direcção do partido e dos que fazem o que lhes mandam e só isso. Os independentes e membros de associações ou movimentos teriam assim um duplo papel: o de serem bons representantes do povo e o de obrigarem os partidos a seleccionar melhor.

 

Tal como noutros países, este sistema eleitoral poderia funcionar a duas voltas, isto é, todos concorrem à primeira e, à segunda, passam os dois primeiros ou os que estão acima de uma fasquia determinada. Quer isto dizer que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos, o que confere legitimidade e consolida as maiorias. 

 

Não há milagre. Nem soluções mágicas. Mas os que se queixam de falta de proximidade da democracia, de afastamento dos políticos, de reduzida transparência do processo democrático e da legitimidade decrescente em tempos de abstenção em permanente aumento, deveriam pensar duas vezes. O sistema está feito para afastar, não para chamar.

Público, 20.1.2024