domingo, 26 de abril de 2020

Grande Angular - Porque deles é o reino dos céus…

As polémicas nacionais atingem por vezes graus inesperados de empenho irracional. É o tom das grandes emoções. É impressionante a fúria dos ataques às comemorações do 25 de Abril! Correm petições a exigir a demissão de Ferro Rodrigues. Reclama-se a destituição do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa! Já se sugere a realização de novas eleições, porque os deputados não respeitariam a vontade dos eleitores. Os argumentos são delicados como vetusta artilharia. Não se comemora a Páscoa, não se reza ao domingo, não se acompanham os mortos ao cemitério, não há casamentos nem baptizados, nem sequer se celebra o dia da Pátria, o dia de Camões… Mas há políticos a festejar Abril, a festejarem-se a si próprios e a proteger os seus privilégios! Nunca se viu um tal desplante dos comunistas e dos maçons! Passados perto de cinquenta anos, quase meio século, meu Deus, ainda há quem queira marcar aquela data, quem a considere superior à crença religiosa, ao amor de família, às festas da pátria…
Mas também é perturbador, cinquenta anos depois de fundada a democracia, em plena pandemia que mata três dezenas de pessoas por dia, ao mesmo tempo que a vida social está suspensa, este absurdo que é o de ver todos os órgãos do Estado, os seus partidos e as suas instituições, comemorarem, em romagem de saudade ou romaria festiva, a revolução de 25 de Abril! A lembrar os anciãos do 5 de Outubro ou os decrépitos do 28 de Maio! Fechadas as escolas, proibida a circulação de um concelho para o outro, interdito o enterro dos mortos, afastados os passeios dos jardins, limitados os giros de cães, silenciadas as missas, cerrados os bares e impedidos os circos, mas aberto o Parlamento numa incompreensível cerimónia que não honra ninguém!
Os insultos trocados e que variam entre fascistas, comunistas, maçónicos e beatos, fazem tremer os pilares da República! Revolucionários crentes e destemidos defendem, com ar seráfico, a necessidade de respeitar os rituais celebrativos da democracia! Liberais exigem a proibição das comemorações! Conservadores vituperam as cerimónias de culto da memória! Esquerda e direita acusam-se de crimes de lesa-pátria ou de atentado contra a liberdade. Verdade é que a tolice e a inutilidade destas celebrações só são comparáveis à histeria daqueles que as atacam. As comemorações em miniatura e com cenografia de afastamento social são tão ridículas que não deveriam despertar mais do que desdém e piedade. Mas não! Acordaram verdadeiras iras democráticas e republicanas! E Ferro Rodrigues foi transformado em temerário defensor da democracia por uns, monstro jacobino por outros.
Mais uma vez, vivemos dentro daqueles círculos de fogo onde não se consegue pensar diferente dos fanáticos, meditar com inteligência fora das labaredas assassinas, nem tentar compreender longe das hordas dos pensadores oficiosos. E, tal como antigamente, só há dois campos, o da democracia ou o do fascismo. O da revolução ou o da reacção. Forçam-se pessoas, sob pesado opróbrio público e debaixo de fortíssima condenação moral, a tomar partido, a garantir que se está do lado da Pátria ou da Liberdade!
É espectáculo inesperado ver socialistas e comunistas, verdadeiros bolchevistas, reclamar o direito de levar a cabo a liturgia democrática e o dever da República de realizar as comemorações celebrativas, enquanto Republicanos jacobinos criticam a operação com veemência! Recordar antigos revolucionários que, em seu tempo, consideravam os republicanos das romagens do 5 de Outubro uns patetas impotentes que pouco mais valiam do que discursos vácuos e ramos de flores nos cemitérios… Vê-los hoje a exigir celebração dá vontade de sorrir… Recordar Republicanos maçónicos que, durante décadas, nunca falhavam as romagens da República e vê-los agora a considerar de mau gosto umas pindéricas festas do 25 de Abril provoca estupefacção!
Ver e ouvir conservadores, nacionalistas, liberais e democratas de direita aproveitar a pandemia para finalmente se exprimirem contra a democracia, o Parlamento, a Assembleia da República e os seus deputados, mas em nome da decência e da liberdade, é quase cómico.
E, no entanto, é tudo tão simples… As comemorações do 25 de Abril são obsoletas. Mas são inocentes e não prejudicam ninguém, a não ser a democracia. As celebrações do 25 de Abril em plena quarentena são absurdas. Mas inofensivas, a não ser para quem lá for sem protecção profilática. Criticar seriamente estas festividades é perda de tempo e desperdiçar argumentos.
Esta polémica tem revelado o pior do ambiente em que vivemos. Assim como as dimensões mais sombrias da democracia que temos. Um projecto inconsequente obrigou pessoas e instituições a tomar posição com ar desassombrado e solene. Os políticos pensam que agredir a população é a melhor maneira de salvar a política. Os democratas sentem-se no dever de recordar aos cidadãos que eles são os proprietários. Os Jacobinos repetem os mesmos erros de sempre, fecham as portas, protegem as suas hostes, expulsam os liberais e os conservadores, mandam calar os oposicionistas, insultam as vozes livres.
Os democratas de consciência pesada entendem que não podem deixar de tomar partido, sob pena de serem considerados fascistas. Socialistas e comunistas entendem que este é o momento de cerrar fileiras por um novo bloco histórico de esquerda, mesmo que tenham de se aliar com simples democratas e republicanos filhos de Portugueses honrados! Ateus defendem as cerimónias de Páscoa, ora silenciadas, argumento bom para criticar a excepção aberta para estas tristes festas de Abril. Arruaceiros por inclinação, os populistas de esquerda revelam uma propensão inesperada para o bom comportamento institucional.
Realizar as comemorações do 25 de Abril em quarentena, depois de proibir funerais e baptizados, aulas e cinemas, missas e jantares, concertos e velórios, é simplesmente ridículo, revela políticos inseguros, pobres diabos novos ricos da política… Criticar a sua realização com fúria redentora e hordas de cavaleiros da virtude e aproveitar para desencadear uma operação de limpeza moral é tão caricato quanto levar a cabo cerimónia tão patética.
O reino dos céus espera por ambos…
Público, 26.4.2020

domingo, 19 de abril de 2020

Grande Angular - Purificação

Tanta gente quer aproveitar a pandemia para ajustar contas! Os argumentos parecem suspiros. Uns dizem com ar compenetrado “Nada ficará como dantes!”, após o que os optimistas mostram como se deve aproveitar para mudar a sociedade e corrigir defeitos, enquanto os cépticos, além do desemprego, antecipam perda de direitos, regresso da censura, aumento da exploração, explosão da dívida e crescimento da desigualdade. Os mais políticos garantem que “é necessário corrigir políticas a fim de evitar outras crises”.
Assim é que não faltam os que querem aproveitar a oportunidade. Uns consideram que é a altura ideal para acabar com o capitalismo. Dado que o Estado tem obrigatoriamente de intervir, depois de resolvidos os problemas, fica por lá e nacionaliza empresas: a TAP, por exemplo, a EDP, a GALP, os bancos e outras. Não se admite, dizem, que o Estado tome conta quando há problemas e saia quando estes estão resolvidos. Como a economia não é tudo, a mesma decisão de centralização assegura o exclusivo do Estado na saúde e a educação. Hospitais e escolas devem ser nacionalizados o mais rapidamente possível, só assim se põe termo à evidente desigualdade de tratamento durante a epidemia.
Por via do comércio de produtos farmacêuticos, de desinfectante, de máscaras, de luvas e de viseiras, esta crise revelou a necessidade absoluta de reexaminar o funcionamento da economia desses sectores: muitos defendem com convicção a necessidade imperiosa de os nacionalizar imediatamente.
Outros afirmam que é o momento adequado para acabar com o racismo. Durante a pandemia, todos têm de ser tratados por igual, o que faz com que os dispositivos de discriminação positiva fiquem em vigor por longos anos. No mesmo ímpeto, os estatutos dos estrangeiros, as autorizações de residência, as portas abertas aos pedidos de refúgio e uma atitude tolerante relativamente à imigração devem entrar imediatamente em vigor.
Outras espécies de cidadãos julgam ter bem percebido a origem da pandemia. É evidentemente do estrangeiro que vem, foi na China que tudo começou e é através das migrações que o contágio se processa. Não restam dúvidas: travão a fundo na imigração e proibição de residência a Asiáticos e Africanos. Há mesmo quem inclua Judeus e Muçulmanos nesta lista de perigos. Segundo estes preclaros defensores da portugalidade, a Nação e a Europa estão em perigo. Salvar uma e outra implica fechar portas e impedir mestiçagens.
Depois há os que querem acabar com a União Europeia. A falta de solidariedade entre europeus, a ausência de um poder democrático e eficiente, o império da Alemanha e das grandes empresas privadas, a influência das maçonarias e os novos costumes fazem com que o “projecto europeu” se tenha transformado num mau serviço prestado aos cidadãos.
Não escondendo um oportunismo de gigantescas proporções, os planeadores e os engenheiros de almas e de sociedades não disfarçam as suas ambições de melhorar radicalmente o mundo em que vivemos. Assim, aproveitar a crise e a emergência para reforçar o poder do Estado, acabar com a desordem urbana, liquidar os excessos de consumo e de lucros são condições para um futuro melhor.
Os partidários de uma racionalidade bem diferente, amigos declarados da autoridade e defensores de uma cuidadosa vigilância, consideram urgente controlar os cidadãos, combater os excessos de defesa da privacidade, registar os movimentos de cada um, vigiar as redes sociais, gravar conversas e seguir os passos de todos: só assim se conseguirá evitar mais contágio e novas epidemias. É urgente, dizem, aproveitar esta oportunidade.
Os pensadores mais abstractos e seguramente mais ameaçadores elevam o tom do debate e consideram, todos os dias nas páginas dos jornais e nos ecrãs de televisão, que é urgente mudar o modelo de sociedade, substituir os valores vigentes e alterar os padrões de consumo. Para esses visionários, só nos salva um novo paradigma de relações sociais e de hábitos! É este o momento!
Infelizmente, em muitos aspectos, as condições excepcionais da pandemia em nada alteraram os debates tradicionais. Os simpatizantes da esquerda apoiam tudo o que for aumento do Estado e eliminação do que seja privado. Os simpatizantes da direita… vice-versa! É um confronto de posições adquiridas, não é um debate político. É um confronto que serve para contar partidários, não para elaborar ideias.
É verdade que da situação actual podem resultar perigos e ameaças. Direitos dos cidadãos ameaçados. Privacidade violada. Trabalho sem protecção. Despotismo dos poderosos no Estado ou na empresa. E mais… Mas não tenhamos dúvida de que grandes perigos vêm dos que querem salvar a humanidade, mudar paradigmas e substituir modelos de sociedade. São esses engenheiros, por ninguém mandatados, intelectuais de boulevard ou da favela, que inventam sociedades e transformam a crise em alavanca. Para eles, a miséria é purificadora e precede o renascimento. A história e a mitologia estão cheias desses momentos de redenção. O mais famoso talvez seja o Dilúvio, inundação planetária contada nos livros do Génesis ou nos Puranas hindus. As Pragas do Egipto, contadas no Êxodo, são outra forma de castigo. A peste, Negra ou Bubónica, faz parte do mesmo rol. Muitas outras catástrofes, inundações, fomes, terramotos, vulcões e grandes incêndios marcaram, ao longo dos séculos, a história dos povos. Muitas atingem números inimagináveis de dezenas de milhões de mortos! Sem falar noutras desgraças, como a varíola, a tuberculose, o SIDA e o sarampo cuja acção fatal se prolonga por vários anos ou décadas.
Como é sabido, grandes pragas ou desastres podem transformar-se depois em pretextos para esclarecer o poder. O nosso Marquês de Pombal é um exemplo, real ou mitológico, de como é possível aproveitar um desastre para estabelecer um ditador.
Tal como os que desejam aproveitar as catástrofes, também os belicistas defensores do apuramento da humanidade repetem a ideia de que é necessária uma guerra para purificar. Porque há gente a mais. Porque há fome. Porque há declínio das sociedades com costumes degradados. Perante estes desenvolvimentos, uma nova guerra poderia fazer jeito. Reduziria as bocas e diminuiria a pressão dos estrangeiros.
A ideia central destas reflexões é a de que uma guerra purifica. Partindo do princípio de que morrem os maus e ficam os bons. Com a pandemia actual, não andamos muito longe desses devaneios. É impressionante o número de pessoas que esperam que uma catástrofe seja a oportunidade para resolver problemas. Eles não sabem o que dizem… 
Público, 19.4.2020

domingo, 12 de abril de 2020

Grande Angular - As cidades mortas

Em tempos difíceis, ouvem-se frases inesperadas e lêem-se pensamentos surpreendentes. Entre estes últimos, um dos mais espantosos diz respeito às cidades. Ao estado em que se encontram. Desertas! Silenciosas. Sem turistas. Sem movimento. Sem ruído. Sem buzinas. Sem poluição. Há quem diga explicitamente “Ai que bom! Deveria ser sempre assim”. Ou então “Assim é que a cidade é bonita e dá vontade de viver!”. Há quem pense e quem diga a sério que as cidades não deveriam receber mais turistas (pelo menos tantos…), nem cruzeiros (se fossem menos…), nem estrangeiros (a não ser os que se portam bem…). E também não deveria haver automóveis (a não ser os nossos…). Nem autocarros ou aviões por cima das cabeças. Há quem pense que o exemplo das cidades durante a epidemia deveria ser uma lição e levar as autoridades a fazer com que as cidades, depois, um dia, fossem mais ou menos o que são hoje: quase desertas. Ou com a beleza do silêncio dos cemitérios.
Tanto disparate! Sabe-se que a morte pode ser fotogénica e que a dor dos outros pode ser atraente. Mas daí a estabelecer a beleza destas cidades mortas vai um passo que roça a loucura ou a tolice. Pode haver sossego em cidades silenciosas e ruas vazias, com comércios fechados e sem passeantes? Pode haver paz em cidades sem vida, sem cheiro, sem ruído de fundo e sem agitação? Pode haver alegria em cidades sem urbano, cidades sem conversa e sem intriga, cidades sem correrias, sem atrasos, sem reuniões, sem idas para o trabalho, sem escolas, sem crianças e sem sirenes de ambulâncias? Pode haver cidades sem polícias e ladrões?
As cidades desta epidemia são cidades sem vida, paradas no tempo, sem alegria, são cidades cemitérios. São cidades depois da bomba de neutrões que poupa as coisas, mas mata os seres humanos e os animais. As cidades com vida são grandes criações humanas, quase obras de arte, mas sem dúvida obras de génios, do génio de planeadores e de génios de milhares de indivíduos e de milhões de decisões que, sem plano, convergem e criam. A cidade é um dos cumes da criação social. É na cidade que existe cultura, igualdade, democracia, discussão e tolerância. Sabemos que também pode haver crime, roubo, doença, acidente, mas tudo isso é nada comparado com a liberdade e a criação que a cidade nos dá. Nem com a alegria que nos proporciona. Até porque a cidade também é protecção e segurança.
O mistério, o encanto e a alegria da cidade foram analisados e cantados pelos melhores. Por Lewis Mumford que, apesar da sua visão crítica das cidades contemporâneas, realçou como poucos a ideia de que a cidade, mais do que matéria e engenharia, é obra de espírito. Por Italo Calvino que, melhor do que ninguém, mostrou que as cidades são como os sonhos, feitos de medos e de desejos. Por Santo Agostinho, que gravou as expressões Cidade de Deus e Cidade da Terra, com as quais quase resumiu a condição humana. Por Augusto Abelaira que, na Cidade das Flores, nos levou, há mais de cinquenta anos, a uma Lisboa disfarçada de Florença, onde sugeriu que a palavra e a arte acompanhavam os desejos de juventude e que política e amor podiam andar juntos. Por Jacques Le Goff que nos garantiu que, desde a Idade Média, foram as cidades que permitiram e criaram as ciências e as letras. E até por Alphonse Allais que escarnecia dos que vociferavam contra os problemas urbanos, recomendando-lhes que simplesmente deveriam construir as cidades nos campos!
Para Marco Polo e o Kublai Khan, segundo Calvino, havia pelo menos 55 tipos de cidades. É possível. Todas elas com ideia e espírito. Todas com história e vocação. Todas com um lugar no património da humanidade. E parece que não há duas cidades iguais. Nem sequer parecidas. Há Veneza, única. Atenas e Esparta. Cuzco e Machu Picchu. Tróia, Cartago e Alexandria. Babilónia e Roma. Palmira, Constantinopola e Aleppo. Foi nas cidades que se fizeram as universidades e as bibliotecas. Mas também as orquestras e os museus. Cada cidade é um resumo de vida e de história. Há nomes de cidades que nem precisam de ser ilustrados. A Cidade Proibida, da autoridade. A Cidade Aberta, da liberdade. A Cidade República e a Cidade Império. A Cidade de Arte. A Cidade Antiga. A Cidade Medieval. A Cidade Ideal, do Renascimento. A Cidade Industrial. A Cidade Luz. A Cidade do Vinho. Ou a Cidade ao lado das Serras. E as duas cidades das cenas no tempo da revolução francesa! Há cidades mágicas, invisíveis, felizes, operárias, financeiras e burguesas. O que não há são cidades mortas, cidades desertas, cidades cemitérios, cidades ruínas… Ou antes, não deveria haver. São contradições nos termos.
Um povo sem cidade é um povo triste. Ou atrasado. Ou conquistado. Ou escravo. O Imperador louco pegou fogo à cidade, Roma. Os deuses destruíram e castigaram as cidades de maus costumes, Sodoma, Gomorra e Pompeia. Quando fizeram campos de concentração na Alemanha, esvaziaram cidades. Quando sonharam com a reeducação de cidadãos na China, foram estes enviados para o campo. Quando pretenderam castigar os adversários e os homens livres na Rússia, foram deslocados para os campos. Quando os tiranos desejaram consolidar o seu poder no Camboja, tiraram milhões de pessoas das cidades. Napoleão e Hitler queriam as cidades, quiseram Moscovo, em Moscovo esbarraram e a guerra perderam. Os ditadores não se sentem bem nas cidades. Nem gostam de quem vive nas cidades, porque a liberdade é citadina. E porque cidadania vem de cidade.
As cidades são antros de crime e pecado. Têm noites malvadas e esquinas fatais. Têm escadinhas de droga e de assalto. Têm becos de má fama e calçadas de reputação duvidosa. Têm tango e fado. Têm esplanadas de espiões e mirones. Têm especuladores e açambarcadores. Têm criança abandonada, mulher explorada, homem bandido, velho adoentado e jovem batido. Têm minorias oprimidas e máfias tribais. As cidades têm crime e doença, têm violência e drama, mas é nas cidades que encontramos o sentido criativo, a invenção e o progresso. As cidades têm exploração e despotismo, mas é nas cidades que temos liberdade. Aliás, a liberdade é urbana.
Público, 12.4.2020

domingo, 5 de abril de 2020

Grande Angular - O valor do humano

À pergunta “de que tem mais saudades?”, respondeu “do amor”. Ou então, “da minha liberdade”! Ou ainda, “dos meus amigos”.
Estes são os tempos em que a mulher não pode abraçar o marido que vai morrer. A família não está autorizada a enterrar o avô. O homem que vai trabalhar não se pode despedir da mulher. Os filhos não podem visitar a mãe. O namorado está interdito de beijar a namorada. A mãe não pode acariciar o filho. Os amigos não jantam juntos. Os irmãos estão proibidos de se encontrar. Os fiéis não rezam aos seus deuses. Os Cristãos não estão juntos pela Páscoa. Os Muçulmanos não vão à Mesquita. Os Judeus não frequentam a Sinagoga.
Estes são os dias em que os trabalhadores estão condenados à paragem forçada. As máquinas imóveis nas fábricas. Os aviões ficam alinhados na pista. Os carros eléctricos andam vazios. O mercado não tem clientes, nem vendedores. Os comércios não têm produtos para os quais, de qualquer maneira, não há compradores. Os cinemas não exibem filmes. O restaurante não serve refeições. O quiosque não vende jornais. Os hotéis não recebem turistas. A excursão foi adiada. As salas de museus encontram-se vazias. As redacções dos jornais estão fechadas.
Vivemos um presente em que os velhos não jogam a sueca no Jardim. Os fãs não assistem ao desafio de futebol. O bando não vai à noite beber copos e ouvir música. As velhotas não fazem tricô à beira da porta, na má-língua. Os professores não ensinam diante dos seus alunos. Os estudantes não ouvem aulas. As filarmónicas não tocam. Os coros não cantam. As equipas não jogam. O médico não dorme em casa. A enfermeira não janta com a família. Os velhos, nos lares, fogem uns dos outros.
Este é o terror. Que tentamos esconder. Com a televisão e as séries. Com os computadores e os telemóveis. A arranjar estantes. A arrumar roupa. A ler e reler livros. A escrever. A organizar correspondência. A idealizar “power points” e trabalhos de computador. A arranjar as fotografias de família. A reparar máquinas. A cozer roupa. A limpar a casa. A dormir. A descansar. É o terror que queremos disfarçar com tarefas e projectos adiados.
É este desastre que tentamos perceber. Ou explicar. Mas apenas conseguimos encontrar o valor humano da nossa vida. O valor do presente. Para todos nós, para quase todos nós, o terror é história. O que vivemos e nos preparamos para viver não tem termos de comparação. Nem é a peste ou a cólera. Nem a varíola ou o sarampo. Ou a tuberculose e o AIDS. Não que essas sejam ou tenham sido mais brandas, talvez não tenham sido. Mas foram em tempo mais largo e espaço menor. Foram mais lentas. As notícias e os vírus demoravam anos a espalhar-se. E também não é a gripe espanhola nem a asiática, que, para todos nós, são história e nunca pensámos que poderiam ser actualidade. Nem ocorreu que poderiam voltar a ser verdade. Mataram vidas, milhares ou milhões. Mas não ameaçavam a vida.
É terror, não é guerra, não há inimigo a abater, não há adversário a estudar e a derrubar. Não é crise económica, com indicadores, subsídios, indemnizações, esmolas, assistência e direitos sociais. Não é crise com manipuladores dos preços e especuladores das finanças. Não é conflito internacional com exércitos, provocações, inimigos e batalhas. Não é nada do que conhecemos. As chamadas grandes guerras mundiais, a primeira e a segunda, são história. As gripes e as pestes são história. As crises do petróleo, a descolonização, as invasões e as guerras civis na antiga Jugoslávia, no Próximo Oriente e na Ásia do Sudeste já são história, foram reais e terríveis, mas não são comparáveis ao que temos aí!
Aqui, agora, ninguém ataca ninguém. Ninguém abate ninguém, mas são homens e mulheres abatidos. As vítimas não são escolhidas. Os vírus não matam de preferência brancos, negros, indianos ou índios. Não perguntam a religião nem o partido político. Não querem saber que línguas falam as vítimas. O que não quer dizer que os países pobres não sejam mais vulneráveis, que os Estados sem estruturas não sejam mais frágeis e que as nações mais povoadas e menos desenvolvidas não sejam mais fracas. E a verdade é que, por enquanto, os países mais poderosos do mundo são os que actualmente exibem os piores indicadores. Mas não sabemos se os países mais frágeis e mais pobres da Ásia, de África ou da América Latina não venham a ter crises iguais ou piores.
Parece história, mas história não é. É hoje. Vivemos uma crise no presente e no futuro, sem saber ou suspeitar do desenlace. Queremos saber tudo, já, mas nem sequer sabemos se estaremos cá para contar. E, todavia, há tantos que sabem tudo! Tantos que têm a certeza das máscaras, das luvas e das viseiras. Tantos que têm a certeza do que deve ser feito nas ruas, nos comércios, nas escolas e nos hospitais. Tantos que têm programas impecáveis para reabilitar já a economia, evitar a crise social, distribuir dinheiro, nacionalizar, racionalizar, impedir o desemprego e a falência.
Uns sabem o que se passa. Outros o que deve ser feito. Toda a gente quer aproveitar a pandemia para realizar as suas fantasias. Os tolos querem acabar com o capitalismo. Os idiotas com o socialismo. Os desavergonhados desejam ganhar dinheiro. Os tresloucados pretendem conquistar o poder. E os intriguistas dedicam-se a encontrar culpados. Os ressabiados procuram denunciar os trafulhas. E os vigaristas só pensam em aproveitar. Verdade é que sabemos tão pouco!
No início deste desastre, todos sabiam tudo, os loucos perderam a cabeça e disseram o que já esquecem. Passados os primeiros tempos, os que tudo sabem começaram a acalmar-se. Os políticos que cometeram erros enormes, agora corrigem. Outros deram garantias demagógicas, agora acalmam-se. Mas muitos, cada vez mais, percebem que são os homens e as mulheres que estão em causa. Os sentimentos e as famílias. A vida e o amor. Afaste-se a mentira e a demagogia, festejemos a razão e aceitemos a lágrima. A ciência e a pieguice fazem parte do humano. São humanas. A lágrima fácil e o raciocínio frio. O oportunismo e a sensatez. A aflição e a serenidade. Todos são humanos. Como humana é esta sensação de que a ciência avanço tanto e a vida mantém-se tão frágil.
Mas o valor do humano não está na suficiência nem na presunção. O real valor do humano está na generosidade e na entrega. Na procura e na humildade. Até na fragilidade. Por isso é preferível a incerteza do biólogo, a dúvida do virologista e a cautela do médico à certeza do político, à sofisticação do sociólogo e à garantia do economista.
Público, 5.4.2020