sábado, 18 de dezembro de 2021

Grande Angular - Portugal mudou

Em cinquenta anos, Portugal mudou. De modo radical. Nestes últimos trinta, também. De modo irreversível. Apesar disso, Portugal continua. É esse o segredo das nações. Tudo muda, mas o essencial fica. Ou antes, muito do que é essencial mantém-se. A língua, a história, a memória. Até quando, ninguém sabe. Mas de uma coisa podemos ter a certeza: é a de que, um dia, Portugal também acaba. Como nos ensinou, além de outros, Jared Diamond: os países podem sucumbir. Se é o que os povos querem, muito bem. Se não é o que querem, aí já podemos ter problemas.

Estes últimos dias trouxeram várias estatísticas. É uma colheita de fim de ano. A começar pelos primeiros dados, provisórios, do Último Censo. Se dez anos (intervalo entre censos) não chegam para grandes conclusões, uma perspectiva alargada dá indicações preciosas. Que sublinham a afirmação anterior: Portugal mudou muito.

Desde os anos sessenta do século anterior, o número de Portugueses aumentou dois milhões, mas agora, desde há vinte anos, já perdeu mais de duzentos mil. E só não perdeu mais, porque chegaram umas centenas de milhares de imigrantes, em maioria vindos de países não europeus, Brasil e África à cabeça. A população imigrante estrangeira residente em Portugal rondará hoje, incertamente por causa dos ilegais, os 5% a 6% do total. Eram menos de meio por cento há quarenta anos e 3% há vinte. Apesar disso, Portugal continua. Mudou de cor, está a mudar de língua, de gastronomia, de roupa, de deuses e de costumes, mas continua. Até onde, até quando, não se sabe.

O envelhecimento da população é a realidade mais importante de toda esta evolução. Os velhos já foram cerca de um quarto dos jovens, mas são hoje quase o dobro. Os que têm mais de 65 anos eram há pouco tempo 8% da população, são hoje 24%. Os pensionistas e reformados eram 120 000 há meio século, são hoje perto de 4 milhões. Em percentagem da população adulta, os pensionistas eram 2%, são hoje mais de 40%. Por cada idoso, havia 8 activos, hoje não chegam a 3. Os jovens com menos de 15 anos eram um terço do total, são hoje apenas 12%.

Os nascimentos já foram mais de duzentos mil por ano, são agora perto de oitenta mil. Aquela que era provavelmente a mais alta taxa de natalidade da Europa é hoje talvez a mais baixa, seguramente uma das mais baixas. Os nascimentos e os filhos ditos “fora do casamento” eram há três ou quatro décadas menos de 10%, são hoje quase 60%, isto é, a maior parte dos nascimentos pertence a essa categoria. 

O número de casamentos reduz-se todos os anos de modo impressionante, sendo que os casamentos civis são grande maioria, pelo menos 70%. O casamento religioso, provavelmente católico, é uma raridade. Como é sabido, até 1974, por causa da política e da Concordata, quase não havia divórcios. Hoje, o seu número aproxima-se de 60% dos casamentos.

As pessoas a viverem sozinhas (na estatística chamam-lhe “famílias unipessoais” ou “agregados de uma só pessoa”) já foram cerca de 10% da população, constituem hoje um quarto (25%).

A posição das mulheres na sociedade conheceu mudanças profundas nestas décadas. Ainda faltará muito para se atingir uma relativa igualdade, dizem alguns, com razão. Mas o que já ocorreu, em tão pouco tempo, foi colossal. A não ser no sacerdócio católico, já não há profissões ou estatutos reservados aos homens, incluindo as forças armadas, as polícias, a magistratura e a tauromaquia. As mulheres são a maioria na Administração Pública, nas escolas, nos hospitais, na universidade, entre os licenciados e doutorados anualmente (e quase no corpo docente do ensino superior). Médicos e enfermeiros, advogados e juízes são, em maioria, mulheres. Diferenças existem, e grandes, a favor dos homens, nos níveis de salários, nos quadros superiores das empresas privadas, nas instâncias superiores da política e em áreas de reserva de poder, como sejam os oficias das Forças Armadas, o Supremo Tribunal de Justiça e os órgãos superiores do Estado.

Os sectores de actividade dos residentes também mudaram neste meio século. Em resumo, os 45% da agricultura são hoje menos de 5%. Os quase 40% da indústria são menos de um quarto (24%). Com uma particularidade que convém assinalar: ao contrário de quase todos os países europeus, Portugal nunca teve uma população maioritariamente industrial. Passou directamente do sector primário (agricultura) para o terciário (serviços).

O universo da educação é um dos que regista mais mudanças. Os 40% de analfabetos dos anos 1960 são agora talvez 5%. Os Portugueses chegaram à literacia com cem a duzentos anos de atraso relativamente aos países europeus, naquela que é talvez a mais persistente chaga da história nacional. Finalmente, com a excepção de alguns idosos, a totalidade da população frequenta a escola.

A demografia do sistema de ensino é curiosa. Na verdade, por causa das quebras de natalidade, o número de portugueses a frequentar o ensino básico é menor do que era há cinquenta anos. Mas nos graus de ensino seguintes, a explosão foi absolutamente fenomenal. Os alunos do secundário eram dez mil, são hoje quatrocentos mil! E os do superior, cerca de 25.000 em 1960, são hoje mais de 410.000. Hoje, cerca de 20% dos residentes têm um curso superior, quando, há meio século, eram menos de 1%.

O que está a acontecer na sociedade portuguesa é evidente e inelutável: uma mudança profunda. O grande problema consiste em saber o que se pretende, ou o que se espera, com essa mudança. Assim como onde se quer chegar, sabendo que nunca se chega a um termo. Mas a verdade é que forças enormes estão a deslocar o edifício nacional, já em curso de alteração. Para além das técnicas, essas forças são conhecidas. A globalização e a perda de referências nacionais. O desaparecimento do Estado nacional. A democratização igualitária. O “Inverno” demográfico. As migrações. A miscigenação étnica e cultural. O turismo e as viagens. A destruição da produção industrial e similar, substituída pelos serviços.

Os políticos, as autoridades, os dirigentes económicos e sociais interessam-se pelo presente, pelo futuro imediato e pelo previsível. Mas todos os dias se tomam decisões invisíveis que vão marcar o destino. O que é melhor para a liberdade, a democracia e o bem-estar? O que é melhor para a felicidade dos portugueses? O quadro nacional preservado ou a sociedade global europeia e universal? A referência histórica e a memória ou a mutação e o eterno recomeço? Pode uma população não escolher concretamente o seu futuro. É verdade. É pena, pois serão outros a escolher. 

Público, 18.12.2021

sábado, 11 de dezembro de 2021

Grande Angular - Fronteiras

O historiador inglês Alan Taylor (mais conhecido por A.J.P. Taylor) disse que, em 1900, nos bons tempos de paz e progresso, era possível a um cidadão britânico deslocar-se de Londres a Istambul sem controlos policiais. Para se fazer entender, tinha de falar diversas línguas. Atravessava vários Estados, Principados, Impérios e outras entidades afins. Mas tudo isso se fazia sem passaporte. Depois, foi o que se sabe. Fecho de fronteiras, nacionalismo, duas guerras europeias (e mundiais), redesenho de Estados, criação das democracias modernas, nascimento do fascismo, estabelecimento do comunismo, fim dos impérios… Mas também a aviação, os comboios, as auto-estradas, os transportes individuais e colectivos de grande velocidade. A história do século XX foi uma cavalgada fantástica.

Ao longo de cinquenta anos, a Comunidade Europeia, depois União, afastou obstáculos, dispensou passaportes, unificou leis, criou uma moeda única e elaborou políticas comuns. São trinta países com longos passados de guerra e conflito que hoje vivem em paz, com quase totais liberdades de circulação, comércio e estabelecimento. Os seus dirigentes sonham com o fim das fronteiras. E tentam uniformizar o fisco, as escolas, os hospitais, a segurança social, as leis laborais, as instituições democráticas e a magistratura. Mas, no momento da sua glória maior, a de total abertura, a Europa está ameaçada pelos velhos fantasmas da rivalidade nacional. E também pelo renascimento de anseios de identidade e autonomia.

A imigração de milhões de pessoas, vindas de África, da Ásia e da América Latina, transformou-se numa das mais sérias realidades do continente. Com incalculáveis consequências, muitas delas vantajosas. Com efeito, os imigrantes trouxeram benefícios. Rejuvenesceram as populações. Aumentaram a natalidade. Alargaram a produção e o consumo. Dilataram as receitas da Segurança social. Permitiram a mistura de culturas. Contribuíram para o turismo. Abriram horizontes, renovaram a gastronomia e o vestuário. Tudo isto ao mesmo tempo que executam tarefas que os nacionais não querem fazer, designadamente trabalhos na agricultura, na construção civil, nas obras públicas, na indústria pesada e na limpeza.

Mas a emigração não tem só vantagens. Tem ainda enormes inconvenientes, nomeadamente quando é descontrolada. Está na origem de uma população ilegal e indocumentada. Cria uma concorrência desleal e distorcida entre trabalhadores nacionais e imigrantes. Faz baixar os salários médios dos trabalhadores residentes e legais. Enfraquece o sindicalismo. Alimenta os “guetos” e os bairros de comunidades separadas. Agrava as condições de habitação, sendo frequentes as situações de sobreocupação, de alojamento degradado e de mercado clandestino. Dá origem a novas formas de marginalidade que convive com o crime. Exerce pressão sobre as instituições educativas e de saúde. Traz consigo formas de “legalidade” e de comportamentos sociais, habituais para os imigrantes, mas ilegais e inaceitáveis para as sociedades ocidentais.

Entre nacionais e estrangeiros, entre residentes e imigrantes, criam-se delicadas zonas de confronto que pode facilmente transformar-se em perigoso conflito. Como é evidente, proclamar a virtude e os bons comportamentos não serve para coisa alguma.

Ora, é o descontrolo da emigração (e a sua ilegalidade) que está na origem dos preconceitos e de reais conflitos. Todos os fenómenos de racismo e de xenofobia recebem um impulso da imigração descontrolada. Cresce a xenofobia dos nacionais e dos estrangeiros. Aumenta o racismo dos nacionais e o dos imigrantes. Torna-se fácil, sobretudo em tempos de crise, acusar os imigrantes, assim como as minorias, de ladrões, marginais, violadores e contrabandistas. Torna-se frequente, nesses mesmos tempos difíceis, acusar os residentes e os nacionais de exploradores, racistas, colonialistas e traficantes de menores e de mulheres.

Não falta quem pense que os imigrantes são necessários pois têm menores salários, aceitam qualquer trabalho, podem ser despedidos à vontade, não se importam com a precariedade, não se sindicalizam e calam-se. Também não falta quem pense que os imigrantes têm especial inclinação para o crime, a marginalidade, a droga, a prostituição e o roubo e, por essas razões, não deveriam ser admitidos. Mas há ainda os que pensam que, sendo os imigrantes e os refugiados seres humanos como os outros, ainda por cima em situação de vulnerabilidade, devem merecer toda a espécie de apoios e ajudas, assim como especiais incentivos à integração. E os que entendem que receber imigrantes e refugiados é um acto de nobreza e civilização.

Há, dos dois lados, razões e preconceitos. O que interessa não é julgar, mas sim evitar o conflito. A verdade é que a emigração excessiva, descontrolada e ilegal se transformou no factor mais perturbador das sociedades europeias e dos sistemas políticos democráticos. Entre países membros da União e dentro de alguns deles, são já evidentes os conflitos que têm a imigração como razão. As forças nacionalistas, de direita e de esquerda, crescem significativamente nos eleitorados europeus. As forças de extrema-direita, mais sensíveis à pressão nacionalista, aumentam os seus resultados eleitorais.

Para os problemas actuais, há seguramente muitas soluções e opiniões. Mas há também certezas. Uma: o controlo, tão eficiente quanto possível, da imigração. Duas: a obrigatoriedade (imposta aos empregadores e aos empregados) de legalização e de contrato para as relações de trabalho e de habitação. Três: a regulação dos volumes tolerados, legalizados e contratados de imigrantes, em conformidade com as necessidades da economia e da sociedade. É seguramente ingénuo acreditar que esse controlo possa ser total. Mas se o for em parte, já é uma vantagem.

A União Europeia foi longe de mais. Já hostiliza o princípio nacional, o que é mau para a democracia e a paz. Também largos sectores da população, com e sem razão, contrariam a pressão federal e o princípio europeu. Se as autoridades, os partidos e a sociedade civil não prestarem atenção e se limitarem a proclamar as suas verdades a favor ou contra a imigração, a favor ou contra as nações e os Estados nacionais, teremos certamente, a breve prazo, acontecimentos imprevisíveis, desastrados e perigosos. É quase uma ironia pensar que as fronteiras e os passaportes podem voltar a fazer parte do quotidiano europeu. Mas já estivemos mais longe.

Público, 11.12.2021 

sábado, 4 de dezembro de 2021

Grande Angular - O destino da Europa

Nas praias mediterrânicas, nas costas algarvias, nas ilhas gregas e nas falésias turcas, o que está em causa, além de milhares de vidas, é o futuro da Europa. No litoral ibérico e italiano, afrontam-se destinos que vão ditar a sina da Europa. No mar do Norte, no canal da Mancha, nos arredores de Calais, o futuro da Europa está em causa. Nas fronteiras húngaras, polacas, checas e bielorrussas, joga-se a sorte da Europa. Mesmo que não pareça evidente, na Escócia, na Irlanda, na Dinamarca e na Lituânia, combate-se por uma ou outra Europa.

Já se percebeu que a pior, a mais difícil de todas as crises, na Europa, é a das migrações, dos refúgios e das fronteiras. Por razões humanas, em primeiro lugar. Milhões de pessoas dos países vizinhos, das antigas colónias e de países longínquos esperam poder passar as fronteiras, correm todos os riscos imagináveis, deixam-se manipular por contrabandistas, negreiros e traficantes, para poder mudar de vida e de país, ganhar um salário decente, ter direito a uma vida que lhes é negada nos seus países de origem. Atiram crianças à água e enchem botes miseráveis de velhos, adultos e menores, incluindo bebés, na tentativa de comover a opinião pública europeia. Venderam o que tinham, venderam-se e venderam as suas filhas, entregaram as casas e os móveis, quando os tinham, na esperança de comprar um documento ou pagar uma passagem, um autocarro manhoso, um lugar de avião, um refúgio num vapor de carga, um espaço exíguo num bote miserável ou um encosto dentro de um contentor. Tudo isto porque querem ter uma vida decente, porque lhes prometeram que era possível, porque houve quem lhes garantisse emprego e habitação, porque certos Estados africanos e do Próximo Oriente fomentam estes movimentos ilegais e porque têm ouvido dizer que, no final de contas, os países europeus cedem. É preciso muito, é preciso tudo, para correr estes riscos, para se preparar para a morte, para deixar pais e mães para trás, para se separar deliberadamente dos filhos, para entregar alma e corpo a traficantes e para acreditar na sorte e nos deuses!

Por razões políticas, sociais e culturais, em segundo lugar. As hordas de emigrantes e seus candidatos e de refugiados falsos ou verdadeiros colocaram em crise todo os países europeus, desencadearam as opiniões mais varáveis e mais contraditórias possíveis. Cada país europeu, cada região, cada comunidade religiosa, cada etnia reage, na Europa, de modo diferente, conforme a sua história e a origem dos emigrantes. Na Alemanha, um Cigano e um Turco não são recebidos da mesma maneira do que um Sudanês ou um Sírio. Em Portugal, um Nepalês e um Paquistanês não são acolhidos do mesmo modo que um Brasileiro e um Timorense. Nestas questões, não há simplesmente seres humanos, há gente com religião, ideologia, classes, comunidade, cultura, língua e etnia. É simples negar tudo isto. É fácil afirmar que não é assim, não deveria ser assim, pois somos iguais e solidários e devemos todos conviver com todos. É simples e fácil, mas não é verdade.

Por motivos de política internacional também. Cada país reage segundo as suas conveniências, a sua cultura e os seus eleitorados. Uma resposta europeia única é simplesmente impensável. Já se percebeu que, nas fronteiras húngaras e polacas, por exemplo, estão em causa séculos de história, interesses legítimos diversos, culturas diferentes e modos de vida por vezes incompatíveis. Estamos a viver um tempo que já destruiu uma grande parte do património comum de política europeia para países terceiros, a emigração e o asilo. Há cada vez mais a certeza de que grandes potências vizinhas da União, assim como estados ricos do mundo islâmico, estados africanos interessados no êxodo dos seus nacionais e estados longínquos empenhados em fortalecer as suas diásporas, alimentam os fluxos de candidatos ilegais à imigração na Europa e financiam as redes de traficantes.

A Europa e os seus Estados nunca terão, antes de décadas ou séculos, se é que alguma vez terão, políticas comuns e iguais sobre os estrangeiros, as imigrações e os refugiados. E só haverá uma política comum e igual no dia em que não haja Estados independentes, culturas próprias, religiões diversas ou histórias singulares. Nem liberdade.

Há muitas pessoas na Europa que querem receber emigrantes. Tantos quantos vierem. De África, do Próximo Oriente, da Ásia ou da América Latina. Mas também há muitas pessoas na Europa que só querem receber emigrantes de certas regiões do mundo, designadamente da Europa e da América, de certas nacionalidades e religiões. Como há ainda muitas pessoas na Europa que querem receber, de certos países, o menor número possível de estrangeiros, conforme as necessidades de trabalho ou de profissão.

Há pessoas na Europa que não se importam com a crescente diversidade das sociedades, com os restaurantes de todas as cozinhas, com as escolas de várias línguas, com templos de diversas religiões e com costumes familiares de todas as latitudes. Mas também há pessoas na Europa que não querem abdicar das suas cidades históricas, dos seus costumes, das suas culturas e da sua iconografia.

Há pessoas na Europa que querem que, venham donde vierem, os estrangeiros, os refugiados e os imigrantes, tragam consigo os seus costumes, as suas leis, as suas culturas e modos de vida e que assim se construam novas nações multiculturais que vivam da heterogeneidade. Mas também há pessoas na Europa que querem manter o continente, as sociedades, os países e as cidades com identidade histórica própria, com a sua origem e a sua imagem, tentando assim defender a sua identidade cultural nacional ou local, na convicção de que esta traz consigo independência, autonomia e liberdade.

Há pessoas na Europa que não se importam de viver com legiões de ilegais, turistas que o não são e refugiados de aparência. Há quem pense e acredite que a liberdade fica para além dos procedimentos legais e burocráticos. Como há pessoas na Europa que não admitem que as sociedades e as economias europeias convivam com a ilegalidade, o trabalho negro e o mercado paralelo.

Há quem queira uma Europa de portas abertas, acessível a todos os que querem viver aqui, de livre entrada e saída, de livre residência e fixação. Mas também há quem queira uma Europa que garanta a legalidade de trabalho e residência, assim como os procedimentos necessários a uma sociedade moderna democrática.

A Europa, a União Europeia é de todas estas pessoas. E se quer existir e sobreviver com liberdade para todos nós, tem de viver com elas. 

Público, 4.12.2021 

sábado, 27 de novembro de 2021

Grande Angular - Quanto pior… pior!

Foram anos de medíocre crescimento económico. De endividamento acelerado. E de bancarrota oficial. São já dois de pandemia que causou sofrimento, feriu o tecido social e perturbou os sistemas colectivos. Foram muitos de corrupção enraizada, de inoperância da justiça e de captura dos bens públicos. A política, a economia, a banca, a Administração Pública e a Justiça deram todas as oportunidades aos bandidos e assaltantes. Nestes vinte anos, Portugal e os portugueses não souberam aproveitar as oportunidades, explorar as aberturas comerciais, beneficiar dos fundos europeus, atrair investidores, punir os infractores e melhorar a sorte dos pobres. Talvez não seja possível dizer que está tudo pior, não é verdade. Mas pouco, muito pouco está melhor. Nestes anos, têm reinado a mediocridade, a mediania e a estagnação. Parece que os portugueses adoptaram a estranha noção de que progresso não é melhorar, é não piorar.

Posta à prova em singulares circunstâncias, a saúde pública é um bom exemplo. Depois de um excepcional esforço de médicos, enfermeiros, auxiliares, autarcas, técnicos, funcionários, militares e investigadores, será sempre necessário, um dia, avaliar, saber se o que foi feito está certo, se houve erros e se era possível fazer melhor. Uma coisa é certa: parece que cumpriram, com honra, o seu dever, fizeram mais do que deviam e se lhes pedia. O problema que sobra é o do SNS e de todo o sistema de saúde pública. Parece que o SNS está de rastos. Se assim é, todos os alarmes devem estar activos: corremos o risco de perder o que de melhor temos.

Quase tudo o resto, muito do que é essencial está em risco e sob ameaça. De desorganização. De falta de pessoal qualificado. De penúria financeira. De profundo cansaço. O endividamento público agrava-se. A educação não melhora. O investimento privado está muito longe do que deveria ou poderia ser. A justiça é o mais doloroso retrato da impotência.

Para fazer frente a esta situação, há meios. Poucos, sobretudo europeus, mas alguns existem. Pessoas também, pelo menos por enquanto, apesar de termos agora vivido a segunda mais grave crise de emigração do século. Instituições também, apesar de definhadas por políticas de favoritismo. Empresas ainda, apesar de algumas das maiores e das melhores terem sido praticamente destruídas. Falta saber quem pode e quem deve.

Nestas situações históricas difíceis, procuramos sempre quem possa fazer melhor, quem seja capaz de inverter o plano inclinado e com que meios lutar contra a mediania. Por isso, olhamos para os partidos políticos. Em democracia, o dever deles é esse mesmo, lutar contra a mediocridade e pelo melhoramento. Ainda por cima em vésperas de eleições. Olhamos à volta e o que vemos é inquietante. Parece que os partidos fazem parte da crise, em vez de a combater.

O PS vive a sua crise de poder a mais, com fracturas internas difíceis de remediar. Aquele que poderia ser o principal centro de recuperação económica e social e o primeiro responsável por uma racionalidade política actualizada, está em vias de procurar o enriquecimento sem justa causa. Sem talento para a recuperação económica, polarizado na despesa pública, sem capacidade para atrair investimentos e mercados, este partido inventa todos os dias causas menores e adversários inexistentes. Quer ganhar as próximas eleições essencialmente com a mediocridade dos outros. Isto é, ganhar com o mal dos outros, não com o seu bem. Está disponível para tudo, desde que lhe dêem votos e poderes. Do mercado ao planeamento soviético, do privilégio para as elites à luta contra a desigualdade, é um verdadeiro partido espargata.

O PSD é um dos casos mais interessantes da história partidária portuguesa das últimas décadas. Foi o que melhor se colou à sociedade, às classes, às comunidades, aos grupos de interesses e às crenças. É o mais plural e diversificado de todos. A sua vasta riqueza política permitiu-lhe todas as querelas e todas as barafundas. Várias vezes se fez e refez. Não se poupa a nenhuma trapalhada. Desta feita, parece irreversível. A campanha interna não tem sentido nem programa. É talvez o momento da sua história em que mais perto se encontra de uma profunda clivagem. São barões contra barões, transviados sem causa. Entre uma maioria impossível e uma oposição ineficaz.

O Bloco de Esquerda prepara-se acidamente para uma má jornada. Perdeu a mão, a negociação com o governo saiu-lhe mal. Não soube avaliar a sua força. Ou antes, não percebeu a sua fraqueza. O seu papel de reserva ideológica da jovem burguesia urbana e de agitador cultural de esquerda parece estar esgotado. Não fora o seu predomínio indiscutível na comunicação social e já teria organizado exéquias. As perspectivas eleitorais são péssimas.

O PCP vive momentos de terrível crise de consciência e existência. Colaborou pela primeira vez com a direita social-democrata e com a burguesia democrática, mas as coisas não correram bem. Quase não teve vantagens, a não ser as de uma vaga reputação de bom comportamento, mas com os danos de uma experiência frustrada. As previsões eleitorais são altamente reservadas.

O CDS prepara cuidadosamente o seu funeral. É difícil perceber todas as razões doutrinárias, políticas, sociais e pessoais que conduziram o partido a esta situação estranha. As facções lutam por nada. São duelos sem donzela.

O PAN Entrou em zonas de baixios e sarilhos. Por definição, é partido destinado a enriquecer uma margem. E a manter uma pressão contra a crueldade e, apesar do nome, a desumanidade. O que quer dizer que a sua dimensão eleitoral não é o seu trunfo mais importante. Mas, não sem surpresa, surge como se tivesse sido infectado pelos desastres contemporâneos que tanto condenou nos outros.

O Chega vem abandonando o seu ímpeto revolucionário. Pretende jogar o jogo e elabora um programa, o que é contrário ao impulso justiceiro. Dedica-se à intriga própria dos sistemas democráticos. Quer ter uma fatia do bolo, tempo de antena, minutos de porta-voz, local de recepção, vez nas audiências, parceria nos debates, notícias nos telejornais e posição nas listas do protocolo. Talvez deixe de ser marginal. Se assim for, a boa notícia é que deixa de ser revolucionário. A má notícia é que pode aumentar a fragmentação da política. As hipóteses eleitorais apresentam-se muito incertas.

A IL é um doce mistério. Não sabemos, não se sabe realmente o que quer. Nem o que vai fazer. Será que eles sabem?

A lanterna de Diógenes faz falta. O ponto de apoio e a alavanca de Arquimedes também.

Público, 27.11.2021

sábado, 20 de novembro de 2021

Grande Angular - Maiorias

O mais importante é a política. O próximo governo terá de tentar aumentar o investimento público e privado, atrair investidores e iniciar uma nova era de crescimento e desenvolvimento. E terá também de associar essas políticas económicas a um esforço de redução das desigualdades e de aumento dos rendimentos dos portugueses, sobretudo dos que trabalham. Será ainda necessário assegurar um clima de confiança e reformar a Administração, sobretudo a da Justiça. O próximo governo pode ter a certeza de que limitar a actividade e a iniciativa privada será a sua ruína. Sua e de todos nós. Mas também saberá que tem de reforçar a acção do Estado em muitas áreas sociais. Quem fizer o próximo governo sabe já que vai ter, como raramente na história recente, um enorme conflito entre liberdade e igualdade, entre rigor e despesa, entre dívida e desenvolvimento. E também entre Estado e sociedade civil.

O que precede é de tal modo claro que se tornou necessário e imperativo de interesse nacional formar um governo de maioria parlamentar, de estabilidade de políticas, de cooperação entre partidos e de partilha de responsabilidades. O que quer dizer governo de maioria absoluta de um partido ou governo de maioria parlamentar de coligação pré-eleitoral ou de aliança pós-eleitoral.

Estas evidências, dificilmente contestáveis, são rejeitadas pelos preconceitos habituais contra as maiorias absolutas e contra as coligações e as alianças. 

Todos os partidos sonham com o poder e com uma maioria absoluta, mas nunca ou dizem. Não querem parecer ambiciosos, nem que se imagine que só pensam no poder. Não querem “dar parte de fracos” e ter de justificar, depois das eleições, que não obtiveram a almejada maioria absoluta.

Deveríamos ter hábitos de realizar alianças ou coligações. Seria claro e promissor. Saberíamos o que nos espera. Em cinquenta anos, tivemos poucas. A AD (Aliança Democrática), a APU (Aliança Povo Unido), a CDU (Coligação Democrática Unida) e a FRS (Frente Republicana e Socialista) são talvez os melhores exemplos. PAF (Portugal à Frente) e as coligações entre o PSD e o CDS ou PS e CDS também devem ser incluídas. O Bloco Central foi uma aliança pós-eleitoral entre o PS e o PSD, com partilha de governo. Esta coisa em nome de aliança e que se designa vulgarmente como Geringonça sem partilha de governo é outro exemplo. Alianças e coligações parecem muitas, mas na verdade são poucas, de curta duração e pouco êxito. 

Houve maiorias absolutas de um só partido (do PSD de Cavaco Silva e do PS de José Sócrates) ou de coligações (da AD, com Sá Carneiro e Pinto Balsemão, do PS e do CDS, com Mário Soares, do PSD e do CDS, com Durão Barroso e Santana Lopes e do PAF, com Passos Coelho). Gostemos ou não, foram maiorias parlamentares que fizeram história. Os governos minoritários foram mais breves, poucos terminaram bem. Se fizermos um balanço, logo veremos que há de tudo, bem e mal, com qualquer forma de governo, com ou sem maioria parlamentar. Mas também verificamos que esta última é condição essencial para as mais importantes reformas constitucionais, legislativas e políticas levadas a cabo. Nesse mesmo balanço, depressa verificamos que houve tanta corrupção em governos de um partido, como nos de alianças e coligações. Assim como houve vícios equivalentes em governos de maioria ou minoritários.

Impressionante é a má reputação da maioria absoluta. Os mais interessados (os principais partidos) têm vergonha. Os menos interessados (os pequenos partidos) detestam-na, pois perdem a capacidade de negociação e chantagem. Curioso é o facto de grande parte da opinião pública não gostar de maioria absoluta. Parece que prefere as intrigas.

Uma coligação de direita é rapidamente designada como ameaça fascista, pelo menos autoritária. O Bloco central foi apodado de bloco de negócios e alfobre de corrupção. A aliança das esquerdas, além de antecâmara do comunismo, é olhada com horror. As negociações e alianças pós-eleitorais são oportunistas e traidoras. As coligações pré-eleitorais são sinal de fraqueza. A verdade é que alguns dos mais importantes instrumentos da democracia (a negociação, a aliança, a cooperação) têm entre nós mau nome.

Entre os dirigentes partidários, há uma verdadeira fobia das maiorias de aliança. Cooperar e partilhar não têm muita saída. A Constituição nada faz para promover governos de maioria parlamentar. Consagra aliás mecanismos que favorecem a tentação minoritária. Por exemplo, não exige que o programa de governo seja aprovado. Não prevê sequer que a composição de um governo tenha o voto favorável dos deputados. Alturas houve em que se tentou inventar um mecanismo estranhíssimo e bizantino, de origem alemã, chamado “moção de censura construtiva”, que obrigaria o parlamento a só votar uma censura ao governo se tivesse preparado uma solução alternativa. O que parece uma condição favorável à maioria não passa, afinal, de uma protecção aos governos de minoria.

Na verdade, há, na política portuguesa, estranhas particularidades. Não se percebe muito bem porque nasceram. Mas têm existência e influenciam directamente os comportamentos políticos. Seja os dos cidadãos, seja os dos partidos políticos.

Há uma espécie de culto da minoria e dos arranjos. A Constituição não obriga a que os ministros vão a votos, muito menos o governo. Depois de formado, se não houver moção de censura nem voto de confiança, o governo minoritário fica.

Os partidos não dizem que querem uma maioria absoluta. Mesmo os que só sonham com isso, o PS e o PSD em particular, não têm hábito nem coragem de o afirmar. Receiam ter de dizer, depois das eleições, que não conseguiram.

Com excepções, os partidos procuram fugir às coligações e alianças pré-eleitorais. Consideram que tal é fraqueza.

Os partidos, os cientistas políticos, os académicos, os comentadores e até os jornalistas, em maioria, tudo fazem para proteger os governos minoritários e para sublinhar os riscos de corrupção dos governos de maioria. É dominante o sentimento de que os governos maioritários são tendencialmente autoritários.

As próximas eleições poderiam trazer algumas boas notícias, a começar pela maioria absoluta parlamentar. De um só partido. De uma coligação pré-eleitoral que a obtenha. Ou uma aliança formal pós-eleitoral que a consagre. Se assim não for, esta dissolução e estas eleições antecipadas ficarão no rol das inutilidades. Um desperdício!

Público, 20.11.2021

sábado, 13 de novembro de 2021

Grande Angular - Acreditar em si próprio

 As surpresas políticas e eleitorais resultam muitas vezes de um estranho, mas frequente, fenómeno: acreditar em si próprio, crer em tudo o que lhe interessa e convém, aceitar como boa toda a informação que os seus amigos, profissionais, empregados, agentes, admiradores e correligionários repetem todos os dias. Nos jornais, nos canais de televisão, nas estações de rádio, nas revistas e nos cafés ou nos salões: há hoje uma verdade dominante, um espírito do dia, uma voz comum. Verdade ou fantasia é indiferente.

Acreditar em si próprio, nesta acepção, é muito mais do que confiar nas suas virtudes e na sua determinação. É sobretudo acreditar no que os seus admiradores, seguidores e dependentes dizem de si. Ler deliciado, nos jornais, os seus boatos e as suas patranhas, pode ser um exercício de narcisismo interessante, mas o problema é que depressa se torna em vício e rapidamente se acredita no que se inventou.

Nos gabinetes dos governantes ou dos altos funcionários da Administração, são muitas as centenas de encarregados de relações com a imprensa, de porta-vozes e de responsáveis por relações públicas que todos os dias, com empenho, às vezes com competência, se desdobram em informações, contactos e disseminação da informação. 

Além destas estruturas directas de divulgação, importa contar as dezenas ou centenas de agências de comunicação que todos dias preenchem os canais de informação, os anúncios, a publicidade paga, as informações não pagas e as “newsletters” que crescem por todo o lado.

Finalmente, há os profissionais “plantados”, genuínos especialistas de informação e divulgação colocados em jornais, serviços de informação, canais e estações, onde acabam por fazer carreira. É verdade que alguns contrariam o efeito Pigmaleão e se tornam independentes ou oficiais de outros mestres. Mas muitos ficam fiéis a quem lhes deu entrada e função.

Os governantes encantam-se com os noticiários das oito, os debates das dez, os jornais de todas as horas, os online de sempre. Com algumas excepções, poucas, a realidade virtual é, para o governo e os socialistas, a realidade verdadeira. Como foi, até há pouco tempo, para o Bloco e o PCP. Para estes dois, agora, a fantasia é outra. Mas ainda fantasia.

É mesmo muito interessante ver como perdem e se perdem os que acreditam nas suas próprias fantasias. Não é imediato, pode demorar, sobretudo se existe um forte controlo da informação, por autoridade, ou uma grande influência na comunicação. Mas, quando a fantasia se torna visível, a queda é radical.

Marcelo Caetano foi seguramente um bom exemplo da crença, não em si próprio, que era reduzida, mas na realidade que os seus amigos criavam. Eram os primórdios da desinformação. Salazar, antes dele, não necessitava de políticas de informação ou disseminação, bastavam-lhe as polícias, a censura, as represálias, as nomeações e as ameaças. Céptico, Salazar acreditava em si, não na sua realidade. Enquanto Marcelo Caetano, conhecedor da sua fragilidade, não acreditava em si, mas na realidade que os seus sequazes criavam.

O Movimento das Forças Armadas (MFA) e o Partido Comunista acreditaram piamente no seu triunfo e na vitória de revolução. Tiveram uma das maiores e mais imprevistas derrotas da história politica eleitoral portuguesa. Em 1974 e 1975, os jornais e a televisão traziam-nos todos os dias uma realidade fantástica, feita de revolução e ilhas socialistas, de conquistas e avanços, de seguidores e apoiantes. Lia-se com apreensão que as greves contra os privados se sucediam. Demissões e ocupação de casas, de explorações agrícolas e de empresas eram às centenas por semana. O saneamento de fascistas, informadores, reaccionários, capitalistas e outros contra-revolucionários progredia heroicamente todos os dias. Tudo, sempre, apoiado por multidões. As eleições de 1975 foram o golpe de misericórdia nas fantasias revolucionárias. 

A derrota de Freitas do Amaral, nas eleições presidenciais de 1986, foi a todos os títulos inesperada. Viviam-se já tempos de Cavaco Silva e do PSD. As sondagens e os sinais eram indiscutíveis. E, no entanto…

A derrota de Cavaco Silva, na presidencial de 1996, depois de dez anos como primeiro-ministro e de duas maiorias absolutas, surpreendeu toda a gente, a começar pelo próprio, que tinha enorme confiança em si e na sua realidade.

Os socialistas do Porto jamais pensaram que, em 2002, após mais de dez anos de poder municipal incontestado, perderiam a câmara para um recém-chegado Rui Rio. Nem mais tarde para um neófito Rui Moreira. Aos socialistas de Lisboa nunca ocorreu pensar que, em 2021, os socialistas de Fernando Medina pudessem ser sequer contestados, quanto mais derrotados.

Verdade é que a fantasia é a ultima a morrer. Vivemos, há uns anos, tempos de crença. Os socialistas de António Costa estão absolutamente convencidos de que a realidade que vêem todos os dias nos jornais e nas televisões é verdadeira. Esquecem-se do simples facto de que foram eles que lá colocaram grande parte dos dados e das informações. Que parecem tanto mais verdade quanto as alternativas não existem. O que o PSD, o CDS e o Chega afirmam não tem sustento nem merece confiança. O que o Bloco e o PCP garantem é do domínio do irreal. O que faz com que o Governo e o PS não necessitem de ser rigorosos, nem coerentes, muito menos verdadeiros. O governo e os Socialistas são incapazes de provar o que, sem pestanejar, afirmam sobre o nível de vida dos portugueses (a subir, dizem…), sobre a pobreza em Portugal (a descer…), sobre o emprego (a dilatar…), sobre o investimento privado nacional e estrangeiro (a crescer…), sobre o êxito escolar (a aumentar…) e sobre os cuidados de saúde (a melhorar…). Nas suas melhores fantasias, aumenta o investimento público e privado na economia, na cultura e na ciência. E da dívida nem se fala. Nem da mediocridade do desenvolvimento das duas décadas do século XXI.

O governo é incapaz de criticar o que há de mais negativo na realidade, a não ser que possa dizer que a culpa é dos governos anteriores. Como os socialistas gostam de dizer, desde o inefável Sócrates, a realidade socialista é uma narrativa confirmada pela mais poderosa organização de comunicação desde há muitas décadas.

Como a vida política se resume cada vez mais à intriga e ao processo, ao adjectivo e ao fútil, quase nada de essencial faz parte dos debates actuais. Vai ser uma campanha dura. Nem sequer vamos ter um duelo de fantasias.

Público, 13.11.2021

sábado, 6 de novembro de 2021

Grande Angular - O grande sarilho

 Discutir prazos, perder tempo e perder-se com processos legais e outros, não é inédito. Em Portugal, acontece quase sempre. As audiências desnecessárias, as reuniões para cumprir calendário, as questões do recenseamento, os prazos e os recursos, as exigências da campanha e a regulamentação adjectiva, são as regras em Portugal. Sempre foi assim. Sempre afligiu.

É verdade que a democracia é, em grande parte, uma questão processual. Isto é, o respeito pelos processos estabelecidos e acordados, institucionais e duráveis, é o respeito pela democracia. Mas também não é menos certo que, com frequência, o legislador se compraz em criar processos burocráticos com os quais se pretende dar garantias de igualdade democrática, mas que na verdade são mais “regras do proprietário”. Os próximos meses, até termos orçamento, primeiro pretexto para a presente dissolução, serão uma boa ilustração destes processos democráticos que defendem os actuais senhorios.

Há quem diga que “da próxima vez, espera-se que já tenhamos corrigido…”, sem que nunca se mude e melhore o lado processual que os Portugueses adoram. Desde que se percebe que tem de haver eleições, desde que se fazem sentir os efeitos de um orçamento reprovado ou de uma dissolução anunciada, começam a contar os dias, as semanas e os meses, até encontrar um momento de estabilidade, de trabalho, de resultados e de cuidado com o povo! Há países em que poucas semanas bastam para ter novo governo em exercício. Portugal não é um deles. Passam-se meses até haver parlamento e governo. E muitos mais até haver novo orçamento. E ainda mais para que a maior parte dos ministros saiba o que está ali a fazer. Nada de grave. Nada de excepcional. É a democracia a funcionar.

Apesar dos lugares comuns incansavelmente repetidos, a verdade é que cada vez mais se vê e sente a crise dos partidos e da democracia. Que não é só portuguesa, é europeia. Facto que não alivia, antes agrava. Uma parte do problema consiste em identificar a crise. Uns dirão que é dos partidos, mas não da democracia. Outros dizem que é sobretudo desta, não daqueles. E há finalmente os que entendem, com mais verosimilhança, que estamos perante uma crise dos dois, da democracia e dos partidos. 

Antecipar eleições não é muito raro, nem grave. É a democracia. É frequente. Acontece em Portugal e noutros países. É o sistema político a funcionar.

Dissolver o Parlamento não é excepcional, nem dramático. Acontece. É a democracia a funcionar.

Perder agora numerosos meses com processos, prazos, avisos, conferências e recursos, não é novo, é o hábito em Portugal. É a nossa democracia a funcionar.

As divergências entre partidos, a dificuldade em chegar a acordo ou convergência e a impossibilidade de abdicar de pontos de vista, para poder chegar a uma base sólida de entendimento, são frequentes em Portugal. É mesmo quase a regra, é a nossa democracia a funcionar.

A gravidade do momento e dos últimos anos, a pandemia, as hipóteses de novo surto de contágio, a crise financeira e as probabilidades de um novo resgate financeiro não são suficientes para mudar os maus hábitos, não bastam para que os partidos entendam que devem mudar de comportamento e encontrar novas soluções: nada de novo, é a nossa democracia a funcionar.

À democracia portuguesa falta maturidade para que os seus protagonistas, partidos e instituições, percebam que a discussão, a negociação e o entendimento, além de serem necessários, são benéficos. Chegar a um acordo, elaborar um contrato, subscrever uma plataforma ou assinar um tratado podem ser virtudes e obras de arte políticas. São eventualmente actos de inteligência e sabedoria. Para já não dizer que são gestos de benefício para as populações.

Entre nós, as negociações e os acordos são considerados cedências. Os fracos receiam os acordos, os fortes desprezam-nos. O bairrismo da luta de classes, a rivalidade chauvinista e o orgulho marialva levam a melhor sobre a discussão e a convergência. Estas últimas são mesmo transformadas em defeitos graves, quando deveriam ser vitórias da razão.

Chegámos assim a este interregno longo e processual, de fingimento burocrático disfarçado de democracia, durante o qual se prepara o novo governo. Sem esquecer que estes episódios nos deixaram um sarilho: a escolha no dia das eleições. Isto é, o voto!

O PCP merece ser batido. Prefere, acima de tudo, tornar difícil a democracia, a Europa e a recuperação económica. Receia aflitivamente ficar amarrado ao PS e, a exemplo de quase todos os PC do mundo, desaparecer. Hesita entre morrer mudando de natureza ou morrer sem nada mudar.

O Bloco merece ser punido. Jogou mal e perdeu. Ficou apavorado. Teme perder o que tanto custou a ganhar, um eleitorado demasiado grande para as suas qualidades e as suas capacidades. Convenceu-se de que a esquerda do PS era a sua aliada. Ainda não percebeu que a sua aparente superioridade é uma inferioridade.

O PS merece ser castigado. Mudou de propósito, primeiro queria acordo orçamental, depois queria eleições. Sonha agitadamente com maioria absoluta. Na ausência de adversários à altura, convenceu-se da sua força e do seu saber. O seu governo aguentou mas não cumpriu. Nem desenvolveu. Um belo exemplo de enriquecimento sem justa causa.

O PSD merece ser ignorado. Perde-se à deriva, desperdiça talentos e experiência, vive em êxtase permanente, não tem autoridade, perdeu crenças e convicções, não tinha eira, agora não tem beira. Querer tudo, do corporativismo à social-democracia, do Estado à sociedade liberal, era a sua riqueza. Não querer nada é a sua pobreza.

O CDS merece ser esquecido. Deixou definitivamente de perceber a sua missão, já não sabe qual é o seu lugar, perdeu o sentido de posição e delapidou a herança. Não é protagonista, nem figurante. Nunca conseguiu sequer aproximar-se do que de mais importante tinha a fazer: trazer a democracia cristã para Portugal.

O CHEGA merece ser desprezado. Vive do nada. Mestre na agitação empolada, apraz-se no seu vazio, que transformou em virtude. Percebeu que a sua força residia no pavor alheio, no receio infundado com que os outros partidos olham para si. Não adianta. É tempo perdido.

É pena que não seja matematicamente possível que todos percam.

Público, 6.11.2021

sábado, 30 de outubro de 2021

Grande Angular - Os perigos do vazio

A realização de eleições antecipadas é evidentemente a mais útil, menos prejudicial e mais adequada solução para os problemas dos tempos que vivemos. Ou antes, não se trata de uma solução, mas de um caminho. Que nem todos pretendem. Já há pressões e alusões, sobretudo por parte dos que derrubaram o governo (nomeadamente o Bloco e o PCP), no sentido de encontrar vias de escape: segundo orçamento, governo minoritário, a prazo, por duodécimos, etc. Nunca aos portugueses faltou a imaginação para o artificial excêntrico e a catástrofe inteligente!

Apesar de inevitáveis, a verdade é que o derrube do governo e a dissolução do Parlamento foram gestos inúteis e nefastos. Provocaram instabilidade e desgaste político interno. Criaram perplexidade e receio internacional. Perturbam o funcionamento da economia, aumentam as carências sociais, dificultam os serviços de educação e de saúde e atrasam as respostas aos mais urgentes problemas do emprego, do investimento público e privado e da luta contra a corrupção. Em tempos de grandes dificuldades decorrentes da pandemia, do nosso endividamento e da crise internacional de abastecimentos, pior não se poderia inventar! Em vez de as fortalecer, enfraquecem-se as instituições. Mas, depois da recusa do orçamento, forçada pela esquerda, desejada pela direita e não enjeitada pelos socialistas, não há outra solução razoável. E todos, infelizmente, partilham responsabilidades.

que falhou com esta dissolução e com este período estranho de coligação disfarçada e de aliança implícita foi, em primeiro lugar, a crença numa solução de esquerda, isto é, das esquerdas. Apesar de pouco recomendável, juntar todas as esquerdas, considerando a democracia e a liberdade como secundários, ainda é o desejo de alguns. Também falhou a esperança de criar um duelo entre esquerda e direita. Como falharam os projectos seja de federar a esquerda, desejo longínquo do PS, seja de submeter os socialistas, esperança dos seus quase aliados. Também não vingou a expectativa de reduzir a extrema-esquerda do PCP e do Bloco a entidades facultativas, anexas ou dependentes do PS.

Foi igualmente defraudada a hipótese de uma grande federação de direita e de centro-direita. Inibida, pelo menos por agora, ficou também a fé num grande Centro político, moderado, socialista da variante social-democrata, liberal e democrata-cristão nas franjas. Entrámos assim num período em que a política portuguesa e o seu centro de gravidade se encontram por definir e redesenhar. Quer isto dizer que os portugueses têm agora de escolher entre dois princípios: o do afrontamento e o da agregação.

O princípio do conflito parece ter falhado. Dado que falhou a federação das esquerdas, também se tornou inviável o confronto clássico entre esquerda e direita. Outros conflitos radicais parecem igualmente afastados ou, pelo menos, incapazes de orientar o futuro político. Por fraqueza do trabalho e por debilidade do capital, a luta entre capital e trabalho parece distante das perspectivas mais próximas de nós. Outro conflito possível, entre Europa e nacionalismo, não vinga nem alimenta um projecto de futuro. A luta entre democracia e não democracia também não parece ter muitos adeptos: à esquerda e à direita, o Bloco, o PCP e o Chega não são suficientes para ocupar os papéis cruciais da vida política nacional. Outros conflitos tradicionais, como os da religião versus laicismo, ou da República contra monarquia, estão de tal modo longe da actualidade que não servem para perturbar, muito menos para reorganizar o sistema e a vida política. A bipolarização, sonho de tantos políticos portugueses, é um desejo impossível.

O princípio alternativo, o de agregação ou de união, que também pode ser de convergência ou de aliança, encara actualmente dificuldades. A federação das esquerdas parece impossível. A federação das direitas também. O crescimento da extrema-direita, da direita nacionalista ou da direita populista é muito improvável. Parece que a união só seria viável ao centro.

Mas o centro da vida política nacional está vazio. À espera… De quem o ocupe, pois claro. Ou de quem o liquide, em caso de conflito radical. Os portugueses têm em geral uma atitude marialva e sectária relativamente às soluções de centro. “Bloco central” ou “Centrão” são expressões malditas na política e no comentário nacionais. Na Academia, é de bom-tom afirmar que o Centro é um Centro de interesses e de corrupção. Entre intelectuais, o Centro, por bruto e plebeu, é desprezado. É pena que assim seja, dado que as soluções “de centro” (na forma ou no conteúdo) têm sido benéficas e salvadoras. Mas é assim! O bairrismo fanático leva sempre a melhor, sobretudo em tempos de eleições. 

Mesmo antes de ser uma hipótese ou um tema real em discussão, já há, na direita, no CDS e no PSD, quem recuse liminarmente o bloco central. O mesmo na esquerda, seja entre os irascíveis comunistas e bloquistas, seja entre os moderados socialistas. Toda a gente contra o centro! A ponto de se verem transformados em virtudes os mais básicos defeitos da política: o sectarismo e o fanatismo. É de tal modo arreigada esta ideia que se chega a pensar que foram as experiências de bloco central as que mais fomentaram a corrupção. Ora, a verdade é bem diferente: foram os governos de um só partido à direita ou de um só partido à esquerda que mais corromperam, que mais se deixaram corromper, que mais negócios ilícitos promoveram e que mais usaram de favoritismo e nepotismo!

Vivemos um momento particularmente interessante, mas também arriscado, em que dois grandes princípios de organização da vida política, o do conflito e o da agregação, se confrontam, não sendo previsível o resultado. Em todas as sociedades em todos os tempos, há sempre conflito e união, há sempre antagonismo e aliança. O problema interessante é o das proporções ou das doses de cada um. Isto é, o império do conflito sobre a união ou do antagonismo sobre a aliança. Sem um princípio de reorganização da vida política, há um evidente risco de deriva, de fragmentação excessiva e de desordem pública. E certamente de estagnação económica e de carência social. E também há momentos em que nenhum dos dois princípios prevalece. Parece ser o caso da actualidade em Portugal.

Há gente a mais à direita. Há gente a mais à esquerda. E o centro está vazio. Mas é aqui que estão as soluções. Em paz, claro.

 

Público, 30.10.2021

sábado, 23 de outubro de 2021

Grande Angular - Estratégias

 Já houve outras modas. Foram os Planos, Nacionais ou Integrados. Sem falar nos de Fomento, invenção portuguesa para fugir à má fama dos planos soviéticos. Os planos mantiveram-se ao longo do tempo, mas hoje estão em perda de importância. Vieram depois os Programas e os Projectos. E finalmente os Observatórios. Criaram-se para tudo, desigualdades, violência, crime, droga, justiça, família, cultura… Há cerca de uma década, contavam-se 85 Observatórios (nacionais, regionais, municipais e sectoriais), geralmente recheados de amigos. Os resultados desta incansável actividade são por vezes interessantes, mas em maioria são medíocres. Os Observatórios dedicam-se à propaganda, mais do que à observação.

Agora, são as Estratégias! A complexidade da vida social, a preocupação em dar a entender que as autoridades têm ideias e a obsessão com a aparência fizeram com que os governos desenvolvessem esta lucrativa actividade: a da elaboração de estratégias. Estas têm todas as vantagens. Parecem inteligentes e competentes. Recorrem a numerosas contribuições disciplinares. Prometem mundos sem responsabilidades práticas. Conseguem calar as reclamações. Sugerem que o destino está sob controlo. Ocupam muita gente a elaborar, escrever e reunir. Permitem a contratação de amigos, familiares, agências de comunicação e empresas de consultoria. Assim é que, para quase todos os problemas nacionais, há estratégias. Pode mesmo dizer-se que a grande estratégia consiste em… elaborar estratégias!

Umas têm meia dúzia de páginas, outras centenas. Com gráficos ou texto. Imagens ou links. Organigramas e calendários. Coligem informação e criam emprego. Saber se as estratégias são eficazes, se são compreendidas, se contentam os destinatários… esses são outros problemas. Saber se os beneficiários (eleitores e contribuintes) querem aqueles fins e respectivos meios, isso é também outro problema.

A maior parte das vezes procuram a resolução de problemas, como a desigualdade social ou a corrupção. Isso é verdade. Mas fazem-no sempre com segundas intenções. Primeira, mostrar que toda a gente na Administração está unida. Segunda, criar uma sensação de dever cumprido. Este último facto é particularmente chocante, num país exímio em formidáveis soluções jurídicas, mas que falham diante da vida.

Estas estratégias são de uma enorme utilidade suplementar: revelam a tendência autoritária e dirigista das tradições políticas portuguesas. O que está a acontecer, a propósito do género, da idade, do sexo, da origem racial, da comunidade étnica, da nacionalidade, da natureza e da alimentação, é simplesmente insuportável. As autoridades fazem suas as ideias mais mirabolantes que se atravessam nos circuitos culturais e nos movimentos sociais, sobretudo das classes médias urbanas com gosto para ditar a virtude.

São excelentes exemplos da vontade de unificar o público e o privado, os modos de vida e as crenças, os comportamentos e as atitudes. As estratégias designam o pecado e a virtude, o Bem e o Mal. As estratégias são simulacros democráticos de ideologias autoritárias e são os sucedâneos dos dogmas religiosos ou laicos.

As estratégias são documentos e textos oficiais, aprovados por quem de direito, através de Resoluções do Conselho de Ministros e decretos-lei do governo. De muitas delas se diz que foram submetidas a debate público, o que quer dizer que se cumpriram uns procedimentos burocráticos destinados a encenar a discussão. 

Vejamos alguns exemplos das estratégias disponíveis. Estratégia Portugal 2030. Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas. Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade. Estratégia Nacional para as Florestas. Estratégia Nacional para o Mar. Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. Estratégia Nacional de Inteligência Artificial. Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas. Estratégia Nacional para os Direitos da Criança. Estratégia Nacional para as Cidades Sustentáveis. Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal. Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho. Estratégia Nacional de Prevenção e Controlo da Dor. Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo. Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar. Estratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço. Estratégia Nacional para a Habitação. Estratégia Nacional de Educação Ambiental. Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde. Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais. Estratégia Nacional para os Pagamentos de Retalho. Estratégia Nacional para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Estratégia Nacional para a Inclusão e a Literacia Digitais. Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Estratégia Nacional de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente. Estratégia Nacional para as Pessoas com Deficiência. Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situações de Sem Abrigo. Estratégia Nacional para o Envelhecimento Activo e Saudável. Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação.

Esta última é, sem dúvida, a jóia. Começa assim: A Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação – Portugal + Igual” (ENIND) assenta numa visão estratégica para o futuro sustentável de Portugal, enquanto país que realiza efectivamente os direitos humanos, assente no compromisso colectivo de todos os sectores na definição das medidas a adoptar e das acções a implementar. Esta abordagem integrada potencia a colaboração e coordenação de esforços, valorizando uma visão comum que simultaneamente tenha um efeito mais estruturante e sustentável no futuro que se pretende construir”. A esta gloriosa entrada em matéria, seguem-se as considerações mais fantasiosas, alucinadas e totalitárias que seja possível imaginar. A ENIND propõe-se eliminar os estereótipos e liquidar os preconceitos próprios de todas as formas de discriminação e desigualdade, de género, de fortuna, de origem racial, idade, cultura, estatuto social… Para esse fim, recorrerá a todos os meios e todas as intervenções nas áreas publicas e privadas, no trabalho, na escola, nas instituições… Enfim, na vida.

Público, 23.10.2021

sábado, 16 de outubro de 2021

Grande Angular - Coreografia orçamental

O debate orçamental, anualmente coreografado, é de reduzida importância nacional. O orçamento é importante, com certeza, mas o debate não. Pouco ou nada se explica à população, a não ser com intuitos demagógicos. Há sessões das comissões onde alguma coisa interessante se passa, às vezes. Há documentos produzidos pela UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) que são de real utilidade. Pouco mais do que isso. O hemiciclo destina-se a encenações ridículas, à berraria habitual, a poses para a televisão e a frases para os jornais. Realmente, pouco se passa. 

Ou antes, o que ali se passa é revelador do pobre estado em que a política nacional se encontra. O que ali se vê são tentativas obsessivas de incomodar os adversários e de se mostrar na televisão. A inclusão no debate da questão das eleições antecipadas é sintomática. 

Os debates orçamentais deveriam desenrolar-se com antecedência. Com informação e estudos de avaliação do que se fez. Com “a questão” do governo acertada na altura própria, não neste momento. Discutir uns benefícios para um grupo de pessoas, sem que a questão da maioria esteja resolvida, faz com que todas as discussões, por mais insignificantes que sejam, tenham sempre uma medida de chantagem: reprovar o orçamento e votar contra o governo. Em Portugal, não se discute orçamento nenhum, discute-se, isso sim, o governo e a maioria.

O que está em causa numa discussão sobre o orçamento? Uma percentagem reduzida da despesa e da receita. A parte flexível do orçamento ou a respectiva margem de folga é mínima. Muito mais de 90% estão comprometidos. É uma margem quase insignificante da despesa que permite, com leviandade, afirmar que o orçamento é de “esquerda” ou é de “direita”. E assim, informar a opinião, da vitória ou da derrota parlamentar.

A quase totalidade do orçamento está comprometida com despesas inadiáveis, direitos adquiridos, pagamento de juros e de dívidas, obras em curso, prestações e amortizações, vencimentos de cerca de 800.000 funcionários e pensões de alguns milhões de pessoas. As Obras Públicas, o funcionamento do Estado (com a Saúde, a Educação, a Segurança Social e as Forças Armadas à cabeça, sem esquecer os elefantes como a TAP, a CP e o BES), as pensões e os juros da dívida esgotam os recursos. A ideia de que se pode discutir muito, fazer alterações, obrigar a cedências e modificar radicalmente a orientação e a “filosofia social” das políticas públicas é falsa ou ingénua. E sobretudo uma fantasia. Quando os partidos aparecem na televisão a defender alterações radicais, mundos e fundos de nova despesa, mais subsídios e indemnizações em volume significativo, sabem que é mentira e não têm qualquer esperança de obter ganho de causa. Na verdade, o que fazem quase se esgota nisso mesmo: aparecer na televisão a fazer exigências. Para depois contar aos fiéis e aos eleitores. No caso de obterem migalhas, poderão voltar à televisão e garantir ao eleitorado que as vantagens, se as houver, foram da sua responsabilidade. Nada de novo.

O sentido da discussão orçamental é o da oportunidade de falar na televisão, de um partido se queixar de que as suas propostas não são aceites, de que as suas sugestões foram cruciais para um qualquer interesse de um grupo de pessoas. E também para se poder, meses depois, garantir ao eleitorado que o que se fez foi por causa das suas insistências e propostas.

Este ano, além da coreografia habitual, tivemos um foco, uma questão central, um enredo dramático: reprovação do orçamento, seguida de desordem política, dissolução do parlamento e eleições antecipadas. Que ninguém duvide: a transformação das eleições em arma política contra os adversários e contra as oposições dentro do partido é um recurso sórdido. O melhor que a democracia tem, as eleições livres, é transformado no seu pior, em arma vulgar, no mais baixo dos argumentos e na chantagem mais rasteira!

As eleições deveriam ser regulares e periódicas, certas como um relógio, previsíveis. Só excepcionalmente, muito excepcionalmente, teríamos eleições fora de prazo, adiadas ou antecipadas. Ao fazerem ameaças com eleições, ao aderirem à ideia de chantagem eleitoral, os democratas e os dirigentes partidários estão a tornar esse gesto e esse momento indignos e desprezíveis.

A democracia presta-se a dezenas de definições, com múltiplos adjectivos. Em geral, são descartáveis e servem para fins de circunstância. A mais simples definição de democracia é a do regime político em que todas as pessoas têm o direito de voto secreto, em eleições livres e regulares, após as quais quem ganha governa e respeita quem perde. Note-se a regularidade, que faz parte essencial da democracia. A eleição é um fim, um processo e um meio. Por isso deve ser previsível e regular. Partidos e eleitores devem saber ao que vêm. Ameaçar com eleições antecipadas, só por fraqueza e grosseria política. Utilizar as eleições antecipadas para trocar as voltas aos adversários, incomodar os correligionários ou obter vantagens indevidas é nefasto. Antecipar eleições implica quase sempre fugir ao debate político, evitar a aliança formal ou arredar a coligação conhecida. Com raras excepções, as eleições antecipadas mais não são do que golpes ou sinais de imaturidade democrática. É até possível que não haja brevemente eleições antecipadas, mas o que está em causa é a sua utilização como chantagem, própria de uma situação anormal que é a de parlamento e governo sem maioria, de arranjos provisórios e de elevação do oportunismo à categoria de arte de governo. Medida excepcional, a eleição antecipada deveria ser um recurso para reorganizar a democracia e dar nova vida ao governo, não para matar adversários.

As direitas estão tolhidas de medo perante a hipótese de eleições antecipadas. As esquerdas estão apavoradas com a hipótese de antecipar eleições. O governo já não quer antecipar eleições. Mas todos falam disso, porque pensam atemorizar os outros. Como conteúdo e estratégia de debate parlamentar orçamental não se poderia inventar pior. São dias maus para a República. E para a democracia.

Público, 16.10.2021 

sábado, 9 de outubro de 2021

Grande Angular - Um apetite insaciável

Os últimos anos da legislatura parecem ficar marcados pela vontade socialista de alargar o Estado, de aumentar o poder do governo sobre a sociedade, de consolidar a autoridade das instituições políticas sobre a sociedade civil e de reforçar a presença do sector público na vida privada, seja na economia, na educação, na saúde, na habitação ou na cultura.

A ascensão das esquerdas socialistas dentro do partido é uma das causas. A existência de vastíssimos recursos financeiros europeus disponíveis para o investimento público é outra. A necessidade de aprofundar as alianças com os partidos ou os eleitores das esquerdas radicais é também uma realidade. O despertar do corporativismo republicano sempre dormente também conta. A volúpia de tantos dirigentes e activistas, descontentes com notícias sobre a ganância dos seus rivais da direita também pesa neste novo estado de espírito e da nação. Finalmente, para acolher estas circunstâncias, a velha crença tão socialista e tão republicana no primado do Estado e no papel do sector público como motor do desenvolvimento.

Há já alguns meses que assistimos às primeiras iniciativas ditas do PRR, Plano de Recuperação e Resiliência. Já se pode confirmar que se trata do maior plano de despesa da história do país. E já foi possível verificar que aqueles fundos ou são gastos directamente pelo governo, ou investidos de acordo com os planos do governo, ou distribuídos pelo governo. A decisão, a iniciativa e a acção pertencem ao governo. Como se sabe que o Estado não tem actualmente competência técnica e científica suficiente, vai necessitar dos contributos empenhados e muito bem pagos de empresas nacionais e estrangeiras, de faculdades e universidades, de laboratórios e organizações que, no conjunto, ficarão dependentes do governo. O sector público e o Estado crescem com este plano. Os sectores privados, civis e académicos, científicos e culturais, ficarão muito mais dependentes do governo. A convicção de que um membro do governo, um director da Administração, um funcionário público ou um encarregado de missão das autoridades, só por serem do sector público, são mais competentes, mais leais, mais sérios, mais produtivos, mais responsáveis e mais honestos, é eterna no PS. A certeza de que os funcionários públicos e os organismos do Estado, assim como os membros do governo, são mais capazes de criar emprego, investir, produzir, gerir e organizar, é inabalável.

Em paralelo, foi aprovada legislação abrindo as portas à censura da informação e da expressão por vias digitais e outras, a exercer por intermédio de instituições públicas em parceria com organismos privados transformados em controladores morais e supervisores da verdade. Reclamados por alguns académicos e intelectuais, sugeridos por academias, apoiados pela União Europeia e pelo governo, foram criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. Depois do salazarismo e dos dois anos do período dito do Gonçalvismo comunista, foram estas as piores iniciativas tomadas em Portugal no sentido do controlo do pensamento e da censura da expressão.

 

Recentemente, a questão das Forças Armadas e da reorganização dos comandos superiores foi outro exemplo do apetite socialista. É verdade que foram os problemas da exoneração e da substituição do Chefe de Estado-maior da Armada que ocuparam a atenção de todos. E com razão, dada a infâmia que o governo preparou. Mas o que realmente sobrou e estava em causa era a tutela do governo sobre as Forças Armadas. Por outras palavras, a governamentalização das Forças Armadas. Isto é, a certeza de que estas últimas servem em primeira-mão e principal instância o governo do dia. As estruturas dos comandos superiores foram de tal modo redesenhadas que parecia defender-se apenas uma concentração de poderes no Chefe de Estado-maior General. A verdade é que esta era e é uma real camuflagem para uma dependência superior do Ministério e do Ministro e para a obediência ao governo.

última questão a surgir com fragor no espaço público foi a da revisão do regime de criação e funcionamento das associações profissionais. Isto é, da lei das Ordens (médicos, engenheiros, advogados, farmacêuticos, economistas, arquitectos, biólogos, contabilistas, despachantes, enfermeiros, dentistas, veterinários, solicitadores, revisores oficiais, notários, psicólogos e nutricionistas). É possível que muitos aspectos da nova legislação mereçam atenção e constituam uma actualização necessária dos termos e dos processos de reconhecimento e de exercício de uma profissão. Como é possível que haja capacidades excessivas de defesa corporativa dos interesses de uma dada profissão. Há seguramente, neste domínio tão impregnado de reminiscências medievais e de mecanismos de “closed shop” ou de “numerus clausus”, situações a corrigir. Mas tenhamos consciência de que o essencial desta legislação, que tresanda a salazarismo e a corporativismo, consiste numa revisão das competências de auto-regulação, de autodisciplina e de parceria entre público e privado, sempre a favor do Estado e do governo. A inclusão de pessoas de fora da Ordem e da profissão favorece evidentemente as instituições públicas, o governo em última análise. A inclusão de um novo órgão de supervisão parcialmente composto por pessoas exteriores à Ordem e à profissão tem o mesmo objectivo, o de aumentar as possibilidades de dependência e tutela por parte do governo. Bem pode o projecto de lei escudar-se atrás da União Europeia, que seria, segundo o próprio texto, quem exigiria estas alterações ao regime legal. Mas só uma pequena parte se explica por essa exigência. O essencial é uma invenção do Governo e do Partido Socialista.

Oque mais acontecerá? Depois da Economia, das Forças Armadas, da Informação, da Cultura e da organização das profissões? Haverá ainda quem esteja interessado em fazer parte de uma sociedade de cidadãos, de homens e mulheres livres e de instituições independentes?

Combinam tão bem a retórica “liberal” da direita e o palavreado “anti-corporativo” da esquerda! Modernização, investimento, desenvolvimento, educação e cultura: sempre o Estado. Na dúvida, a favor do governo.

Público, 9.10.2021

  

sábado, 2 de outubro de 2021

Grande Angular - Um conflito absurdo

Sob a aparência de um “fait divers”, está em curso um dos mais lamentáveis e graves episódios que envolvem o governo, demais autoridades constitucionais e as instituições militares, isto é, as Forças Armadas em geral, a Marinha em particular. 

Raramente assistimos, em democracia, a uma sucessão de acontecimentos tão danosos para os militares. E em última instância para a República. Nos meios de comunicação circulam narrativas que dificilmente disfarçam a sua génese deliberada e maliciosa: ora constroem cenários nos quais os militares desempenham o papel do vilão, ora se esforçam por garantir que nada se passou, que nada aconteceu e que daqui não haverá consequências.A verdade é que o normal processo de substituição de um chefe militar foi degradado, por motivos políticos e por razões menores, a ponto de ferir a honra de quem sai e a de quem entra. O que pretenderam exactamente os autores desta armadilha ou desta provocação não é totalmente visível. É mesmo fenómeno de rara opacidade. Serão simplesmente as autoridades políticas a tentar vingar-se ou exercer represálias sobre quem, mesmo sob reserva, emitiu opiniões próprias, diferentes das do governo? Ou será que os poderes políticos entendem que um militar prestigiado deva revelar vassalagem e que, posto na ordem, causará menos sarilhos a um governo e a partidos feridos com a sua falta de competência?

Será que tudo se pode resumir ao infeliz, mas matreiro, episódio da substituição do chefe de Estado-maior da Armada? Terá havido desleixo? Tratou-se de um incidente benigno no qual um subalterno não esteve consciente dos seus deveres? Foi um encarregado de imprensa que interpretou mal os seus superiores? É um assunto de rivalidades pessoais entre oficiais? Ou de competição entre políticos e militares? De um modo ou de outro, todas estas peripécias podem estar presentes, mas nenhuma diz o essencial, a nenhuma delas se resume este facto de excepcional gravidade.

Este caso só é percebido se o colocarmos no quadro das relações recentes entre civis e militares, entre os políticos e as instituições militares. Por um lado, governantes e partidos entendem que os militares não podem ter opiniões diferentes das suas ou, se as têm, delas devem abdicar. Por outro lado, os antigos chefes militares, entre os quais alguns dos mais ilustres e prestigiados das últimas décadas, foram chamados a emitir as suas opiniões, geralmente diferentes das dos civis do dia. Os nossos governantes não toleraram as opiniões diversas, mas recatadas, dos actuais chefes militares, nem admitiram que os antigos chefes militares fossem chamados ao debate e a dar opinião. Foi o que fizeram e bem, mas o governo não suportou o gesto feito de liberdade e de competência. Há aqui vingança? Há, mas não é o mais importante. Realmente decisivo é o facto de o governo querer vergar os militares, actuais ou antigos, e de pretender simplesmente afastar os que discordam ou têm ideias diferentes das suas. Como se sabe, um elevadíssimo número de antigos chefes militares opôs-se aos planos do governo para reformar as estruturas de comando militar, em gesto que teve também uma intenção implícita: a de apoiar os militares que, no activo, estão obrigados ao recato.

É verdade que, na história política portuguesa, sempre houve políticos e civis que se prostraram diante dos militares. Uns porque são assim, outros porque pretendiam utilizá-los em seu proveito. Mas, a maior parte do tempo, entre políticos civis cultiva-se facilmente o desprezo pelos militares e a complacência benévola por aqueles profissionais que “gostam de armas” e de “brincar às guerras”. Os políticos civis consideram facilmente o ofício militar com desdém ou com ironia paternalista. Assim é que tem sido fácil, entre nós, alimentar esta espécie de civilismo adolescente ou de pacifismo lírico que leva a redução das Forças Armadas a dimensões quase ridículas, assim como à desconsideração da condição militar.

Aextinção do serviço militar obrigatório, há quase vinte anos, imposta por quase todos os partidos políticos (com excepção do PCP), sem debate, em obediência à pressão das juventudes partidárias e na concretização das absolutas prioridades ao social, foi um bom exemplo do oportunismo e da demagogia com que se trata a questão militar. A par deste feito, outros confirmaram a mesma tendência: redução de orçamentos, diminuição de efectivos, anulação de compra de equipamentos e adiamento da modernização tecnológica, para já não falar das políticas de vencimentos, de saúde e de segurança social militares.

Com milhares de efectivos a menos do que deveria ser o mínimo indispensável, as Forças Armadas portuguesas têm geralmente executado as suas missões com distinção. Todas as intervenções militares internacionais das últimas décadas (em África, no Próximo Oriente, nos Balcãs, na Ásia e na Oceânia) trouxeram prestígio a Portugal e saldaram-se por êxitos políticos. Aumentaram a reputação do país e ajudaram com certeza a acção do Estado na ONU, na NATO, na UE, na CPLP, nas organizações ligadas às Migrações e às Polícias.

Nem será necessário referir que, nos últimos anos, a instituição militar foi uma espécie de último recurso em situações especialmente difíceis para as quais foram necessários meios excepcionais, a começar pela disponibilidade, a organização, a disciplina, a prontidão e a eficácia. Foram certamente os casos dos incêndios, da protecção civil, das operações de busca e salvamento e, ainda hoje, de cuidados de saúde e de vacinação.

Os políticos portugueses têm dificuldade em reconhecer a legitimidade das Forças Armadas, que não se limita à subordinação ao poder civil. Tal como na religião, na ciência e na justiça, há, na instituição militar, uma legitimidade própria e autónoma que os políticos têm de respeitar.

Os políticos portugueses, por ideologia, preconceito, ciúme e crença, não conseguem perceber que uma boa colaboração da instituição militar só enriquece a sociedade, o sistema social e o quadro constitucional. Habituaram-se a ver nos militares guardas dos déspotas ou golpistas encartados. Gostam de os ver como espécie em vias de extinção, como inimigos a abater ou como criados de servir. Não conseguem ver o que eles são hoje, defensores da liberdade.

Público, 2.10.2021