As surpresas políticas e eleitorais resultam muitas vezes de um estranho, mas frequente, fenómeno: acreditar em si próprio, crer em tudo o que lhe interessa e convém, aceitar como boa toda a informação que os seus amigos, profissionais, empregados, agentes, admiradores e correligionários repetem todos os dias. Nos jornais, nos canais de televisão, nas estações de rádio, nas revistas e nos cafés ou nos salões: há hoje uma verdade dominante, um espírito do dia, uma voz comum. Verdade ou fantasia é indiferente.
Acreditar em si próprio, nesta acepção, é muito mais do que confiar nas suas virtudes e na sua determinação. É sobretudo acreditar no que os seus admiradores, seguidores e dependentes dizem de si. Ler deliciado, nos jornais, os seus boatos e as suas patranhas, pode ser um exercício de narcisismo interessante, mas o problema é que depressa se torna em vício e rapidamente se acredita no que se inventou.
Nos gabinetes dos governantes ou dos altos funcionários da Administração, são muitas as centenas de encarregados de relações com a imprensa, de porta-vozes e de responsáveis por relações públicas que todos os dias, com empenho, às vezes com competência, se desdobram em informações, contactos e disseminação da informação.
Além destas estruturas directas de divulgação, importa contar as dezenas ou centenas de agências de comunicação que todos dias preenchem os canais de informação, os anúncios, a publicidade paga, as informações não pagas e as “newsletters” que crescem por todo o lado.
Finalmente, há os profissionais “plantados”, genuínos especialistas de informação e divulgação colocados em jornais, serviços de informação, canais e estações, onde acabam por fazer carreira. É verdade que alguns contrariam o efeito Pigmaleão e se tornam independentes ou oficiais de outros mestres. Mas muitos ficam fiéis a quem lhes deu entrada e função.
Os governantes encantam-se com os noticiários das oito, os debates das dez, os jornais de todas as horas, os online de sempre. Com algumas excepções, poucas, a realidade virtual é, para o governo e os socialistas, a realidade verdadeira. Como foi, até há pouco tempo, para o Bloco e o PCP. Para estes dois, agora, a fantasia é outra. Mas ainda fantasia.
É mesmo muito interessante ver como perdem e se perdem os que acreditam nas suas próprias fantasias. Não é imediato, pode demorar, sobretudo se existe um forte controlo da informação, por autoridade, ou uma grande influência na comunicação. Mas, quando a fantasia se torna visível, a queda é radical.
Marcelo Caetano foi seguramente um bom exemplo da crença, não em si próprio, que era reduzida, mas na realidade que os seus amigos criavam. Eram os primórdios da desinformação. Salazar, antes dele, não necessitava de políticas de informação ou disseminação, bastavam-lhe as polícias, a censura, as represálias, as nomeações e as ameaças. Céptico, Salazar acreditava em si, não na sua realidade. Enquanto Marcelo Caetano, conhecedor da sua fragilidade, não acreditava em si, mas na realidade que os seus sequazes criavam.
O Movimento das Forças Armadas (MFA) e o Partido Comunista acreditaram piamente no seu triunfo e na vitória de revolução. Tiveram uma das maiores e mais imprevistas derrotas da história politica eleitoral portuguesa. Em 1974 e 1975, os jornais e a televisão traziam-nos todos os dias uma realidade fantástica, feita de revolução e ilhas socialistas, de conquistas e avanços, de seguidores e apoiantes. Lia-se com apreensão que as greves contra os privados se sucediam. Demissões e ocupação de casas, de explorações agrícolas e de empresas eram às centenas por semana. O saneamento de fascistas, informadores, reaccionários, capitalistas e outros contra-revolucionários progredia heroicamente todos os dias. Tudo, sempre, apoiado por multidões. As eleições de 1975 foram o golpe de misericórdia nas fantasias revolucionárias.
A derrota de Freitas do Amaral, nas eleições presidenciais de 1986, foi a todos os títulos inesperada. Viviam-se já tempos de Cavaco Silva e do PSD. As sondagens e os sinais eram indiscutíveis. E, no entanto…
A derrota de Cavaco Silva, na presidencial de 1996, depois de dez anos como primeiro-ministro e de duas maiorias absolutas, surpreendeu toda a gente, a começar pelo próprio, que tinha enorme confiança em si e na sua realidade.
Os socialistas do Porto jamais pensaram que, em 2002, após mais de dez anos de poder municipal incontestado, perderiam a câmara para um recém-chegado Rui Rio. Nem mais tarde para um neófito Rui Moreira. Aos socialistas de Lisboa nunca ocorreu pensar que, em 2021, os socialistas de Fernando Medina pudessem ser sequer contestados, quanto mais derrotados.
Verdade é que a fantasia é a ultima a morrer. Vivemos, há uns anos, tempos de crença. Os socialistas de António Costa estão absolutamente convencidos de que a realidade que vêem todos os dias nos jornais e nas televisões é verdadeira. Esquecem-se do simples facto de que foram eles que lá colocaram grande parte dos dados e das informações. Que parecem tanto mais verdade quanto as alternativas não existem. O que o PSD, o CDS e o Chega afirmam não tem sustento nem merece confiança. O que o Bloco e o PCP garantem é do domínio do irreal. O que faz com que o Governo e o PS não necessitem de ser rigorosos, nem coerentes, muito menos verdadeiros. O governo e os Socialistas são incapazes de provar o que, sem pestanejar, afirmam sobre o nível de vida dos portugueses (a subir, dizem…), sobre a pobreza em Portugal (a descer…), sobre o emprego (a dilatar…), sobre o investimento privado nacional e estrangeiro (a crescer…), sobre o êxito escolar (a aumentar…) e sobre os cuidados de saúde (a melhorar…). Nas suas melhores fantasias, aumenta o investimento público e privado na economia, na cultura e na ciência. E da dívida nem se fala. Nem da mediocridade do desenvolvimento das duas décadas do século XXI.
O governo é incapaz de criticar o que há de mais negativo na realidade, a não ser que possa dizer que a culpa é dos governos anteriores. Como os socialistas gostam de dizer, desde o inefável Sócrates, a realidade socialista é uma narrativa confirmada pela mais poderosa organização de comunicação desde há muitas décadas.
Como a vida política se resume cada vez mais à intriga e ao processo, ao adjectivo e ao fútil, quase nada de essencial faz parte dos debates actuais. Vai ser uma campanha dura. Nem sequer vamos ter um duelo de fantasias.
Público, 13.11.2021
1 comentário:
Um mundo de sensações e expectativas.
Não há objectivo que uma cativação não possa suster e que avaliações conflituantes não possam em final ver realizado.
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