domingo, 30 de junho de 2019

Grande Angular - Preto e Branco

A decisão das autoridades estatísticas nacionais, a começar pelo INE, de não incluir, no Censo de 2021, perguntas, mesmo de resposta facultativa, sobre as origens étnicas ou “raciais”, parece justa. Não são conhecidos os fundamentos da decisão, mas a conclusão é a mais sensata.
A inclusão destas questões chegou a parecer interessante. Talvez os resultados ajudassem a reflectir e a conhecermo-nos melhor, o que é uma vantagem. Se a finalidade fosse só a de conhecer, até poderiam ser incluídas perguntas de carácter fiscal, alimentar, sexual, sanitário, cultural e desportivo. A informação e o conhecimento são inesgotáveis de interesse e curiosidade.
O problema começa com a privacidade e a dignidade pessoal, valores muito evocados, mas com frequência ignorados. Por que razão desejará alguém revelar, mesmo sob a aparência do anonimato, dados sobre a sua vida, as suas crenças e os seus hábitos? Por que razão quer o Estado saber isso de alguém, pessoas ou comunidades? Em tempos de devassa e de exibicionismo, tudo parece legítimo, mas é bom marcar fronteiras e traçar limites.
Depois, temos o problema, aparentemente técnico, das perguntas facultativas, solução defendida por alguns e já adoptada para a religião. Essas perguntas fazem pensar na famosa frase de Clinton, “fumei mas não engoli”. Ou numa das frases mais repetida em Portugal, “sou católico mas não praticante”. Nem sim, nem não. Sendo facultativas e não sabendo quem não responde, qualquer conclusão é puramente especulativa.
Difícil é o problema da nomenclatura. Que categorias devem ser adoptadas? As quatro, branco, negro, cigano e asiático, como defendem uns? Mas onde estão os mestiços, fazem parte dos brancos escuros ou dos negros claros? E é possível colocar no mesmo plano “brancos” e “asiáticos”? Ou “negros” e “ciganos”? Ora, branco e negro é cor, asiático é continente, cigano é etnia. Um branco ruivo com sardas e um norte-africano ruivo com sardas são diferentes? O “asiático” não inclui dezenas de etnias diferentes? Nomes recentes como luso-descendente, afro-descendente e luso-africano designam exactamente o quê? O que é um afro-descendente? Pode ser branco, negro ou mestiço? Ou só negro? Porquê? E um brasileiro, naturalizado português, filho de pai japonês e mãe mulata brasileira é o quê?
A questão dos mestiços é particularmente interessante. Não há só mestiços de branco e negro. Há também de branco e chinês, ou indiano, ou índio, ou cigano, ou mouro, ou árabe… Como classificar? E se usarmos os mestiços de qualquer das variedades acima, como por exemplo chinês e árabe? Meio negro, meio cigano, é o quê? Só mestiço? Igual a meio branco, meio japonês? E os filhos de brancos e de goeses de Moçambique?
A mistura de conceitos é flagrante. Cor, continente e etnia são coisas diferentes. Há negros asiáticos, australianos, africanos, europeus e americanos. Como há brancos europeus, asiáticos, africanos, australianos e americanos. As misturas de cores e de etnias evocam a religião, a história e a política. Como classificar um Persa, um Curdo, um Arménio, um Pársi, um Hebreu ou um Ismaelita? Um Berbere ou um Núbio? Um cristão branco do Líbano e um branco de Moçambique? Um Banto ou um Zulu? Os caucasianos do Norte de África são o quê? E os Palestinos, os Saarauis e os Chaouis?
Se africano quer dizer nascido em África, teremos de admitir que há africanos negros, mestiços, árabes, brancos, egípcios, berberes, núbios e muitos outros, não há apenas Africanos negros. Se europeu quer dizer nascido na Europa, então há europeus persas, chineses, árabes, curdos, turcos, negros, brancos e indianos, não só brancos.
As confusões entre povo, religião, etnia e comunidade são numerosas, sem esquecer que há ainda quem pense que há diversas espécies humanas e várias raças. Africano, Europeu, Asiático e Americano são origens geográficas, não são raças. Branco, negro e amarelo são cores, não são etnias. Branco é cor, cor não é só negro. Pessoa de cor é toda a gente, branca, amarela e negra. Judeu, Ismaelita, Curdo, Arménio, Berbere, Muçulmano, Aborígene australiano, Maori e muitas outras designações afins introduzem confusões e misturas entre origem geográfica, religião, etnia e cultura, o que só complica as coisas. Colocar no mesmo saco Vietnamitas, Chineses, Japoneses, Coreanos, Cambojanos e Tailandeses é absolutamente errado.
Na questão religiosa, já contemplada com uma pergunta facultativa, o que se fica a saber é nada. Três espécies de cristãos, uma de judeus e uma de muçulmanos não resumem nem definem. As chamadas “seitas”, com centenas de milhares de seguidores, não se distinguem. Jeová, Maná, Mórmones, Sikhs, Hindus, Budistas, Adventistas, IURD e tantos outros não se destacam. Não se sabe o que representam os que responderam, muito menos os que não responderam. 
Ainsistência na separação das origens raciais aumenta as potencialidades de racismo na sociedade. Desperta preconceitos. Conduz a classificações indevidas, com categorias que se sobrepõem à de cidadão. Tentar combater o racismo com a oficialização das categorias raciais é absurdo. Reforçar a designação oficial de raça e etnia vai dar razão aos que nunca se esquecem de dizer que “negro matou”, “cigano roubou” ou “chinês violou”, sem tal referir quando se trata de um branco. 
Fica-se com a sensação de que há várias espécies de motivações para incluir e tornar oficiais estas designações. Uma será a de reduzir a duas grandes categorias, os brancos e os negros, para alimentar as lutas raciais. Outra, a de eliminar as misturas, os mestiços, a fim de definir dois campos em confronto. Uma outra será consequência de uma ilusão, a de que devemos e podemos saber tudo, para tudo planear e de tudo fazer uma política.
A recolha de dados raciais não serve para combater o racismo. Pelo contrário, pode contribuir para o desenvolver, através do reforço de demarcação e pelo incentivo à fragmentação social e racial. As identidades étnicas e comunitárias parecem hoje mais perigosas para os direitos dos cidadãos e para a liberdade do que as identidades nacionais plurais. Uma coisa parece certa: há em Portugal grupos de várias etnias, incluindo brancos e negros, apostados, por razões políticas, em aprofundar as clivagens étnicas entre residentes em Portugal. Por isto, o debate sobre o Censo foi útil.
Público, 30.6.2019 

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Grande Angular - Dinheiro e Poder

É possível que as comissões de inquérito parlamentar e os grandes processos judiciais relativos a casos políticos e financeiros não dêem qualquer resultado prático, nem sequer permitam o apuramento de responsabilidades. Os assaltos, os roubos qualificados, a destruição de empresas, os empréstimos públicos pecaminosos e vários tipos de corrupção ficarão, provavelmente, impunes. Grande parte deles, pelo menos. Os casos de que hoje se fala, a utilização de dinheiro para obter poder e o exercício de poder político para conquistar propriedade e fortuna, serão capítulo importante na história do país. Dentro de algumas décadas, os estudiosos, os escritores e os cineastas terão ao seu alcance centenas de milhares de páginas de relatórios e de processos que apenas servirão para isso: fazer história. Já não é nada mau. Os procedimentos judiciais e o voto das comissões de inquérito pouco ou nada servem para apurar a verdade, mas serão de enorme utilidade para fazer história.
Na verdade, aquilo a que estamos ainda a assistir, já na fase de rescaldo, é um dos maiores episódios de luta pelo poder, de partilha dos dinheiros públicos e de concorrência entre famílias e partidos de que há memória. Ficará na história como mais uma reviravolta na balança de poder. Nos últimos cinquenta anos, é certamente a terceira vez que tal acontece. Primeiro, com a revolução de Abril, destruiu-se o capitalismo português, liquidaram-se alguns grupos económicos e alterou-se a relação de forças entre capital e trabalho. Já nessa altura se deu um sinal de que o capitalismo estrangeiro, apesar de ter ficado sob observação, não seria ameaçado. Poucos anos depois, a vaga democrática restaurou algum capitalismo, desta vez mais dependente do exterior. A Comunidade Económica Europeia, futura União, ajudou. Os processos de revisão da Constituição e das reprivatizações serviram para dar alguma esperança à iniciativa privada, tendo-se construído ou reconstruído grupos económicos e financeiros, cada vez mais dependentes, mas com algumas raízes em Portugal. A crise internacional de 2008, a bancarrota de 2009 e a segunda vaga de privatizações, acompanhadas da meia década de austeridade e de assistência internacional, liquidaram de uma vez para sempre os grupos nacionais ou parcialmente nacionais, destruíram algumas empresas portuguesas ou com bases importantes em Portugal e entregaram a multinacionais próximas (europeias) ou remotas (chinesas e angolanas) o essencial da economia e praticamente todo o sistema financeiro.
que se tem passado com o BES, o BPN, a CGD e o BCP deve compreender-se nesta visão mais alargada, mas os que, no sector privado ou na política, agiram com cupidez, dolo e malícia, só serão totalmente identificados dentro de muitos anos. Do mesmo modo, a acção de alguns governantes socialistas e social-democratas ficará um tempo longo à espera de verdadeira responsabilização. Só então os comportamentos criminosos serão devidamente apontados. Tarde de mais para reparação e castigo, mas sempre oportuno para o conhecimento histórico. De qualquer maneira, é bom notar que não se tratou exclusivamente de corrupção e crime. Muito do que aconteceu, com grandes empresas e vários serviços públicos, assim como parcerias, concursos e regimes fiscais, foi produzido e protegido por meios legais, embora constituísse veículo essencial para a transferência de propriedade, de poder e de dinheiro. Os telefones, a electricidade, o gás, os cimentos, os petróleos e os correios fazem parte deste vasto sector de interesses e de luta das classes, onde a corrupção e o crime são relativamente menores quando comparados com o uso da lei. Na verdade, com ilegalidades se cumpre a lei. E legalmente se fazem verdadeiros golpes financeiros. Por isso, a política tem tanta importância para o poder económico. Há uma espécie de Offshore moral e legal: na política, a noção de responsabilidade é outra.
Não se pense que uns partidos só se interessam pelo dinheiro, enquanto outros só pela política. De todo! A verdade é que os partidos têm interesse no poder político e no dinheiro, só que por ordem diferente. Uns querem apoderar-se da fortuna e da propriedade para consolidar o seu poder político. Outros querem este último para ganhar dinheiro e aumentar a propriedade. Parece simples e rude, mas a verdade é que a luta política é muitas vezes simples e rude.
O assalto fenomenal ao poder e ao dinheiro revela bem estes interesses e este jogo político. O processo actual, diante dos nossos olhos, é o terceiro ou quarto desde o 25 de Abril de 1974. A revolução e a reprivatização das empresas e dos grupos redundaram em monumental banquete de que se aproveitaram, simultânea ou sucessivamente, direita ou esquerda. Incluindo vários ministros, primeiros-ministros, secretários de Estado, deputados, altos funcionários, secretários gerais de partidos, banqueiros, gestores e empresários.
É aliás possível encontrar tendências dominantes de comportamento nos principais partidos políticos e nos seus simpatizantes. O PCP detesta o dinheiro e quem o tem. O Bloco abomina o dinheiro dos outros. O PS aprecia o dinheiro, desde que também tenha. O PSD gosta do seu dinheiro. E o CDS deseja dinheiro, mas não diz.
Assim, os revolucionários e os comunistas querem acabar com os ricos e os proprietários. Querem substituir-se a eles, preferem que seja o Estado o titular dos bens e dos rendimentos, mas que o Estado seja deles. Os reformistas não querem acabar com os ricos, nem com os proprietários, mas querem submetê-los ao poder político e também beneficiar. Uns directamente, tornando-se proprietários, nem que seja ilegalmente. Outros indirectamente, transformando-se em gestores públicos e políticos, se possível legalmente. Os conservadores, nomeadamente os de direita, são mais simples e directos: não querem alterar nada de essencial, querem fazer parte da mesa de quem tem propriedade e fazenda.
Admite-se que os partidos, todos os partidos, tenham também uma visão própria do que se chama o “bem comum” ou o “interesse nacional”. Com certeza. Não se pode ser totalmente cínico a ponto de negar seriedade e virtude aos outros. Mas convém ser realista a fim de perceber tudo quanto está em causa. Pena é que, para apuramento de responsabilidades, os magistrados e os deputados não ajudem. Por isso, confiamos nos historiadores. Será tarde, mas alguma coisa se aprenderá.
Público, 23.6.2019

domingo, 16 de junho de 2019

Grande Angular - A culpa e a reparação

A desigualdade “racial” (e por vezes religiosa, étnica…) é tema infinito. Em Portugal e no resto do mundo. Entre nós, está agora mais vivo do que no passado, o que se fica a dever a intervenções de brancos e negros, africanos e europeus, cristãos e muçulmanos, judeus e gentios. Sem falar em académicos, artistas e políticos. O tema merece-o. Raros são os assuntos tão perenes na história e com opiniões tão diversas.
Na actualidade, as comemorações do 10 de Junho, os discursos dos Presidentes de Portugal e de Cabo Verde, assim como as intervenções de João Miguel Tavares e os escritos de muitos comentadores trouxeram mais uma vez o tema para a ribalta. Donde nunca tinha saído.
Nestas discussões, há temas recorrentes. Portugal é um país racista? Há racistas em Portugal? O colonialismo foi bom ou mau? Os Portugueses devem pedir perdão pelo colonialismo? Os Portugueses devem pedir desculpa pela escravatura? O colonialismo português foi diferente dos outros, mais humano e mais progressista? Ou foi mais violento? Devemos restituir aos respectivos países de origem os bens, nomeadamente artísticos, vindos (comprados, trocados, encontrados, roubados…) de África, da Ásia e da América Latina? Portugal deve reparar as injustiças cometidas desde o século XVI?
Poderia continuar com estas perguntas. Como se pode facilmente prever, as respostas são as mais variadas e contraditórias que se imagina. Compreende-se, dado que estão em causa valores essenciais, entre os quais os de humanidade, dignidade da pessoa e liberdade. Mas não se espere que cheguemos a consensos. Nestes casos, as opiniões não dependem da experiência ou da observação, mas sim da ideologia, das crenças e da situação de cada um. Um africano negro tem, evidentemente, opinião diferente de um africano branco. Um europeu branco e cristão não é muito parecido, nas suas opiniões, com um árabe muçulmano. A este propósito, um católico defende muitas vezes ideias diferentes de um judeu, um islamita ou um hindu. A democracia vive disso, da diferença. Felizmente, pois uma sociedade decente depende do respeito de uns pelos outros.
Nos debates mais recentes, surgiu a ideia de que os Portugueses (ou, dito de modo mais equívoco, nós) devem reparação aos antigos povos colonizados, africanos em particular. Tal reparação pode tomar várias formas. Desde os aparatosos pedidos de perdão, até à restituição de bens. Modos mais sofisticados apontam agora para a indemnização por perdas de vidas ou de bens durante séculos. Mais suaves são as propostas de políticas de promoção da igualdade, de elevação social, de educação ou de apoio selectivo às minorias africanas, naturais de Portugal ou imigradas. Nada parece mais sensato e humano: ajudar crianças e jovens a ter êxito nos estudos, a aprender uma profissão, a “subir na vida” e a obter um bom emprego.
Que é que isto tem de “reparação”? Por que razão se deve designar como reparação o que deve ser feito de qualquer modo? E por que motivos haveremos de ter políticas diferentes para os jovens africanos negros naturais e residentes ou imigrantes? Qual o motivo que conduziria um país, Portugal, a ter um politica social diferente para uma minoria? Os africanos brancos não merecem? Os brasileiros? Os indianos? Os paquistaneses? E os portugueses?
Como é evidente, tudo resulta em boa medida do sentimento de culpa. Ou do remorso dos contemporâneos. Ou de grupos de interesses, brancos ou negros, que aproveitam esta contrição tardia de uns para obter regalias para outros. Na verdade, não há nenhuma razão para beneficiar especialmente certos grupos, minorias ou não, “raciais” ou não, de primeira ou segunda geração, em detrimento de outros. Não é para reparação de injustiças seculares, nem para cuidar dos sentimentos de culpa de europeus desnorteados, que devemos promover políticas de igualdade, ou antes, politicas de combate à desigualdade. Os bairros miseráveis de pobres, de drogados e de marginais de toda a espécie devem ser combatidos, demolidos e substituídos por bairros decentes, não por razões de reparação pós-colonial, mas por motivos ligados aos valores humanos de igualdade. Pode até ser por compaixão e solidariedade, mas não pode ser por privilégio racial ou étnico. Muito menos por penitência.
Alguns dos piores exemplos de bairros socialmente degradados das últimas décadas (Casal Ventoso, Cova da Moura, 6 de Maio, Quinta do Mocho, Jamaica, Bela Vista, S. João de Deus, Aleixo, Cerco…) devem merecer cuidados e enormes esforços de reabilitação por todas as razões sociais e económicas, independentemente do facto de as minorias étnicas representarem 10% ou 90% da respectiva população. Estes bairros são a vergonha de todos nós e não é por estarem habitados por negros, muçulmanos ou ciganos. É por não terem suficiente atenção por parte dos poderes públicos, dos políticos, das empresas, das instituições, das igrejas e dos sindicatos. É por revelarem a incapacidade de prevenção. É por serem a ilustração deste facto singelo que é o de Portugal ser um dos países mais desiguais da Europa.
É possível, é mesmo certo que as taxas de pobreza são superiores, em termos relativos, nalgumas minorias, nomeadamente negras. Mas, em números absolutos, há mais pobres brancos do que étnicos, negros, ciganos e outros. É verdade que há uma componente racial entre as causas e as manifestações de pobreza, desigualdade e degradação social. Mas a pior maneira de combater tais situações consiste em criar privilégios ou excepções. Não se combate uma injustiça com outra injustiça.
Se os Portugueses de hoje devem reparação aos africanos negros, por que não devem também reparação aos africanos brancos que residem cá? Africano é maioritariamente negro, sabe-se. Mas há centenas de milhares de africanos brancos e até de outras cores e origens que devem ser incluídos no lote. Ou são gente de segunda? E quantos mais povos, quantas mais minorias, merecem reparação? E que reparação merecem os Portugueses, tantos Portugueses, por tanta injustiça histórica, tanta opressão, tanta desigualdade e tanta violência?
A ideia de que os Portugueses de hoje têm de reparar o que os de há cem ou duzentos anos fizeram é totalmente absurda! Os Portugueses de hoje têm de tratar dos seus graves problemas de emprego, saúde e educação, assim como de habitação e segurança, de que sofrem muitos dos que cá vivem, sejam de que “raça” ou origem forem, por eles, por nós, não para desculpar ou redimir almas errantes de ambiciosos contemporâneos.

Público, 16.6.2019 

domingo, 9 de junho de 2019

Grande Angular - Desigualdade e serviço público

Pagos ou gratuitos, subsidiados ou comparticipados, regulados ou protegidos, os serviços públicos deveriam ser o ponto crítico da acção dos governos, de qualquer poder preocupado com o bem-estar dos cidadãos. Públicos em exclusividade ou em concorrência, privados ou em concessão: por todos os serviços o Estado é responsável.
Por causa da demagogia e da bancarrota dos governos socialistas de José Sócrates; graças à austeridade e ao desequilíbrio social dos Governos de direitas de Passos Coelho; e em consequência da nova austeridade e da renovada demagogia do governo de esquerdas de António Costa, a verdade é que a situação dos serviços públicos se deteriorou de modo visível. Como se nota nos transportes, correios, saúde, educação, segurança social ou atendimento de registo civil e equiparados: em todas estas áreas se tem notado um declínio acentuado e se multiplicam as razões de queixa.
Talvez na justiça se verifique uma melhoria na organização e na eficácia, visível em dados estatísticos. Com excepção da grande finança, do colarinho branco e da corrupção, é possível que na justiça de todos os dias, cível, comercial e de família, haja progressos… 
Recentemente, um importante relatório de actividades da Provedora de Justiça chamou a atenção das autoridades para o facto de as queixas que recebe (milhares por ano…) terem como motivo principal a falta de resposta dos serviços, especialmente da Segurança Social. A própria Provedora não recebe respostas aos seus requerimentos.
O Estado protege os funcionários, por vezes mal, mas melhor do que os restantes cidadãos. Regula mal, as suas funções são quase sempre transformadas em acções repressivas. O Estado gosta de intervir, controlar e dominar. Gosta de ser patrão e dono. Não gosta de concorrência. Interessa-se pelas funções técnicas, mas menos pelos cidadãos. O Simplex foi, em seu tempo, um grande avanço, mas deixou de o ser porque se preocupa com os serviços, não com as pessoas.
Entre todos os males dos serviços públicos, avultam as filas de espera e os atrasos nas respostas. Ambos são factores maiores de desigualdade social. Em situações de aparente igualdade, os mais poderosos e os mais ricos conseguem sempre soluções, com luvas ou sem elas, mas de favor, evidentemente.
Notam-se em particular os atrasos no atendimento a pessoas débeis: nas marcações de consultas, de exames, de juntas médicas e de cirurgias, assim como na obtenção de documentos da Segurança social, da Autoridade tributária, da Caixa de pensões e das repartições de identificação. Demoras igualmente nas respostas a requerimentos sobre reformas, subsídios de desemprego, baixas de doença e outros serviços. Ou ainda obstáculos nas respostas a necessidades de cidadãos que não têm acesso a meios informáticos.
Nos últimos tempos, têm estado sob especial atenção as demoras para o Cartão do cidadão, o passaporte, os subsídios de desemprego e a atribuição de pensões e reformas. Há filas de espera no SEF e nas “lojas do cidadão” desde as duas ou três da manhã. Há gente que, antes de ir trabalhar, dorme no carro, de madrugada, à beira das instituições. Há pessoas que chegam de avião, de Inglaterra, e vão do aeroporto para as bichas onde estão os pais desde as quatro da manhã, a marcar lugar, para os passaportes! Há subsídios de desemprego que podem demorar até seis meses para serem concedidos. Há pensões de invalidez e reformas que podem demorar até dezoito meses para serem pagas.
Nos hospitais, até nas urgências há filas de espera que chegam facilmente às seis horas. A espera por marcação de consulta ou de cirurgia pode ultrapassar os seis meses, sendo que são conhecidos casos de mais de um ano. Num dos maiores hospitais do Serviço Nacional de Saúde, em Lisboa, um jovem com ruptura de menisco, a quem é prescrita uma ressonância “com prioridade imediata”, tem de esperar um ano. É frequente, nos serviços de saúde, apesar de marcação prévia, não haver atendimento porque o médico faltou e os serviços não avisam os utentes.
Muitas filas de espera ocorrem nas piores condições imagináveis. Há algumas que se organizam de madrugada, ao ar livre, qualquer que seja o clima, como por exemplo em Centros de Saúde que abrem às 8.00 ou 9.00 da manhã e onde há gente à espera desde as 5.00 ou 6.00. Há filas de pé, durante horas, ao sol, no Verão, com mais de trinta graus de temperatura, na Penitenciária de Lisboa, assim como noutras prisões. Como há filas de várias horas e centenas de pessoas, desde as 4.00 ou 5.00 horas, diante dos serviços de Estrangeiros, qualquer que seja o tempo que faz cá fora. Parece que os serviços sociais são indiferentes às condições mínimas de conforto de quem já está fragilizado ou em situação de carência. A prontidão e a eficácia deixam muito a desejar, mas a desumanização e a indiferença são ainda mais chocantes.
Destas, quem mais sofre são evidentemente as classes com menos meios. São elas que perdem tempos infinitos, com deslocações difíceis, com esperas longas e por vezes inúteis. Como também são estas as pessoas que têm dificuldades em arranjar apoios para cuidar de filhos menores ou de pais e avós doentes, enquanto perdem horas e dias em filas de espera. Em todas estas situações, o factor constante e mais impressionante é o da desigualdade. O atraso, o desconforto, a perda de tempo, o silêncio, a burocracia e a falta de resposta atingem sempre mais quem não tem meios nem conhecimentos.
Uma questão, aparentemente irrelevante, tem dimensão superior à que se julga: a iliteracia informática e tecnológica de uma parte importante da população, sobretudo classes trabalhadoras e classes médias baixas urbanas, os mais idosos, doentes, reformados e pensionistas, residentes do interior ou rurais. Muitas pessoas não têm possibilidade de aprender ou de lidar com as novas tecnologias, incluindo telemóveis, SMS, e-mail, NET, redes sociais e outros. Os sistemas generalizados na Administração valorizaram (e muito bem) estes novos métodos, mas deixaram para trás grande número de pessoas que, sem descendentes, empregados ou colegas, ficam na impossibilidade de aceder e beneficiar destes novos métodos de comunicação, marcação de consultas e reuniões, adesão a procedimentos modernos, contestação de questões financeiras e fiscais e resolução de problemas a partir de casa.
A verdadeira modernidade da Administração, com que tantas autoridades e tantos políticos gostam de rechear os seus discursos, não é a da tecnologia, é a da humanidade e a da igualdade.
Público, 9.6.2019 

domingo, 2 de junho de 2019

Grande Angular - Agora é a sério

Quem disser que as eleições anteriores foram a feijões, não anda longe da verdade. Com as próximas, todavia, estaremos a falar de coisas sérias. Por mais que os os candidatos queiram fazer demagogia, como fizeram magistralmente durante a campanha europeia, não vai ser possível evitar os grandes temas e as escolhas difíceis.
Todas as eleições legislativas são decisivas. As próximas não escapam ao lugar-comum. Mas têm qualquer coisa mais. As esquerdas, que há quatro anos escaparam às questões de doutrina, têm agora de escolher e tomar decisões prévias sobre o que é importante. Na verdade, a solução de governo encontrada há quatro anos foi um acaso proporcionado pelos resultados e inventado numa noite de insónia, graças à ousadia oportunista do PCP, à disponibilidade sonsa do BE e à ambição escorregadia do PS. Como é sabido, nenhum partido teve de anunciar ao que vinha.
Agora, é diferente. O eleitorado não aceita que os partidos se escondam novamente e espera saber quem faz coligação e quem está disponível para entrar no governo. Nestas eleições, as esquerdas vão ter de dizer o que querem da futura União Europeia, da NATO e das Forças Armadas. Estão obrigadas a esclarecer o que preparam para o Serviço Nacional de Saúde, para a ADSE e para a acumulação de funções públicas e privadas por parte dos médicos. Têm de se exprimir sobre as Parcerias Público Privadas, as passadas e as futuras. São obrigadas a desvendar as suas políticas relativas ao investimento privado nacional e estrangeiro.
O que precede é a substância. Mas há mais do que isso: o compromisso e a política de alianças estão a partir de agora no centro das realidades. Está a chegar a altura de sabermos se as extremas-esquerdas, o PCP e o Bloco, estão ou não em vias de se render à democracia e de renunciar aos seus valores tradicionais de combate à iniciativa privada e à liberdade individual, de ditadura da classe trabalhadora e de estratégia de luta de classe contra classe.
Chega também o momento de o PS, se for honesto, revelar se está disposto a mudar a sua política tradicional, a de uma esquerda democrática central e de equilíbrio, substituindo-a por uma estratégia de união ou unidade das esquerdas e de convergência com os comunistas e os bloquistas. O que não será novo. Em França, nos anos 1930, a Frente Popular deu o exemplo. Mais tarde, Mitterrand fez algo de parecido nos anos oitenta, com o que liquefez a extrema-esquerda. Em Portugal, Jorge Sampaio e o chamado ex secretariado tentaram, em seu tempo, a frente comum e a aliança de esquerda. Mário Soares que, toda a sua vida, se distinguiu pela vontade obsessiva de se manter sozinho, sem os comunistas, soçobrou nos últimos anos da sua vida e, por causa da maioria de direita e da austeridade da Troika, também defendia a frente unida. Estará o PS disponível para abandonar o seu papel de principal charneira da política e da sociedade? Ou está mais interessado em enfileirar-se nas hostes da guerra das classes?
Nas direitas, os dilemas também abundam. Com mais experiência de alianças, não seria difícil ao PSD e ao CDS definir um caminho. Além disso, na inexistência de uma extrema-direita com peso no Parlamento ou nas ruas, também não seria difícil definir uma estratégia com sentido e futuro. O problema é que as direitas estão derretidas. A desorientação estratégica é enorme. Os problemas pessoais abundam. As relações entre os dois partidos estão no seu ponto mais baixo. Ora, seria realmente importante definir programas e reorientar a estratégia. O que é, finalmente, a direita portuguesa? Ou antes, as direitas portuguesas? Na ausência de líder incontestado, as questões doutrinárias e estratégicas ganham evidente importância. As direitas são liberais? Neoliberais? Ultraliberais? Mais democratas-cristãs ou cristãs sociais? Preferem a Europa, o cosmopolitismo, o Atlântico ou o nacionalismo?
Pode pensar-se que se trata de divagações ideológicas ou de problemas teóricos, tudo inutilidades quando o que está em causa são políticas práticas. Pois que assim seja, mas a verdade é que o futuro das direitas em Portugal depende destas definições e das respectivas escolhas. E se as direitas não souberem começar a resolver a sua vida doutrinária, podem ter a certeza de que a fragmentação espera por elas e de que todas as pulsões ditas populistas e nacionalistas esperam por essa oportunidade.
É de qualquer maneira muito interessante ver os destinos cruzados. Enquanto na esquerda se vai decidir se a extrema-esquerda (existente) é ou não integrada no sistema, na direita vai-se ver se a extrema-direita (inexistente) tem ou não uma oportunidade. Na esquerda vai-se ver se a extrema-esquerda vence a democracia ou é por ela derrotada, na direita vai-se ver se a extrema-direita tem uma oportunidade para crescer e se desenvolver. É quase um paradoxo: a unidade da direita pode salvar-nos da extrema-direita, enquanto a unidade das esquerdas pode-nos transformar em reféns da extrema-esquerda.
Estamos a entrar num ciclo perigoso da nossa vida colectiva. Depois de mais de trinta anos sem bipolarização entre a esquerda e a direita, aproximamo-nos do dia em que o dilema alternativo e o confronto radical entre esquerdas e direitas, entre público e privado, entre capital e trabalho e entre autoridade e liberdade, constituirão o eixo principal da política. Se assim for, ficaremos a perder seguramente.
Enquanto quase toda a gente, na Europa e alhures, tenta fazer aproximações e fugir das polarizações, em Portugal, mais do que nunca desde há quarenta anos, está a tentar dividir-se o pais em esquerda e direita! É mau caminho! É perigoso! Há umas semanas, quando vimos os deputados de esquerda, em roda, a cantarolar a “Grândola” no hemiciclo parlamentar, foi dado um sinal. Parece uma anedota, parece risível, mas não é!
Se com esta divisão e este confronto, a extrema-esquerda se rendesse à democracia ou desaparecesse eleitoralmente, estaríamos diante de uma obra-prima política. Se, em vez disso, a esquerda democrática se deixa encantar pelas novas versões da política do confronto, da luta das classes sem tréguas, de absorção pelo Estado de toda a iniciativa social, económica e cultural, então estaremos diante de um novo e monumental desastre da política portuguesa.
Público, 2.6.2019