domingo, 30 de outubro de 2011

Luz - Comboio de Vila Real à Régua, Linha do Corgo, 1983

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Esta linha está hoje “fechada para obras” há vários anos. Já se percebeu que nunca mais abrirá. Nos últimos anos em que funcionou, já não era esta preciosa locomotiva a vapor, mas uma automotora a diesel. Este percurso era fantástico, quase tão espectacular como o da Linha do Tua, igualmente fechada. Fiz este trajecto centenas de vezes. Por aqui se ia de férias, ao Porto, a Lisboa, para o mundo... Nas descidas, o comboio acelerava à velocidade estonteante de 50 km à hora. A subir ou em plano, o normal eram uns vinte a trinta à hora! Os 24 km de Vila Real à Régua percorriam-se em cerca de uma hora, com seis apeadeiros. Os soldados que viajavam neste comboio, atrevidos, várias vezes saltavam da composição, corriam uns metros e voltavam a entrar. Faziam-no para apanhar uvas e impressionar as raparigas!
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Actualização em 10 Dez 11
ERRATA
A 30 de Outubro deste ano, publiquei, no Sorumbático e no Jacarandá, uma fotografia de uma linha de comboio, em zona de montanha, com carris de via reduzida, com locomotiva ao fundo e algumas pessoas ao lado da via. O título que lhe dei foi: “Comboio de Vila Real à Régua, Linha do Corgo, 1983”.
Entre a correspondência que então recebi, conta-se a observação de Dario Silva. Dizia ele, no essencial, que não podia ser na linha do Corgo. Este leitor conhecia tudo de comboios em Portugal e garantia que aquela locomotiva não podia ter circulado em Portugal.
Fiquei impressionado com os argumentos. Procurei nos meus arquivos (ainda não completamente catalogados e arrumados como deveriam estar... mas não perdem pela demora!) e finalmente encontrei. Dario Silva tinha toda a razão. A fotografia foi feita em 1971, no Peru, na linha de comboio que vai de Cuzco a um apeadeiro perto de Machu Pichu (o último troço da viagem era feito, naquela altura, em camionetas). A
qui fica a rectificação, com um agradecimento e uma vénia ao meu correspondente Dario Silva, que, aliás, me brindou com várias mensagens e documentação própria de uma verdadeira enciclopédia ferroviária!”.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

«Roriz, História de uma quinta no coração do Douro»

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Gaspar Martins Pereira / Edições Afrontamento, 2011

ÀS VEZES, dava jeito falar de livros que não foram escritos por amigos; editados ou produzidos por amigos. Poderia falar, não com mais liberdade, que é sempre a mesma, mas com mais crédito: ninguém pensaria que digo o que digo por amizade.

Este é um caso desses. O Gaspar Martins Pereira, o João Van Zeller e membros da família Symington estão entre os meus amigos.

Feita esta declaração de interesses, tenho a dizer-vos que este livro é maravilhoso. Por isso não só felicito o seu autor e os seus editores e produtores, como lhes agradeço. Prestaram um excelente e raro serviço à História, ao país e ao Douro.

Permitam-me distinguir, evidentemente, o historiador Gaspar Martins Pereira. O trabalho dele, a meio caminho entre a História social, a História económica a História local, com longos devaneios por outras narrativas, incluindo políticas e familiares, é raro no nosso país. Ele soube pôr em prática o melhor estilo e os melhores métodos da monografia local, com fortíssimas implicações regionais e nacionais, o que não é coisa fácil. Fez tudo isto dentro de uma tradição que ele continuou, enriqueceu e desenvolveu: a da investigação sobre a região do Douro, sobre as quintas do Douro, sobre o Vinho do Porto, sobre o comércio do vinho do Porto. Os mais importantes contributos contemporâneos para esta história devem-se a ele, às equipas que ele animou, ao trabalho que fez, às instituições que criou ou ajudou a criar, tanto no Porto, na Universidade, como na região, designadamente o Museu do Douro. E reparem que não é pouca coisa. Douro e Vinho do Porto representam o mais importante produto do comércio externo português durante talvez dois séculos. Sem eles, Portugal seria hoje diferente.

Neste livro, o Gaspar conseguiu um feito extraordinário: o de quase transformar uma quinta numa pessoa! Por isso eu digo, no breve prefácio, que ele fez biografia de quinta, o que não é comum. Vários exemplos conhecidos da mesma arte ficam-se frequentemente pelas longas listas e elencos de custos e preços, de produções e proprietários. Neste caso, há listas e elencos, pois claro, com minúcia e rigor, mas há sobretudo um protagonista, em volta do qual evoluem e giram personagens e famílias, dramas e alegrias, durante séculos.

A Quinta de Roriz é aqui tratada como se fosse uma jóia de família, o que aliás talvez seja mesmo. Há jóias que passam de mãos em mãos, de gerações em gerações, que por vezes voltam à mesma família, que depois surgem na posse de improváveis proprietários para novamente regressar a nomes conhecidos. Há jóias que provocaram divórcios e casamentos, nascimentos e dramas, alianças e combates. Há jóias que tornam famosos os que as possuem, há jóias às quais vale a pena dedicar atenção, meios e esforços. Nesse sentido, a Quinta de Roriz é uma jóia de família. Que se cruzou com várias famílias e assim vai continuar a acontecer. Até porque as próprias famílias acabaram por se cruzar entre si.

Deste livro, muitas seriam as referências obrigatórias, mesmo numa breve apresentação como esta. Mas ficar-me-ei por alguns pontos concretos. Este é um exemplo da continuidade de uma exploração (não poderei dizer empresa no sentido literal do termo) através dos séculos. Não há assim tantos casos conhecidos. Esta quinta beneficiou de diferentes factores que lhe asseguraram essa longa vida.

O primeiro, o seu equilíbrio, a ecologia, a localização e a paisagem. Os seus contornos, como exploração, ajudaram. A ninguém ocorre desmembrar ou fracturar a quinta.

O segundo, a sua excepcional beleza. Poder-se-á dizer que a estética não é um grande valor para a economia ou a produção. Mas a verdade é que tenho a certeza (e conheço testemunhos) que a sua beleza permitiu a criação de relações muito especiais, nomeadamente sentimentais, entre a Quinta e os seus proprietários.

O terceiro foi uma boa estrela da Quinta. Esta teve sorte. Quase todos os seus proprietários se esforçaram por manter o melhor e melhorar o possível. Um sábio jogo entre tradição e renovação, entre os costumes e a inovação, fez com que a Quinta, mau grado exigir um enorme esforço, nunca se transformasse num fardo. Quem a teve, gostava de a ter e respeitava-a. Eis uma atitude fundamental quando falamos de agricultura, de produção vinícola e de património construído e ecológico.

Em conclusão: o livro que temos diante de nós ilustra da melhor maneira a continuidade da exploração, da entidade “quinta”, graças à capacidade de inovação e de actualização. Sem esquecer o factor sentimental que tantas vezes liga os homens às coisas, às pedras e à terra. E ficámos a perceber melhor que há uma espécie de quinta diferente de todas as outras. Há quintas, há fazendas, há herdades, há montes... Depois, há as quintas de vinho. Que noutros países se podem mesmo chamar château ou domaine! A quinta de vinho é especial. Pela organização, pelo produto, pela continuidade da produção, pela mitologia e pelo sentimento. Este livro é um belo exemplo e uma capaz demonstração do que digo.

Outra referência deste livro diz respeito, como menciono no prefácio, às ligações entre portugueses e estrangeiros, entre portugueses e ingleses, entre a lavoura e o comércio, entre a produção e a exportação. Como se sabe (no Norte, sabe-se de certeza, no Sul e em Lisboa, não é seguro...) o Douro e o Vinho do Porto foram sempre motivo de lutas e preconceitos, de contrariedades e contradições. Sob muitos aspectos, nada de novo. Quotas de exportação, preços, fidelidade de contratos, margens de lucro e qualidade do produto foram e são frequentemente motivo de oposição. Aqui também. Com algumas particularidades. Por exemplo, os comerciantes e exportadores produziam pouco, visitavam pouco a região. Ou então o facto de uma cidade a 100 quilómetros de distância ter obtido o nome do produto, o entreposto, o armazém, o prazo de envelhecimento, a sede das empresas, o emprego e as mais valias! Estes são factos reais, não apenas preconceitos. Finalmente, a circunstância de a parte mais importante do comércio e da exportação estar entre mãos de estrangeiros, nomeadamente ingleses. Sobre estas diferenças, construíram-se mitos e querelas ainda hoje recordados e por vezes acordados. Diz-se que o vinho do Porto foi obra dos portugueses, dos durienses e dos lavradores; e que os ingleses apenas souberam aproveitar o que aqueles fizeram, inventaram e trataram. Mas também se diz que foram os ingleses os verdadeiros criadores do vinho do Porto e que os portugueses, pobres e atrasados, apenas souberam produzir o que lhes mandavam. Esta querela, como tantas outras, é inútil e estéril, mas anima as discussões no Douro e no Porto, nos cafés e na Feitoria! Na verdade, o vinho do Porto, o maior contributo material português para a história da humanidade, é resultado do encontro, da convergência, da oposição e da cooperação entre aqueles todos. Produtores, lavradores, comerciantes, exportadores, portugueses, ingleses e holandeses acrescentaram algo e inventaram alguma coisa para o fabrico deste vinho. E desta região.

A este propósito, uma última referência, talvez não explicitamente inscrita neste livro, mas que está implicitamente da primeira à última página: a força do lugar, a força do sítio, a obra da região. A construção e a vida desta quinta mostram bem que o vinho, sobretudo o de muita qualidade, não é simples fruto da Natureza. É obra do homem. Dos trabalhadores. Dos pedreiros. Dos enólogos. Dos lavradores. Dos proprietários. Dos comerciantes. Dos adegueiros. Dos agrónomos. Dos consumidores, enfim. Por isso, ao longo dos séculos, o vinho foi mudando e adaptando-se. Por isso, o vinho e as quintas foram mudando as terras e a região. Foram feitos muros e socalcos. Fizeram-se plantações. Transformou-se a paisagem. Mas, em troca, a paisagem mudou os homens, criou-lhes hábitos, modelou as suas vidas. Em grande parte, a história desta quinta, tão bem contada neste livro, revela, como se de uma câmara escura se tratasse, a história de uma região, de um vinho e de um povo. Os que fizeram este vinho acabaram por ser feitos por ele. E as quintas estão no centro deste processo de união entre o trabalho e a natureza, entre os homens e as terras.

Uma vez mais, felicito e agradeço ao Gaspar Martins Pereira, ao João Van Zeller, à família Symington e às Edições Afrontamento o que hoje nos ofereceram. Bem hajam.

E termino com duas notas pessoais. A primeira, para saudar os novos proprietários da Quinta de Roriz, a família Symington. Conheço-os do Douro e do Porto. Fui recebido em casa deles, explicaram-se o que faziam, mostraram-me várias das suas quintas. Tenho a certeza que a Quinta de Roriz fica em boas mãos. Uma vez, falando com Peter Symington, noutra quinta maravilhosa, a Quinta do Vesúvio, conversávamos sobre as relações entre portugueses e ingleses. A propósito de alguns preconceitos existentes nas relações entre os dois, nunca esquecerei o que ele me disse, a certo momento, já com um ligeiro sotaque do Porto: “Ó António, nós já somos da prata da casa!”.

A segunda é quase um arrependimento. Por falta minha, nunca visitei a Quinta de Roriz a convite do João Van Zeller. Várias vezes ele tomou essa iniciativa, mas eu, por motivos vários, nunca tive a oportunidade de aceder. Do que me arrependo. Mas a verdade é que, por duas vezes, visitei a Quinta sozinho, por meus próprios meios e iniciativa. Nos anos setenta e nos anos oitenta. Uma vez, andei por lá sozinho, a ver e fotografar. Outra, seguido por amável caseiro que me mostrou parte da vinha. Não entrei dentro de casa, que apenas conheço de fotografias. Mas tive ocasião de verificar o que se dizia: que a Quinta de Roriz tem qualquer coisa de doce e mágico. É realmente de uma beleza inexcedível! E, uma vez mais, não deve o que é apenas à natureza e ao local. Deve também muito, quase tudo, aos homens e as mulheres que a fizeram!
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Lisboa, 26 de Outubro de 2011

domingo, 23 de outubro de 2011

Luz - Califórnia, 1978

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Não consigo recordar o local exacto desta fotografia. Pode ter sido num dos vários sítios de concertos ao ar livre que visitei: Seattle, San Francisco, Los Angeles... Já não eram novidade absoluta, Woodstock estava longe. Mas ainda eram impressionantes. E, apesar da erva, havia um ambiente de inocência... Dois pormenores dão nas vistas: a posição dos braços, em arco, à volta dos joelhos; e a quantidade inacreditável de blue jeans... Parece um uniforme!

domingo, 16 de outubro de 2011

Entrevista ao «Expresso» de 8 Out 11

Esta semana, a Fundação Francisco Manuel dos Santos, presidida por António Barreto, apresentou um estudo, encomendado à Escola Nacional de Saúde Pública, sobre os custos da assistência médica em Portugal. O estudo foi realizado por uma equipa dirigida pelo Professor Carlos Costa. Convencido de que o sistema de saúde não sobrevive se for totalmente universal e gratuito, Barreto avisa que é preciso racionar os cuidados.

- Neste momento, sempre que se fala em Saúde fala-se em cortes. A obsessão com os custos não pode ser perigosa?

- Perigoso? Perigoso é não se falar. Nos últimos 20 ou 30 anos pensámos sempre na factura como uma coisa secundária. Estabeleceu-se o princípio de que quando alguém fala nos custos está a ser economicista. Detesto este termo, porque não olhar para os custos significa obrigar o povo a pagar. E agora damo-nos conta que o povo está esganado e de que os sistemas não aguentam.


- Como é que um povo que não é rico é tão displicente com os custos?

- A maior responsabilidade é das elites e dos dirigentes partidários. Infelizmente, a democracia portuguesa teve alguns maus resultados e um deles foi os políticos gastarem o que não é deles, mas do povo. E o povo gosta. Se vê um hospital ou uma escola melhores, gosta. Mas, de repente, apercebeu-se do preço.

- A factura está a ser muito pesada e não se vê agitação social. Reina a apatia?

- Numa situação de conflito social muito difícil, como a que estamos a viver, obviamente é possível que ocorram tumultos, mas não é necessário. Não gosto das pessoas que, como muitos dirigentes políticos, estão sistematicamente a anunciar que vai haver tumultos. Muitas vezes, a situação de dificuldade leva as pessoas não a vir para a rua fazer tumultos mas a tentar resolver a sua vida, e isso leva ao gasto de muita energia e concentração.

- O Serviço Nacional de Saúde (SNS), tal como o conhecemos, chegou ao fim?

- É minha convicção que a organização do sistema de saúde tem de evoluir. Não há no mundo sistema que aguente se for totalmente universal e gratuito. Para salvar o sistema é preciso introduzir fatores de compensação social. Não vejo razão para que a classe média e média alta se sirva do SNS 100% gratuito e universal.

- Devem pagar mais taxas?

- Há muitas maneiras. Olhe-se para Espanha, França ou Bélgica, onde as pessoas com mais rendimentos pagam mais ou pagam tudo porque os impostos não chegam para os custos do Estado social. Chegámos ao ponto de que não há recursos nacionais e nem se pode dizer aos ricos que paguem mais — isso não chega.

- Vamos ter de escolher quem se trata?

- Trata-se toda a gente. A ideia de que a partir de agora os pobres vão morrer e os ricos vão sobreviver faz parte da demagogia política e é detestável. Ninguém em Portugal fica fora dos cuidados de saúde públicos seja em que circunstância for, e a isto chama-se universalidade. Mas vamos ter de escolher a quem é que esses serviços são prestados de forma gratuita e a quem é que são prestados com taxas moderadoras, comparticipação de custos ou de preços. Como tem de haver também outras medidas. Porque não há utilização mais intensiva de genéricos? E da unidose? Porque há organizações poderosas que ganham mais assim.

- E os sucessivos governos têm cedido...

- Todos. Eu já tomei unidoses nos EUA, na Rússia soviética e na Inglaterra. Porque é que em Portugal não se pode fazer? É necessário que o poder político tenha mais firmeza sobre os lóbis e não tem tido há 30 anos. Temos de olhar para os custos. Por exemplo, um bloco cirúrgico deve trabalhar 14 horas por dia e a maioria em Portugal trabalha cinco ou seis porque os médicos estão em duplas funções. Há promiscuidade, não há controlo suficiente sobre o trabalho e há pouca dedicação exclusiva nos hospitais públicos.

- É preciso criar uma barreira entre o sector público e o privado?

- Portugal fica a ganhar se em poucos anos houver uma separação mais nítida.

- E o SNS terá condições para manter melhores profissionais? No privado os salários são muito superiores...

- Não é para todos. Não há tantos hospitais privados como isso. Se houvesse Saúde privada suficiente para contratar todos os médicos do público e lhes pagassem o dobro, os médicos iam todos para lá, mas os doentes não, e os privados ficavam sem clientes e não tinham negócio.

- Mas muitos especialistas dizem que o SNS está a ficar depauperado...

- É um mito urbano. É verdade que há casos de hospitais privados que contrataram dezenas de médicos do sistema público. Mas dado que o nosso número de médicos é superior à média dos outros países, é minha convicção absoluta que se os médicos trabalharem em exclusivo no privado ou no público não existirá problema. Esse rumor é defendido por quem quer manter a promiscuidade e ter dois empregos em full-time.

- Os cortes podem pôr em causa a qualidade e afectar, por exemplo, os excelentes índices de mortalidade infantil?

- A mortalidade infantil foi combatida de uma maneira muito eficiente porque se gastou um pouco mais para se obter esses resultados. Conseguiu-se com organização, cuidado humano com as pessoas e com uma delegação de funções da política na Ciência. Quem organizou isto foram os médicos, não os políticos.

- Mas não há sinais preocupantes, por exemplo, a nível dos transplantes, quando o ministro diz que, se calhar, não há riqueza para manter os números actuais?

- Porque é que damos de barato que para se fazerem transplantes tem de se pagar mais aos médicos? Porque é que os médicos não estão disponíveis para só receberem metade em incentivos?

- E acha que aceitam?

- Se não aceitarem, então porque se critica o ministro em vez de se criticarem os médicos? A opinião pública foi muito condicionada pelo interesse dos médicos.

- Há um lóbi forte dos médicos?

- Não sei se é dos médicos todos, mas de alguns, certamente. Agora vamos elevar o debate: alguém tem dúvidas de que o racionamento em Medicina é uma necessidade no mundo inteiro, não apenas em Portugal? É a mais séria discussão a ter sobre a Saúde.

- Como é que se diz a uma pessoa com cancro que não pode ter um medicamento que lhe prolonga a vida porque tem 80 anos e, economicamente, não é viável?

- Não sei. É um drama terrível. Mas não tenho dúvidas de que nada é ilimitado. No mundo inteiro discute-se o racionamento. Em Portugal não, porque o país tem esta mitologia terrível de que discutir os custos é economicismo. Em Inglaterra discute-se quem faz hemodiálise.

- Mas quem tem dinheiro fará sempre...

- Não me encostam à parede com esse dilema! Não é possível fazer tudo a toda a gente. Isto chama-se racionamento. Mas quando falo nisso, dizem-me que "vai matar os pobres". Isso é demagogia. Racionar não é dar aos ricos e tirar aos pobres, é dar a cada um o que precisa. E se não chega para todos, é preciso baixar um bocadinho a todos, com equidade. Portugal absorveu como ninguém no mundo princípio de que tudo é de graça.

- Certo é que a verdade sobre o peso da factura nunca foi dita aos portugueses.

- Estou convencido de que a demagogia prevalece há 35 anos. Todos os governos, uns mais do que outros, a aprofundaram e multiplicaram. Deram o que não tinham, fizeram o que não podiam...

- É a única forma de ganhar eleições? Os portugueses não querem a verdade?

- A democracia portuguesa ligou-se ao património, isto é legitima-se se der dinheiro. Como não pode dar cheques, paga em obras, em facilidades e em benefícios. E pagou demais. No que toca à Saúde, estou à espera de ver nos próximos meses um grande esforço de racionalização e corte do desperdício... Há hospitais que gastam litros de um produto e têm de comprar frasquinhos, em vez de comprarem um garrafão que seria muito mais barato. Despende-se muito mais há muita gente interessada nisso.

- E também há a mentalidade dos doentes, que acham que o médico só é bom se lhes receitar medicamentos.

- Um médico que só receita medicamentos para se ver livre do doente está a falhar. É a mesma coisa com os falsos atestados médicos. Há milhares passados todos os dias e não há processos. Perdem-se milhões de dias de trabalho.

- Como utente, o que é que não tolera?

- As filas de espera. Se uma pessoa tem uma doença e lhe é dito que tem de esperar um ano, isso é insuportável. É por isso que eu defendo a liberdade de escolha. Se o SNS não pode fornecer imediatamente o doente tem o direito, pelo mesmo custo, de ir ao privado. Mas se uso a expressão "liberdade de escolha", vem logo a brigada da revolução dizer que isso significa o capitalismo selvagem dos Mellos e dos Espírito Santos, ultraliberal, que quer matar os pobres e dar vida aos ricos. É insuportável.

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António Barreto tem um longo historial na política portuguesa. Foi militante do PCP, esteve no PS, partido do qual se afastou há muito. Foi deputado, ministro da Agricultura no I Governo Constitucional, apoiou a AD de Sá Carneiro, a candidatura presidencial de Soares. É um independente, no verdadeiro sentido da palavra. E com o estatuto que garantiu na sociedade portuguesa, o seu nome é falado como possível candidato presidencial em 2016 (Marcelo Rebelo de Sousa sugeriu o nome do sociólogo em entrevista ao "i" há duas semanas), numa disputa que se prevê aberta e renhida. Barreto rejeita frontalmente a ideia. E também fala sobre a discussão do Orçamento do Estado para 2012, que aí vem, dizendo esperar "um acordo entre os dois partidos do Governo e o PS".

- O que espera do próximo OE?

- Estou à espera que esse Orçamento dê lugar a um acordo entre os dois partidos do Governo e o PS. É uma oportunidade imperdível para que haja, com matéria e não em abstrato, um aprofundamento do acordo entre os três partidos para isto aguentar. Porque isto está muito difícil e ainda estará mais.

- Não isenta de culpas nenhum dos dirigentes políticos dos últimos anos. A política atrai-o?

- Há um lado de crispação na política que é horrível. Em Portugal, para um partido político ser forte e enérgico, significa berrar no Parlamento. Se os berros são transmitidos nos noticiários da televisão, o senhor deputado e o partido ficam contentes. Metade das vezes são coisas naturalíssimas que se podem dizer sem gritar. Vi a discussão no congresso norte-americano sobre o banco Lehman e o debate no parlamento inglês relativamente à nacionalização de parte da banca e os deputados conversavam, tinham ideias diferentes e ficavam horas a argumentar até chegarem a um acordo. Aqui é muito difícil. E, deste modo, não há debate político possível. Lamento muito que seja assim.

- Há um burburinho em torno do seu nome para Presidente da República. Não sente esse apelo?

- Zero. Estou muito bem como estou. Presidente só quero ser desta Fundação. Não regresso à vida política. Já fiz a vida política que tinha a fazer e a que sabia, já não sei fazer mais. Gosto de contribuir, de estar interessado no que se passa. Informar, estudar, debater, discutir, é a minha maneira de fazer política. Não lhe vou dizer aquelas coisas que muitos gostam de dizer: nunca se pode dizer não, nunca se sabe o dia de amanhã, amanhã só Deus sabe, etc. Eu digo claramente: não.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Portugal, que futuro? (*)

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O TEMA que me foi oferecido, “Portugal, que futuro?”, constitui uma pergunta recorrente desde há uns anos. Ou décadas.

Advirto desde já que creio não poder responder a tal pergunta. Ou então poderia, mas só com fé ou medo, dois obstáculos ao pensamento. Não há pessoa, grupo, partido ou classe capaz de delinear o nosso futuro. Nem sequer afirmar, simplesmente, que, como nação, país e Estado independente, temos ou não um futuro. E não é saudável esperar que alguém, indivíduo ou grupo, se venha a encarregar de estudar, prever e nos oferecer um futuro.

Porquê assim? Por que não é possível prever o nosso futuro? Porque o futuro depende da liberdade de cada um e da liberdade dos povos. As pequenas decisões individuais acarretam as grandes. As decisões de quem dirige implicam depois as decisões de cada um de nós, assim como as dos outros povos. O futuro é uma construção complexa e imprevisível. Além de que o acaso e o imprevisto também fazem das suas.

Nunca esquecerei o poema que me foi enviado por mão amiga, há quase quarenta anos, quando iniciei um período de responsabilidades governamentais:

-------------Verdade, amor, razão, merecimento,
-------------Qualquer alma farão segura e forte.
-------------Porém, fortuna, caso, tempo e sorte,
-------------Têm do confuso mundo o regimento.

Estas quatro linhas, do nosso maior, sugeriram-me de imediato a necessária humildade perante a tarefa e o serviço público.

Além de tudo isso, temos a circunstância do mundo contemporâneo. Há muito que sabemos que “isto anda tudo ligado” e que conhecemos a fábula da borboleta chinesa que provoca a tempestade no Atlântico. Agora, sabemos, melhor do que antes, que não apenas os ventos e os céus, os mares e as correntes, mas também os homens e as mulheres, os Estados e as empresas, estão todos ligados. Como nunca tínhamos estado.

Traçar o nosso futuro ou desenhar os contornos da sociedade que queremos é exercício intelectualmente interessante, mas inútil. O futuro já não nos pertence, a nós, pequeno povo da Europa ocidental.

Apenas podemos prever vários caminhos possíveis. Podemos preparar-nos para todas as eventualidades, como quem segue viagem sem rumo certo e preciso. Todavia, esta minha crença não me faz desistir de perscrutar os tempos vindouros. Pelo contrário. É essa incerteza que me faz insistir, tentar prever todas as hipóteses. É também o que deveria inspirar as autoridades políticas, os que decidem a economia e as elites intelectuais. Sem a ansiedade de prever o imprevisível, nem de planear por intermédio de construções artificiais, podemos examinar o presente, procurando tendências e buscando modos de inflectir e influenciar. Podemos também, como se faz modernamente e deveria fazer entre nós, debater melhor e de modo mais consequente, sobretudo mais colectivamente, o conceito estratégico que define balizas.

Mas importa evitar dois riscos. “Deixar correr”, como se tem feito nos últimos anos, é falta grave cuja enorme factura se acabará sempre por pagar. Como fazemos hoje. E “Prever o futuro”, como alguns acreditarão ser possível, é ilusão infantil.

A globalização retirou-nos certezas. A integração europeia diminuiu-nos a soberania. O endividamento erodiu-nos a independência. O melhor que podemos e devemos fazer é preparar-nos, cuidar das nossas forças, reservarmos capacidades e fazer todo o esforço para que sejamos ouvidos. Mais, para que seja possível participar nas decisões dos nossos vizinhos e parceiros. A integração europeia trazia essa promessa, esse horizonte. Foi assim que iniciámos a caminhada europeia. Cada vez mais, no entanto, esse dispositivo colectivo e solidário está posto em causa. O fenómeno não surpreende aqueles que nunca acreditaram excessivamente num federalismo uniformizador. Mas a verdade é que as regras mudaram. Mais do que as regras, foram também os costumes institucionais e práticos que se alteraram. Avança gradualmente uma estrutura europeia verticalizada e centrípeta, contrária à inspiração inicial. Esta é mais uma razão que nos obriga a pensar e debater.

Não se trata de desenhar ou prever o futuro, empreendimentos impossíveis e destinados ao insucesso mais flagrante. Antes importa, isso sim, não hipotecar o futuro. Não fechar as portas a caminhos possíveis. E prepararmo-nos para diversas jornadas. As nossas decisões unilaterais deixaram parcialmente de ter valor real, de influenciar ou marcar o nosso futuro. E se algumas decisões solitárias nos sobram, como a de seguir um caminho isolado e introvertido, podemos ter a certeza de que a pobreza e a insegurança nos esperam.
Não se veja nestas linhas nostalgia dos tempos de isolamento ou de plena soberania nacional. A segunda metade do século XX mostrou com evidência que o exterior foi fundamental para o nosso progresso interior. Há mais de cinquenta anos que ligámos de forma indelével o nosso destino ao exterior. Com a NATO e a EFTA primeiro, a Comunidade Europeia depois, o mundo envolvente, Europa e o Atlântico, o mundo global, enfim. O exterior, as sociedades abertas e o mercado internacional foram certamente as principais fontes de alguma prosperidade que conhecemos desde os anos sessenta. Assim como das liberdades individuais e públicas, cuja inspiração primordial se vai buscar mais na inspiração e nas experiências dos povos vizinhos do que numa irresistível pulsão interior.

Mas foi também este mundo envolvente que nos trouxe as mais duras realidades do tempo presente. A produção insuficiente, a competitividade reduzida e a mediocridade de recursos tornaram a nossa sociedade mais débil e a nossa economia frágeis. O persistente desequilíbrio das nossas trocas com o exterior corrompeu as hipóteses de desenvolvimento e prosperidade.

Acontece que foi também esse mesmo mundo aberto que tornou ilimitadas as nossas expectativas. Aspiramos, porque o conhecemos, ao que de melhor se faz e tem neste mundo, sobretudo na Europa e na América, com quem nos comparamos obsessivamente. Mas não temos organização nem produção à altura das nossas aspirações.

E por que razão esta interrogação sobre o nosso futuro é tão actual, tão frequente? Será apenas mais uma manifestação desta incessante procura do “nós” colectivo? Creio que não. Vivemos tempos difíceis de desorientação. Depois de trinta anos de melhoramento constante e até de alguma prosperidade, verificamos que o que conseguimos está sob ameaça e que o que está ganho pode ser perdido. Temos agora a certeza de que já perdemos soberania e independência. Entregues às mãos dos credores, os que devem têm seguramente tudo a temer.

Parecia que já tínhamos ultrapassado as dores e as dificuldades de uma metamorfose que nos trouxe da ditadura à liberdade, do Atlântico e de África à Europa. Chegou a parecer que as liberdades e a democracia estavam seguramente ancoradas. Foi possível pensar que uma sociedade aberta e uma economia próspera tinham raízes bem assentes e persistentes. Durante uns breves anos, do final do século XX aos primeiros anos do século XXI, registámos mesmo, pela primeira vez na história, uma balança demográfica positiva: os estrangeiros que nos procuravam para viver e trabalhar eram em número superior ao dos Portugueses que, como era tradição, deviam procurar fazer a sua vida alhures.

Foi um momento passageiro. As saídas de Portugueses para o estrangeiro retomaram como antes, quase a fazer lembrar os anos sessenta de grande hemorragia. As condições económicas e sociais deterioraram-se. Eis que a dívida externa, o défice público, a intervenção internacional e a iminente falência, aparentemente evitada, nos impõem a questão: qual é, qual pode ser o nosso futuro?

É, pois, natural que a pergunta regresse. Ela denota incerteza e insegurança. Mas também a consciência da nossa dimensão e das nossas insuficiências. No entanto, qualquer que seja a nossa dúvida, legítima, não é possível esquecer o que fizemos recentemente. Realizámos, num punhado de anos, obra que nos honra.

Temos razões para estar orgulhosos. Fizemos em trinta ou quarenta anos o que outros demoraram cinco ou seis décadas. Depois de ter passado à beira de fracturas dolorosas e potencialmente trágicas, criámos os fundamentos de um Estado de Direito e de um sistema democrático. Alargámos a todos um Estado providência universal, com relevo para um Serviço Nacional de Saúde, que, mau grado defeitos e ineficiências, cumpre o essencial dos seus deveres e dos seus objectivos. Iniciámos a obra imprescindível de construção de uma sociedade plural onde vários deuses e diversas culturas podem conviver.

Mas também temos motivos para estar apreensivos. Falhámos na democracia participativa e no debate público, baseados numa informação acessível e honesta. Não conseguimos estabelecer uma Justiça em que se possa confiar como última instância de tutela e garantia dos nossos direitos e deveres. Não soubemos valorizar a ideia de responsabilidade pública através da qual uma espécie de frugalidade útil se imponha à voracidade ostensiva do dispêndio inútil. Não melhorámos significativamente os padrões de equidade, nem reduzimos as fontes de desigualdade excessiva. Não vencemos a fraude nem a corrupção, factores de iniquidade e inimigos da decência humana. Pior que tudo, perdemos de vista a continuidade e o futuro, habituámo-nos a viver com se ninguém viesse depois, como se não tivéssemos filhos e netos.

Podemos dizer que somos todos responsáveis. É esta, geralmente, uma afirmação desnecessária e inútil. E enganadora, pois impede-nos de saber porquê e como se chegou a uma qualquer situação. É uma frase que serve mais de desculpa do que de compreensão. Mas aceito que os nossos contemporâneos tenham todos, ou quase, uma quota-parte de responsabilidade, pois elegeram, designaram, confirmaram ou deixaram agir. Mas não esqueçamos que esta responsabilização universal pode conter a dolorosa ironia de culpar também, pelos excessos e pelo consumismo, muitos que nunca, durante estas décadas, deixaram realmente a pobreza e a carência.

Para além disso, que é evidente e não muito esclarecedor, houve evidentemente responsabilidades das autoridades, dos dirigentes, das elites políticas e económicas. A começar pelo uso excessivo de demagogia durante as últimas décadas. Parece ter-se seguido à letra a lição de Álvaro Pais, segundo o cronista. Prometeu-se o que não se podia dar. Deu-se o que se não tinha. E foi-se ainda mais longe. Distribuiu-se o que se não tinha produzido. Adiou-se o pagamento para as gerações futuras. Fez-se o inútil e o dispensável. Frequentemente, ao necessário, preferiu-se o vistoso.

Na política, substituiu-se a ideia de serviço pela da competição. O optimismo ilimitado dos vencedores impediu-os de ver os problemas criados ou não resolvidos. O pessimismo crónico dos vencidos impediu-os de encontrar as soluções. A este propósito, convém comparar os efeitos do pessimismo e do optimismo. Em certo sentido se pode afirmar que estamos diante dos resultados de um optimismo em excesso. Sob o seu reinado, tudo pareceu possível. Fizeram-se os piores erros da nossa história recente. Tomaram-se decisões que hipotecaram o futuro. Desfrutou-se uma tranquilidade que mais pareceu irresponsabilidade. Procurou-se uma facilidade que mais foi cumplicidade. Durante anos, os alertas e as denúncias de dificuldades de que muitos se fizeram eco foram recebidos como desistência crónica, como pessimismo doentio. Tinham razão os pessimistas, pois a lucidez nunca casou com o optimismo.

Temos, evidentemente, um futuro. Mas não sabemos qual é. Necessário é traçar os horizontes, antever as possibilidades... São as nossas escolhas de hoje que farão, sem que o saibamos em pormenor, o futuro. Uma vez mais, esta dúvida é razão forte para discutir e debater em permanência as hipóteses de futuro. Hoje, reinam a incerteza, talvez a insegurança e provavelmente o receio. Mais uma razão para discutir o futuro.

Uma nação informada e um povo habituado a debater e discutir são instrumentos de combate à incerteza. E são meios superiores para lutar contra as dificuldades. Hoje, após o resgate internacional das finanças portuguesas, a falta de informação e a ignorância sobre tantos aspectos da gestão pública recente enfraquecem a capacidade de resistência da população. Quase impedem as autoridades de pedir cooperação e compreensão para os esforços e os sacrifícios que se seguem.

A verdade é que se escondeu informação e se enganou a opinião pública. A acreditar nos dirigentes nacionais, vivíamos, há quatro ou cinco anos, um confortável desafogo. Era então possível fazer planos e criar projectos de grande dimensão e enorme ambição. Em pouco tempo, num punhado de anos, passámos a uma situação de iminente falência e de quase bancarrota imediata. Ainda hoje não sabemos as causas e o processo. Ainda hoje não conhecemos a origem exacta dessa terrível aceleração dos défices e das dívidas.

As causas externas são em parte responsáveis. Com certeza. Como em todos os países do mundo. Ou quase. Mas a maior parte dos países ocidentais não se encontra na mesma situação que Portugal. Algo se passou mais, em nossa casa. Ou fizemos menos, ou fizemos pior. Ou não nos preparámos. Ou não cuidámos da nossa fragilidade. E o facto de saber que dois ou três outros países vivem dificuldades semelhantes, mais ou menos graves, não é suficiente para nos desculpar. Há países e governos, a começar pelo nosso, que foram imprevidentes, complacentes e irresponsáveis. Pode ser grande a origem externa das nossas dificuldades. Mas a verdade é que é isso mesmo o que se pede aos governantes: que prevejam dificuldades, que previnam problemas e que protejam os seus povos durante as tempestades. Tivemos exactamente o contrário: as autoridades acrescentaram às dificuldades, não só pelas suas decisões, como também pelo seu comportamento teimoso e abrasivo.

Repito. Temos evidentemente um futuro. Mas não sabemos qual. Esse futuro depende cada vez mais de outros, dos vizinhos, do grupo do Euro, da União Europeia, dos Estados Unidos e até do resto do mundo. Mas não esqueçamos a lição de um académico americano, Jared Diamond, que alertou para a hipótese de povos e países decidirem, sem saber, extinguir-se. Vários povos, ao longo dos séculos, desapareceram dos seus territórios ou as suas nações dissolveram-se após longas fases de declínio e decadência em resultado da sua própria obra e das suas decisões. Os seus gestos e o seu comportamento eram deliberados, mas as suas fatais consequências eram desconhecidas.

É minha convicção que esse futuro, mesmo muito difícil, será europeu. Mas também creio que a Europa será, dentro de poucos anos, diferente da que conhecemos hoje. Ou muito mais federal, ou mais fragmentada. Gostaria que esse futuro fosse com o Euro, pois de outro modo o poder de compra do nosso povo sofreria um enorme desbaste.

Gostaria igualmente que esse futuro não se limitasse a uma integração no mais vasto conjunto europeu, com desaparição gradual das culturas e das identidades. Estas não têm, para mim, valor absoluto, em si próprias. Valem pelo que significam de mais humanidade e mais dignidade. Estou convencido mesmo que valem também como factor de liberdade dos cidadãos, mais próximos assim das instâncias cujas decisões implicam o seu destino e as suas vidas.

Reconheço não estar a desenhar contornos do futuro, nem sequer garantias, mas tão só a fazer breve lista de desejos. É talvez essa uma maneira de participar no debate nacional que se afigura urgente.

Tão urgente quanto a crise actual, devastadora de energias e de esperanças, tem revelado exigências. Para o nosso futuro, impõe-se, por exemplo, criar mais capacidade soberana e menor dependência dos credores. Como creio que importa ter um olhar diferente e mais ousado para os recursos naturais, a terra, as águas, a floresta e o mar. Já sabemos também que, sem investimento, nunca será possível diminuir a dívida ou aumentar a produção. Tudo deveria ser feito para que o investimento se sinta atraído, confiante e seguro.

Creio ainda que desta crise de incerteza resulta algo mais. A convicção de que os Portugueses não podem ou não devem ser chamados apenas para receber e sofrer as más notícias. Para matérias tão importantes como a sua Constituição e a integração europeia, nunca foram solicitados a debater e participar, menos ainda a aprovar. As escolhas actuais e a dureza do regime económico e social em que vamos viver são tais que é tempo de se fazer justiça ao povo. Informá-lo de modo completo e honesto, chamá-lo a discutir e dar a sua opinião seria uma excelente maneira de começar a olhar para o futuro.
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(*) - Academia das Ciências de Lisboa
Instituto de Estudos Académicos para Seniores
Lisboa, 10 de Outubro de 2011

domingo, 9 de outubro de 2011

Luz - Café em Genebra, 1972

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O nome do café, Tout Va Bien, era um verdadeiro programa político e cultural, a denunciar um optimismo sem reservas. Creio que a inspiração vinha de um filme de Jean Luc Godard. Em Genebra, durante uns breves anos, fui colaborador de um semanário com o mesmo nome.

domingo, 2 de outubro de 2011

Luz - Café Les Deux Magots, Paris, 1978

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Este café é quase local de peregrinação. Fica na Praça de Saint Germain, na esquina com o boulevard do mesmo nome. Já foi o que havia de mais intelectual, artista e chique em Paris! Ficaram-lhe associados grandes nomes, desde Verlaine e Rimbaud, a Picasso e Aragon, passando por Hemingway, Sartre, Beauvoir, Camus, Truffaut, Borges e Mauriac! Muitos ali deixaram o seu testemunho. Ainda hoje, há quem lá vá à procura de inspiração! Ou de fantasmas... A metros de distância, fica outro lugar de culto, o Café Flore. E do outro lado do boulevard, um restaurante obrigatório: a Brasserie Lipp.