segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Grande Angular - O perdão e o remorso

A moção aprovada há dias pelo Parlamento Europeu e apenas contrariada, ao que parece, por simpatizantes do comunismo e do fascismo, condena um e outro, quase os equipara, de ambos diz que massacraram milhões, o que é verdade, mas cuja equiparação é absolutamente inútil e patética. Sabe-se hoje que, sem contar as vítimas da guerra, o Nazismo alemão causou a morte de dez milhões de pessoas e o comunismo russo perto de vinte. Fazer um “ranking” destas mortandades é ridículo. Estabelecer qual deles é pior é obtuso. Ambos são hediondos, ponto final. Equipará-los é inculto. São muito diferentes nos seus propósitos, mas são ambos medonhos nos meios e nos resultados. Declarar que o capitalismo é muito pior, pois desde há trezentos anos já morreram, nas fábricas e na guerra, com a indústria e a escravatura, muitas centenas de milhões de pessoas, é ignorante. E também não nos ajuda a compreender o mundo, mas tão só a odiá-lo e a descrer da humanidade. Anunciar que são iguais é tão idiota quanto afirmar que são radicalmente diferentes.
Julgar e condenar ou absolver a história parece inútil. Mas não é. Há sempre uma “agenda oculta” e um propósito implícito. Aqueles que, hoje, em Portugal e no mundo, lutam para culpar os homens, os brancos, os adultos, os ocidentais, os cristãos, os ricos, os heterossexuais, os democratas, os capitalistas e os militares estão evidentemente a tentar criar uma ortodoxia, uma cultura predominante e, sobretudo, a construir um “credo” que permita condenar e proibir, assim como limitar a liberdade de expressão. Fazem-no com a mesma intolerância e o mesmo preconceito com que outros, há bem pouco tempo, desprezavam os negros, consideravam as mulheres inferiores, garantiam que os jovens eram estúpidos, que os pobres eram culpados da sua condição, que os homossexuais eram doentes, que os chineses cheiravam mal, que os árabes matavam e que os ciganos roubavam.
Julgar a história, condenar o passado e condicionar o pensamento: eis três objectivos dos virtuosos do presente. A discussão sobre o alegado Museu Salazar foi, à nossa escala, um tema que permitiu exibir os mesmos reflexos condicionados. As polémicas à volta do Museu dos Descobrimentos tiveram o mesmo sentido. Curiosamente, nestes dois casos, tal como no resto do mundo e para outras matérias, os intolerantes estão a levar a melhor.
Decretar que não houve massacre de Arménios perpetrado por Turcos, proibir que se diga que o Holocausto não foi assim tão mau como dizem, culpar os Judeus pela morte de Jesus Cristo, garantir que não houve na Polónia massacres de comunistas e de Judeus e negar que tenha existido o Gulag na União Soviética são gestos prepotentes, mas muito em voga. Proibir o estudo de Darwin revela estupidez, mas é o que se faz em várias latitudes. Substituir o estudo, o debate público e a liberdade de expressão pelo decreto-lei é atitude hoje louvada por muitos, sempre com intuito oportunista de estabelecimento de um poder autoritário.
Ao mesmo tempo que os decretos que definem o que foi e não foi na história, surgiu também, nas últimas décadas, o imperativo do pedido de perdão. Pessoas, povos, Estados, políticos e Igrejas pedem perdão. Pedem perdão por todos os males e por factos de há dez, cem ou mil anos. Reinterpretam a história, inventam culpados, identificam os maus e as vítimas e pedem perdão a quem lhes convém.
Papas já pediram perdão aos Judeus. Alemães também, mas por outras razões. Muitos europeus pediram perdão aos árabes, aos muçulmanos e aos negros pelo colonialismo e pela escravatura. Americanos pediram perdão aos Índios. Espanhóis pediram perdão aos Incas, aos Azetecas e aos Maias. Portugueses ainda não pediram perdão aos Africanos, aos Indianos e aos Índios, mas vai acontecer em breve. Já houve Portugueses que pediram perdão aos Judeus. Franceses pedem perdão aos africanos, aos árabes e aos vietnamitas. Há Ingleses que se preparam para pedir perdão ao mundo inteiro, dos Índios aos Indianos, dos Negros aos Muçulmanos.
Já se pede perdão aos negros pela escravatura, aos índios pela conquista, aos indianos pelas descobertas, aos chineses pelas guerras, aos mouros pelas expulsões e aos árabes pelos massacres. E também está nas cartas que se vai pedir perdão aos republicanos pela monarquia e aos socialistas e comunistas pelo Estado Novo.
Por que diabo hei-de pedir perdão aos escravos, aos Índios, aos Indianos, aos Egípcios, aos Judeus e aos Mouros? É que se as culpas não forem minhas, são objectivas e históricas. Se não foste tu, foram os teus avós. Ou tetravós. Se não foste tu, foram os cristãos. Ou os brancos. Ou os Portugueses. Ou os europeus. Ou quem quer que seja. Mas de uma coisa podes estar seguro: és culpado, deves ter remorsos, tens de pedir perdão e, eventualmente, pagar reparações, conceder privilégios, bater no peito, deixar passar à frente e recolher-te à tua insignificância dado que alguém, algures e em qualquer tempo, maltratou, roubou, oprimiu e torturou. Evidentemente, as culpas têm momentos históricos e objectos precisos. Hoje, por exemplo, pedir-se-á perdão aos negros africanos e aos muçulmanos (desde que não sejam ricos…), mas não aos retornados, aos repatriados, aos frades, aos monges, aos aristocratas e aos proprietários.
Decretar o bem e o mal, condenar a história com cem ou mil anos, culpar por lei acontecimentos históricos e pedir perdão por factos longínquos: é estúpido, mas é moda. Vai ser difícil afastar esta praga: estabelecida uma ortodoxia do pensamento, dura sempre anos. Pena é que o pluralismo e a liberdade fiquem a perder. Mas ganha a moda que é a de pedir perdão pelo que outros fizeram. Pedir perdão pelo que antepassados, não importa quão remotos, fizeram ou beneficiaram com o mal e o sofrimento de outros. Pedir perdão a escravos que serviram mestres, a negros usados pelos brancos, a soldados que obedeceram a oficiais, a trabalhadores explorados por patrões, a mulheres batidas pelos homens, a jovens frustrados por adultos, a judeus queimados por arianos, a árabes humilhados pelos cristãos, a alunos dominados por professores…
Aos espíritos intolerantes não interessa saber que a culpa, o castigo e o perdão se dirigem aos indivíduos, por vezes associações ou grupos, nunca povos ou etnias.
Fernão Lopes garante que Álvaro Pais disse ao Mestre de Avis que uma das receitas para se ser rei e exercer o poder consistia em “perdoar a quem nunca te fez mal”! Esta agora é uma nova versão: “peço perdão a quem nunca fiz mal”! 
Público, 27.10.2019

domingo, 20 de outubro de 2019

Grande Angular - Bom dia, Governo novo!

Por António Barreto
novo governo merece votos de boa sorte. Se as coisas correrem bem para ele, é provável que também corram bem para nós. Nem sempre é assim, já vimos governos fazer o que deve ser feito e ninguém lhes agradecer. E também já vimos os que não fizeram o que deviam ter feito e, mesmo assim, foram recompensados com votos ou benevolência. Os povos são ingratos e os governos também.
O governo velho, o que agora acaba, orientou-se, com sorte e habilidade, por princípios simples: a capacidade de negociação, a estabilidade e a duração. Conseguiu. Também adoptou ideias e valores de enorme simplicidade: ter as contas certas, manter uma firme política de contenção financeira, devolver e distribuir rendimentos. Deu resultados. Achou por bem seguir a onda e os ventos europeus, sem invenções nem projectos esquisitos. Teve êxito.
Para o governo novo, quase igual ao velho, não se sabe ainda o que António Costa nos reserva. Não é possível continuar a tratar só da duração e da estabilidade, pois nada será como dantes. É pena, aliás, que o Primeiro-ministro não tenha querido estabelecer uma qualquer base sólida (acordo, contrato, aliança ou coligação…) para o governo e a legislatura. Teria assim podido ocupar-se mais do conteúdo e dos objectivos e menos das habilidades e dos adjectivos. É possível que, no discurso de posse, na primeira ida ao Parlamento e noutra qualquer oportunidade, ele nos revele finalmente o sentido principal que pretende dar ao seu governo e ao seu mandato. Talvez tenhamos, como é costume, uma enumeração de prioridades, às dúzias, incapazes de definir uma ideia ou um destino. Mas não parece provável que apenas deseje repetir o primeiro acto, devolver, ceder e negociar, com um único objectivo, o de durar. Na verdade, os seus adversários e os seus amigos aprenderam, à sua custa, que esse estilo lhes é desfavorável.
Com a Catalunha à vista e o Reino Unido fora dela, com as ameaças nacionalistas conhecidas, com a crise da imigração sem sinais de abrandamento e com a altíssima tensão no Próximo Oriente, era excelente que o governo novo, mesmo com Primeiro-ministro velho, consiga ou queira redefinir um caminho. Não se trata de metafísica romântica, mas tão só de uma exigência clássica para a melhor política: dar um sentido ao governo. 
Todos sabem que as necessidades comandam boa parte da política. Assim é e assim será. A dívida continua grande, melhora muito devagar. O investimento está baixo, mas conheceu algum progresso. O crescimento está a melhorar. O défice parece estar em boa situação. Seria bom que o governo novo reforce estas políticas, mas mantê-las já seria avisado. O governo sabe que tem de tratar do poder excessivo das potências e dos interesses que adquiriram grande parte da economia portuguesa. Como não é novidade ser inevitável alterar as leis laborais a fim de facilitar o crescimento. O governo sabe isso, mas gostaria de adiar. Ou esperar que a simpatia internacional pela estabilidade e pelas contas certas fosse suficiente e não exigisse reformas dolorosas. Mas o governo sabe que a tal não escapará.
Ainda no domínio das evidências, está a necessidade de olhar para os serviços públicos essenciais, mais ainda, de encontrar recursos enormes para acudir a uma situação de quase ruptura. O atendimento público e as relações entre cidadãos e Administração estão no ponto mais baixo de há muitos anos. O Serviço Nacional de Saúde, que o PS acusa de ter sido destruído pela direita e pela troika, mas que na verdade foi também miseravelmente mal gerido pela esquerda, está a precisar de cuidado intensivo.
Nada disto faz o essencial. Nada disto é muito mais difícil do que a gestão normal da nossa vida colectiva, que nunca é fácil e que tem sempre dificuldades. Acima de tudo, em cada momento, está o que faz a decência na vida e nas instituições de um país. Nas nossas condições de vida e nas actuais circunstâncias, a confiança nas instituições, o respeito da Administração pelos cidadãos e a protecção essencial dos nossos direitos e liberdades, constituem o sentido principal da acção pública das autoridades. E para que isso seja possível, uma palavra: Justiça!
governo tem agora o dever de olhar com redobrada atenção, com vontade superior e com energia renovada, para a justiça, com especial relevo para os aspectos que mais se evidenciaram negativamente nos últimos tempos. As regras processuais, fonte de desigualdade e despotismo. A chicana burocrática que destrói a eficiência e alimenta a desigualdade. As garantias excessivas, factor de injustiça e paralisia. As relações entre magistratura judicial e ministério público, sem falar nas polícias, que se têm transformado em obstáculo sério à eficiência.
É imperdoável que António Costa continue a afirmar, com evidente cinismo, que “à política o que é da política, à justiça o que é da justiça”. Quando algo está errado ou desempenha mal a suas funções, o tema transforma-se em política. De que se deve ocupar a política se não é justamente disso mesmo, do que está errado? Do que sofrem pessoas e cidadãos sem esperança nas instituições e no seu funcionamento normal? António Costa tem diante de si o imperativo moral e político de fazer, pela política e com o respeito pelas leis essenciais do seu país, o que a justiça não sabe, não quer fazer ou não consegue ser: justa, pronta e eficiente. Não se trata de fazer com que a política se substitua à justiça, erro absoluto. Mas trata-se com certeza de criar condições legais, institucionais, processuais e materiais para que a justiça funcione e cumpra os seus deveres. Apesar de muitas outras carências (sociais, económicas, culturais…) o que mais falta faz à democracia portuguesa é uma justiça eficiente, pronta e justa. Uma justiça que não dê razão aos que pensam que existe uma justiça especial para os poderosos, os afortunados, os amigos e os políticos. Uma justiça que seja o antídoto essencial contra a corrupção, em todas as suas formas, das famílias aos partidos, das empresas aos serviços públicos, à volta do núcleo central, o do poder político venal e cúpido. Este tema é eminentemente político, legal e constitucional. E o governo é, com o Parlamento, protagonista privilegiado e responsável maior.
Público, 20 de Outubro de 2019

domingo, 13 de outubro de 2019

Grande Angular - Bom dia, Democracia!

Um novo Parlamento merece ser saudado! Deve receber votos de uma longa vida, mais ou menos quatro anos. Mas também se lhe pode recordar as suas responsabilidades. E exprimir a esperança que este Parlamento dê passos para aumentar a sua autonomia. Até hoje, esta instituição vive sobretudo dependente dos partidos e do governo e muito pouco da sua identidade, que já poderia ter construído nestas quatro décadas. O “Parlamento arena” sempre levou a melhor sobre a instituição com carácter próprio. A disciplina de voto, o papel das comissões de inquérito e a falta de tradição de actividade de cooperação interpartidária são factores que atenuam a dignidade parlamentar. Até o papel individual do deputado traduz essa diminuição: um deputado é um membro de um grupo parlamentar, não é em primeiro lugar um membro da instituição. A sua liberdade individual e a sua dignidade dependem mais do partido do que do Parlamento. Será que vamos conhecer alguns progressos nos próximos tempos? O grande aumento do número de partidos representados pode criar condições para o reforço da instituição.
Os deputados eleitos já deviam estar sentados nas suas cadeiras. Uma semana depois da eleição, o Parlamento já devia estar a funcionar. Se faltassem uns deputados, os da emigração, por exemplo, a Assembleia poderia reunir e organizar-se. Os deputados da emigração já deviam estar eleitos logo no dia da eleição. É este um dos mistérios da vida democrática portuguesa: o Parlamento não reúne por direito próprio, fica à espera das mesas, das comissões, dos tribunais, do Ministério da Administração Interna, da Comissão Nacional de Eleições, de recursos e Deus sabe de que mais!
Compreende-se que a formação de um governo, especialmente quando se trata de coligações, acordos e alianças, demore dias ou semanas. Tem-se visto como o processo negocial pode durar meses. Na Espanha, na Itália ou na Bélgica são conhecidos casos extraordinários, até mais de um ano. Mas as negociações são uma coisa, os procedimentos burocráticos são outra. Em Portugal, nada justifica os prazos e as chicanas existentes, a não ser a submissão da democracia a regras que lhe são exteriores. 
Fez muito bem o Presidente da República em acelerar tudo, fazer mais depressa o que dele depende (além do Primeiro-ministro e de Rosa Mota, dez partidos recebidos num só dia, é obra!) e tentar estimular os outros a fazer o mesmo. Fez muito bem o Primeiro-ministro em despachar as primeiras reuniões entre partidos. É bem possível que as negociações demorem tempo, mas o ritmo de urgência está criado. Pode até ser necessário que o Parlamento assuma muitas das suas funções antes de o novo governo estar em exercício. Daí não vem mal ao mundo, desde que o mais importante esteja a funcionar. Um Parlamento não pode estar condicionado pelos outros órgãos de soberania, muito menos pela minúcia jurídica processual obsessiva.
O novo Parlamento bem pode organizar uma sessão de homenagem à obra de Diogo Freitas do Amaral. Liderou, com Amaro da Costa, o trânsito da direita portuguesa para a democracia. O seu contributo para a Constituição, mesmo votando contra, foi valioso. Também o foi para a elaboração de outras leis que marcam o nascimento da democracia, como a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas. Esta lei, aprovada em 1982, juntou-se à revisão da Constituição do mesmo ano. A natureza democrática do Estado português foi consolidada nessa altura. Se quiserem designar Freitas do Amaral como um dos quatro “pais da democracia”, com Mário Soares, Francisco Sá Carneiro e Ramalho Eanes, há razões para o fazer.
Outra obra que poderia ocupar o Parlamento, desde já, seria a de acabar com a vedação do Palácio de São Bento. Na verdade, o Parlamento está cercado por um estendal de barreiras à sua volta! Umas móveis e outras amarradas. Para proteger o Parlamento de manifestantes, alguém entendeu ser ideia brilhante proteger a instituição da liberdade e da democracia! Vai daí, cercou-a! É esteticamente horroroso. Politicamente desprezível. Presta-se a todos os sarcasmos, incluindo o de que o Parlamento receia o povo!
Até hoje, as ameaças físicas contra o Parlamento não foram muitas. Umas fotografias dos anos 1920 mostram as polícias a fechar as portas de São Bento! Também se conhecem imagens de Abril de 1974, quando militares do MFA tomam posição à volta do Palácio, o que aliás nem sequer era necessário, dado que ali não se passava nada. Depois existem fotografias do famoso cerco à Assembleia Constituinte de 1975: camionistas pesados, sindicalistas da CGTP igualmente pesados, comunistas, esquerdistas e alguns militares mais ou menos à civil mantiveram o cerco de muitas horas.
Durante as décadas de democracia que vivemos depois desse cerco, várias vezes se viram manifestações diante do Parlamento, umas mais atrevidas do que outras, umas com polícias a proteger, outras nem sequer. Mas em geral o ambiente era pesado, sem ser ameaçador. Até que um dia, uma manifestação de polícias ultrapassou os limites. Vários agentes, treinados para o efeito, fizeram um simulacro de invasão, para mostrar à população e ao poder político que eles entrariam se quisessem. E pararam à porta, depois de terem derrubado as vedações e afastado os piquetes de polícia destacados. Desde então, o Parlamento ficou protegido de modo permanente. Haja ou não manifestação, comício ou concerto de protesto, as vedações metálicas estão ali para ficar. Presas umas às outras, disfarçam um ar provisório, mas a verdade é simples: o Parlamento está protegido dos manifestantes. A coisa é esteticamente desastrada. Do ponto de vista da qualidade do urbano, um pavor. Mas pior do que tudo, do ponto de vista político, moral e cultural está ali um horror! O Parlamento exibe fragilidade e medo!
Nestes dias excepcionais de comemoração da democracia, uma alusão vem a propósito. O Tribunal Constitucional considerou inconstitucionais várias cláusulas de uma lei que conferia aos serviços de informações excepcionais poderes de vigilância e escuta dos cidadãos, nas redes de telecomunicação e na Internet. Uma declaração de voto de um juiz, aliás vice-presidente, João Pedro Caupers, devolve-nos algum orgulho! Diz o Juiz, exprimindo-se como toda a gente, em bom português simples e claro: “E não me venham dizer que a intromissão dos serviços de informações (…) é indispensável para que o Estado possa defender a minha segurança. Já ouvi isso, noutros tempos e em outros contextos. Se tivesse de escolher entre defender a minha segurança ou proteger a minha liberdade (…) optaria, sem hesitar, pela liberdade. Não me encerrem numa masmorra – ou numa torre de vidro – para me proteger. Como alguém disse, viver é sempre perigoso”.
Público, 13 de Outubro de 2019

terça-feira, 8 de outubro de 2019

A benefício de inventário

Quem? O Partido Socialista, com certeza. Em certa medida, merece. Depois de tantas derrotas (Tancos, incêndios, Sócrates, declínio dos serviços públicos, corrupção, famílias no Estado, investimento insuficiente e endividamento crescente), é uma grande vitória os Socialistas terem resistido. Os eleitores não consideraram negativamente aquelas derrotas. Também é verdade que, depois de um êxito tão grande na estabilidade do governo, na paz social, na queda do desemprego e no aumento de rendimentos, é evidentemente uma derrota política não ter vencido com maioria absoluta.
Porquê? Porque o PS teve jeito e sorte, porque a economia ajudou e o turismo também. Porque a economia europeia soprou a favor. Porque o governo soube aproveitar alguns ventos. Porque as oposições tiveram um comportamento desastrado. Porque a direita portuguesa, no seu conjunto, atinge fasquias da sobrevivência, na linha de vida. E porque, com ou sem razão, os eleitores preferem as esquerdas, que, parece, lhes dão mais benefícios.
Com quem? Na legislatura anterior, o PS não tinha escolha: precisava de todas as esquerdas. Agora, tem. Pode governar sozinho, à bolina, com terra à vista, de lei em lei, saltitando entre as esquerdas ou entre a esquerda e a direita, o que será mau para o país. Ou pode governar com um, dois ou três. Já não basta ser hábil, é necessário ter uma política, um carácter e um objectivo. Já não é suficiente ficar com quem mais convém, mais promete facilidades ou mais se prepara para cedências. Com uma legislatura nacionalmente difícil e internacionalmente muito complexa e perigosa, será melhor ter uma solução consistente, de compromisso e de responsabilidade.
O quê? Todos têm centenas de promessas. Como todos, o PS também tem dezenas de prioridades e outros tantos “planos nacionais” e “estratégias nacionais”. Escolher para governar vai ser difícil. Sobretudo porque se trata da segunda legislatura. Mas é difícil contestar a ideia de que as grandes prioridades são mesmo a Justiça e a corrupção. E logo a seguir o investimento.
Para quê? Esta é a questão mais difícil. O PS partilhou, com quase todos os candidatos, a atitude ignorante que consiste em ignorar o mundo e a Europa, em não ter uma qualquer ideia clara sobre um e outra. Portugal não pode, evidentemente, ter uma voz mais forte do que os outros, não deve julgar que está sozinho no mundo, nem se lhe permite imaginar que a Europa e o mundo devem a Portugal o que quer que seja. Mas não se admite que os dirigentes políticos portugueses se limitem a negociar as margens e os restos, ou a deixar os europeus tratar de nós.
E depois? Esta foi a mais elevada taxa de abstenção da história da democracia portuguesa. Quase metade da população não votou nem se interessa pela política. É bom pensar nisso.
Público 7 de Out 19