domingo, 25 de junho de 2017

Sem emenda - Um Parlamento trivial

A Agência Europeia do Medicamento poderá vir para Portugal! A saída da Grã-Bretanha da União tem consequências destas. Organismos estabelecidos no Reino Unido serão deslocados. Dezenas de empregos apetecíveis serão criados noutros países. Muitos funcionários sairão de Inglaterra. Centenas de funcionários britânicos deixarão Bruxelas, Estrasburgo, Luxemburgo e outras localidades onde existem representações. Em vários países, por efeitos do despedimento de britânicos, abrirão vagas e empregos. Percebe-se. É uma maneira de castigar os irreverentes e de favorecer os disciplinados. Também é verdade que mal se compreenderia que uma agência não estivesse sediada num país membro. Cargos até hoje ocupados por ingleses ficarão acessíveis à competição: muitos são os técnicos e os cientistas, indivíduos e empresas, que se preparam para colher os despojos. Uns casos serão decididos por mérito e concurso, outros pela família ou o partido.

Há, na União, dezenas de instituições que desempenham funções importantes e beneficiam de elevados orçamentos e de quantidades de pessoal qualificado. Todos os países querem ter organismos destes dentro das suas fronteiras. Os mais poderosos conseguem os melhores. Uma dúzia de países lançou-se atrás da Agência do Medicamento. A sede fica num prestigiado centro de edifícios modernos, em Canary Wharf, Londres. Trabalham lá 800 funcionários de elevada competência técnica. O organismo tem a tutela, por assim dizer, de umas dezenas de instituições nacionais que tratam dos medicamentos e das indústrias farmacêuticas.

Já há dezoito candidatos, entre os quais Barcelona, Paris, Amesterdão e Milão. Assim foi que o governo e o parlamento decidiram candidatar Lisboa à localização da agência. Tudo corria bem, até que surgiu a polémica. Então e o Porto? A resolução votada no Parlamento era explícita: Lisboa! Os deputados não viram. Ou não se deram conta. Ou não perceberam. Ou foram obrigados a mudar de posição. Algo aconteceu. Os chefes partidários, os deputados de várias cidades e os organismos locais dos partidos acordaram! Pensaram nas autárquicas. Na descentralização. Nas regiões. Uns mudaram de opinião e disseram, outros mudaram e não disseram, outros ainda não mudaram… Dias depois, com o coração apertado pelas autárquicas, o governo decidiu reabrir a hipótese de outras cidades, isto é, do Porto. E até o Primeiro-ministro afirma que foi enganado! Sobra a questão: o que se passou para que uma unanimidade fosse posta em causa em tão poucos dias por tanta gente? Como foi possível?

Pense-se num dia de votações no Parlamento. Veja-se como aquilo funciona e percebe-se que tudo é possível. São listas de votações automáticas, umas seguidas às outras, para que ninguém falte e não haja surpresas. A música é conhecida e vê-se bem no “Canal Parlamento”. Resolução número tal, projecto de lei número tanto, proposta disto e daquilo, quem vota contra, quem aprova, quem se abstém, está aprovado pelos partidos tal e tal, rejeitado pelos partidos assim e assado. Quando o presidente pergunta quem vota a favor e contra, de cada grupo levanta-se um senhor ou senhora, é como se todos se levantassem, não há indivíduos nem pessoas, não há deputados nem representantes, há unidades colectivas, regimentos e claques. Voto sindicado e obediente. Vota um por todos.

O voto sobre a Agência Europeia do Medicamento é a demonstração da falta de liberdade e independência dos deputados, que verdadeiramente o não são, antes parecem funcionários. Um ou outro desses senhores, nomeadamente de Lisboa e arredores, sabia vagamente o que estava a votar, tinha lido na diagonal a resolução em causa, sabia que Lisboa era a cidade candidata do governo. A maioria dos deputados não fazia a mínima ideia do que votava, não lhe interessava o assunto e só despertou quando lhe disseram que assim podiam ganhar ou perder as autárquicas.


DN, 25 de Junho de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

São Judas Tadeu: votos, promessas e graças – Fotografia dos anos 1970, na Sé de Braga (ou será no santuário do Sameiro?), com a guerra de África bem presente. É um santo antigo, foi Apóstolo de Cristo, com quem consta ser muito parecido, diz-se mesmo que era seu primo. Não deve ser confundido com Judas Iscariotes, o “Apóstolo traidor”, o do “Beijo de Judas”. Era irmão de Tiago. Mártir, foi assassinado com outro Apóstolo, Simão, por terras da Pérsia. É o “Santo das causas perdidas” ou das “causas impossíveis”. Ao que parece, escrevia muito bem. Tem carta publicada na Bíblia. Pode-se lhe encomendar muita coisa em Portugal, tantas são as causas difíceis. Ou mesmo desesperadas. Talvez a causa das florestas, cujo patrono poderia ser ele. Na sua carta, alude às “nuvens sem água arrastadas pelos ventos” e às “árvores de Outono sem fruto, duas vezes mortas e arrancadas pela raiz”…

DN, 25 de Junho de 2017

domingo, 18 de junho de 2017

Sem emenda - A liturgia democrática

Todos merecem parabéns! Os Portugueses em geral, António Costa, Mário Centeno, o governo e os partidos que o apoiam e os sindicatos: pelo que fizeram e pelo sentido de equilíbrio. Mas também a Troika, os exportadores e o governo anterior que preparou parte do caminho feito. São dias de congratulação e de lugares-comuns.

Quase todos merecem também condenação. Muitos dos que acima são referidos, mais José Sócrates e seu governo, banqueiros e ex-banqueiros, assim como ministros, uns empresários das rendas e das PPP e os autarcas dos SWAPS. Todos merecem um julgamento impiedoso por terem contribuído para a ruína de Portugal.

É falsa a percepção de que só um governo, este ou anterior, fez o que tinha a fazer. É errada a noção de que a austeridade não era necessária. E é finalmente perigosa a ideia de que o essencial está feito e já temos uma folga. Muito falta fazer, como todos sabem, mesmo os que não querem dizer.

Nas televisões, ouvimos Schäuble sobre as pretensões do governo português: “Já remeti ao Parlamento alemão o pedido de Portugal para sair do défice excessivo da UE e para adiantar o pagamento ao FMI. Estou convencido de que o Parlamento aceitará e não haverá problemas. Portugal é um caso de sucesso”! O homem estava visivelmente satisfeito. Depois, também disse umas tolices sobre Centeno e Ronaldo.

Uma pequena nota passou desapercebida: “Já remeti ao Parlamento federal…”. Pois é. O poderoso governo alemão, a potente Angela Merkel e o irascível Wolfgang Schäuble têm de fazer o caminho do calvário, ir a Berlim pedir aprovação ao Parlamento. Sabemos que será coisa fácil, neste caso. Sabemos que pode ser mera liturgia. Mas terá de ser feito. O que funciona de duas maneiras. Obriga à aprovação posterior, tal como exige negociações anteriores.

Mesmo para questões europeias, a Alemanha nunca renunciou totalmente às instituições nacionais. O Parlamento federal alemão é, por vezes, a última instituição a pronunciar-se em toda a Europa e a demonstrar que a palavra final é sempre alemã! Também o Tribunal Constitucional se ocupa de inúmeras casos de decisões constitucionais europeias e toda a gente espera pelos seus acórdãos. E não esqueçamos que frequentemente compete aos parlamentos estaduais alemães aprovar decisões europeias!

Destes factos há lições a retirar. E experiências sobre as quais meditar. É chocante verificar o facto de o Parlamento alemão ter mais poder do que o Europeu! Atrás da Comissão e do Conselho, a verdadeira estrutura parlamentar é o Bundestag! Mas o essencial desta história não é a hegemonia alemã, contra a qual podemos rosnar. O essencial deste episódio reside na ligação entre União e Estado, entre as instituições europeias e as nacionais. Os alemães não abdicaram desta relação.

Como se sabe, em Portugal, o povo, o eleitorado e o Parlamento foram deixados à margem dos processos de integração. Não houve aprovação parlamentar de muitas etapas da integração e do desenvolvimento. Como não houve referendo sobre as grandes questões europeias. Os próprios Chefes de Estado foram sendo deixados na berma, cada vez que um governo cioso e ciumento, do PS ou do PSD, dava passos em frente. Também o Tribunal Constitucional, que poderia ter funções especiais nesta área, foi deliberadamente mantido fora de tudo.

Assim se consumou o divórcio entre Nação, Povo e Estado, por um lado, Europa e União por outro. Foi erro grave. Também cometido por outros países europeus. Agora que há crise, que há populismos e nacionalismos que ameaçam a União e a democracia, agora se percebe que o cosmopolitismo federalista foi um caminho errado. Não se sabe se ainda vamos a tempo de recriar uma liturgia democrática que implique o povo e a nação. Mas sabe-se que vale a pena perceber que a democracia tem sempre um território. Uma história. E uma cultura. Coisas que faltam na União. Mas que sobram nos seus vinte e sete membros. Ela que as saiba aproveitar e não as espezinhe.

DN, 18 de Junho de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Sala de leitura da Biblioteca pública de Boston – É uma das maiores e melhores bibliotecas públicas do mundo. Tem mais de 20 milhões de obras, incluindo livros, manuscritos, partituras, obras-primas de pintura, mapas e gravuras. Sem esquecer CD, DVD, jornais e revistas Foi fundada há quase duzentos anos. É uma biblioteca municipal aberta a toda a gente, estudantes e donas de casa, ricos e pobres, profissionais e sem abrigo. Qualquer pessoa, sem controlo nem registo, pode entrar e frequentar a maior parte das salas. Como também é possível levar livros para ler em casa. É um exemplo perfeito do que pode ser uma biblioteca, eficiente, culta e acolhedora, onde se encontra um ambiente de quase felicidade, feito de silêncio e trabalho, onde se aprende e pensa. Há certamente outros sítios, como uma sala de música, um jardim ou um templo, onde o espírito está de acordo com os sentidos. Mas a serenidade de uma biblioteca é insuperável.

DN, 18 de Junho de 2017

domingo, 11 de junho de 2017

Sem emenda - A obra-prima de António Costa

A apreciação pública deste governo tem sido objecto de discussão. O tema é polémico. Os seus adeptos directos entendem que o sucesso é total. Os apoiantes indirectos, PCP e Bloco, garantem que o êxito se deve a eles. Os opositores afirmam o contrário: no essencial, o governo tem falhado e, dentro de pouco tempo, o desastre será completo. Segundo os críticos, os bons resultados devem-se à conjuntura internacional e ao facto de o governo actual copiar o anterior.

Sem julgamentos incondicionais, o melhor é ir por partes. O facto de ter durado até agora, sem maioria parlamentar clássica, é evidentemente um êxito. E deve-se a todos, sobretudo a Costa, mas também ao PCP e ao Bloco. O arranjo parlamentar foi obra de habilidade indiscutível. Mas há mais. Por exemplo, mesmo sabendo que o último ano do governo anterior já trazia boas notícias, ter conseguido quebrar o dogma da austeridade foi obra. Os rendimentos dos funcionários públicos, dos pensionistas, dos idosos e dos mais pobres aumentaram. Ainda não é um fenómeno de média duração, muito menos sustentável, mas é possível que a desigualdade social tenha diminuído um pouco. Tem obtido paz social, apenas interrompida por advertências pedagógicas dos sindicatos e do PCP. A redução do défice público parece ser talvez, até agora, o maior êxito do governo, e por isso, mau grado o cancelamento do programa de investimentos públicos, merece boa nota! O crescimento, o emprego e as exportações são também notórios e resultam da retoma europeia e do turismo, mas também do bom clima interno.

Nas colunas do deve, as notas não são tão agradáveis. O endividamento não baixou. O investimento ainda não subiu significativamente. A reforma institucional e do Estado está suspensa pelas eleições autárquicas. Os trabalhadores dos sectores privados, a maioria, ainda não viram benefícios comparáveis aos públicos. Na Justiça, na Educação e na Saúde não há melhorias visíveis, apenas notícias e compasso de espera.

Dito isto, temos a controvérsia da responsabilidade. São coisas que aconteceram? Por obra e graça de quê e de quem? Acção do governo? Retoma económica europeia? Aceleração do turismo? Animação do mercado interno e do consumo? Nuns casos sim, noutros não, sendo que muito depende dos partidos apoiantes, da economia europeia, do Banco Central e de outros factores externos e longínquos.

Este governo tem sorte. Em parte merece, em parte é enriquecimento sem justa causa. Pôs-se a jeito, como se diz na gíria. Aproveita os ventos, o que também é arte política. Outra parte ainda é a ajuda dada pelos partidos da oposição, sobretudo pelo PSD, que tem revelado uma quase absoluta falta de jeito.
Mas a verdadeira obra de arte do Primeiro-ministro é outra! Foi ter conseguido desvincular-se, ele e os seus ministros, do governo de Sócrates. Foi ter desligado este Partido Socialista salvador daquele outro Partido Socialista cangalheiro. Foi ter conseguido refazer a sua virgindade, suavemente, sem ruptura aparente, sem obrigar ninguém a desdizer-se ou a pedir desculpa, sem criar incómodos a ministros e sem dar argumentos a quem disser que o Partido tem duas caras. Foi ainda ter conseguido associar o Bloco e o PCP a este branqueamento inédito.

Os seis anos do mandato de José Sócrates constituíram uma espécie de peste negra que se abateu sobre o país. Aquele governo, apoiado nalguma banca pública e privada, ajudado por um bando de empresários sem escrúpulos e assessorado por consultoras internacionais complacentes, atingiu níveis de endividamento único na história de Portugal, assim como de corrupção, de desperdício de recursos, de destruição de empresas públicas, de favoritismo em concursos e nomeações… Foi provavelmente o mais nefasto governo de Portugal durante décadas. Sem criticar os seus feitos, sem partilhar os erros de Sócrates, sem assumir responsabilidades relativamente aos piores anos de governo de Portugal, António Costa e seus ministros conseguiram, sem nunca o ter feito explicitamente, distanciar-se daquele nefando governo e daquele execrável período. Esse, sim, é um feito histórico.

DN, 11 de Junho de 2017