domingo, 23 de fevereiro de 2020

Grande Angular - O Estado social: vitória e fiasco

O bem-estar e o conforto da população portuguesa tiveram melhoramentos importantes ao longo das últimas décadas. Os equipamentos e os electrodomésticos conheceram uma evolução impressionante. As grandes redes públicas disponíveis a domicilio, água, esgotos, electricidade, telefone e gás, ficaram praticamente acessíveis a toda a população nos anos noventa (partindo por vezes de percentagens da ordem dos 20 ou 30%). O mesmo se pode dizer dos equipamentos individuais e familiares, água quente, aquecimento, luz eléctrica, telefone, televisão e outros electrodomésticos que, dos anos setenta ao fim do século, chegaram a quase todas as casas. O número de pensões da segurança social e da Caixa Geral de Aposentações passou de cerca de 260 000, em 1970, para mais de 3 500 000, em 2018.
Se olharmos com atenção para outros indicadores ou “sinais”, como sejam os consumos alimentares de carne, peixe e produtos lácteos, por exemplo, ou o género de vestuário, os transportes, a saúde e a educação, depressa verificaremos que o progresso foi colossal. Também o Estado social, no seu conceito mais imediato (sobretudo Segurança social, Educação e Saúde), cresceu e melhorou, até ao fim do século, de maneira muito significativa. Toda a população, empregada ou não, contributiva ou não, foi integrada no sistema.
Sem perder de vista este progresso notável, convém olhar para outros aspectos. Depressa chegaremos à conclusão que o Estado social, além de ter vingado, também falhou. Especialmente na repartição de rendimentos, parâmetro clássico. Durante os primeiros anos a seguir à revolução, os rendimentos do trabalho e a despesa social aumentaram muito consideravelmente, certamente mais do que permitia a economia. Foi uma mudança importante, para um país tão desigual como o nosso. Logo a seguir, todavia, os desmandos da revolução, a crise económica e a tentativa de repor equilíbrios, fizeram com que a repartição de rendimentos estivesse dezenas de anos a agravar-se para o trabalho. Ainda há poucos anos, a parte dos salários no rendimento nacional era menor do que a equivalente na década de 1970. Isto é, o trabalho perdeu relativamente ao capital e à propriedade, às rendas e aos lucros.
Só no século XXI, depois de 2010, é que os salários mínimos e as pensões mínimas do regime geral da Segurança social alcançaram valores iguais aos de 1974. A preços constantes, só agora o salário mínimo ultrapassou os memoráveis 3 300 escudos de 1974, ano em que foi criado esse dispositivo. Também as pensões mínimas de velhice e invalidez só a partir de 2010, mais ou menos, chegaram aos valores de há quarenta anos.
Os famosos índices de Gini, que medem o grau de desigualdade numa economia e numa sociedade, revelam bem que certos progressos se vão fazendo, mas muito lentamente. E são facilmente postos em causa, como ocorreu durante o período dito de “assistência internacional” ou da “Troika”. Noutras palavras, os graus de desigualdade são, em Portugal, dos mais visíveis da Europa e do mundo ocidental. Com a ajuda dos trabalhos de Carlos Farinha Rodrigues e artigos de vários jornalistas ou comentadores, como em especial Alexandre Abreu, no Expresso, temos a clara visão de que os melhoramentos, por vezes reais, são no entanto frágeis e de pouca duração. Além disso, ficam aquém do que se passa na maior parte dos países europeus. Há, na sociedade portuguesa, poderosos factores de desigualdade social. Assim como fortes obstáculos à mobilidade social. Qual é a realidade desses factores? A propriedade? Sim, mas tanto é causa como consequência. O fisco e o regime sucessório? Talvez. A segregação social e económica nos serviços educativos? É possível. O sistema de cunhas e favores que vigora em todo o país? É provável. As leis? É difícil avaliar. A religião? Hoje, provavelmente não. O analfabetismo? Com certeza, mas já não é a mesma coisa. As muitas décadas de ditadura? Seguramente. Há ainda outros factores de muito difícil avaliação, mas que podem ter consequências nos graus de desigualdade: por exemplo, as migrações (emigração e imigração), a política, o sistema partidário e o centralismo administrativo têm provavelmente efeitos, mas de muito difícil avaliação.
A desigualdade social entre nós é muito maior antes de contabilizadas as prestações sociais. Quer isto dizer que o contributo do Estado social para esbater a desigualdade é real, mas muito insuficiente. O Estado social português, cujo início pode ser datado do final dos anos sessenta, está em parte na origem de melhoramentos extraordinários, mas em parte falhou. Hoje, os sinais mais evidentes desse falhanço poderão estar visíveis no modo como pensões e salários mínimos evoluíram, assim como no modo como se faz a repartição social do rendimento. 
É verdade que a evolução da produtividade foi fraca, o que reduz as probabilidades de melhoria dos rendimentos. Mas, mesmo com o fraco desenvolvimento económico das últimas décadas, o Estado português poderia ter feito melhor. Tanto para criar riqueza, como para a distribuir. Difícil é encontrar responsabilidades. Quem serão? As direitas, porque são indiferentes e não estão interessadas na igualdade social. As esquerdas, porque são demagógicas e corruptas. Juntas, esquerdas e direitas, porque são incompetentes e pensam exclusivamente no poder político e nos votos. As classes empresariais, porque são cúpidas e incultas. Os sindicatos, porque realmente só se interessam pelo poder político e pelos seus sócios. A Administração Pública, porque pensa sobretudo nela própria e porque não está pressionada para prestar atenção à questão social. As Universidades, porque estão mais interessadas em fazer política do que em estudar a realidade social.
Habituados como estamos a medir tudo, a apresentar estatísticas e percentagens a propósito de qualquer coisa e nada, temos às vezes dificuldade em sentir as desigualdades no quotidiano, sem recurso a indicadores. Ora, a verdade é que há uma dimensão da desigualdade particularmente presente entre nós. Os serviços públicos são iníquos e mal organizados. Todos os elogios que se fazem ao Serviço Nacional de Saúde, por exemplo, esquecem quase sempre que é esse mesmo serviço que, perante os fracos e os sem poder, demora meses e anos para uma consulta, uma análise ou uma cirurgia. O atendimento da maior parte dos serviços públicos (segurança social, serviço de estrangeiros, impostos, finanças, justiça, notariado e registos) é desorganizado e, com frequência, injusto, pois os poderosos podem sempre encontrar soluções. Há, nos serviços públicos, uma desigualdade invisível cruel. É essa a grande fraqueza do Estado social.
Público, 23.2.2020

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Grande Angular - A morte na primeira pessoa

No debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido, há elementos lamentáveis. As confusões deliberadas, feitas por políticos, activistas e jornalistas, entre suicídio assistido e eutanásia, assim como entre eutanásia activa e passiva, ou entre eutanásia voluntária e involuntária, são o resultado da ignorância ou da vontade de enganar. É igualmente deplorável que se trate o referendo como uma faculdade de mero oportunismo: quando convém, somos a favor do referendo; quando se receia o resultado, somos contra. É finalmente lastimável que haja quem utilize um tema como este para incomodar um partido ou obrigar a realinhamentos partidários. Mas paciência! A democracia é assim. A política também. Não vale a pena aspirar, nem sequer em temas como este, a uma discussão serena.
Como sempre, o debate sobre a substância transforma-se em discussão sobre os procedimentos e as intenções. O recurso ao referendo, por exemplo. É um clássico. Defendem-no os que têm possibilidades de ganhar, os que querem incomodar os adversários e os que desejam compensar uma previsível derrota no Parlamento. Os seus adversários são exactamente o contrário. A mesma pessoa ou o mesmo partido pode ser sucessivamente a favor ou contra.
Sou geralmente favorável ao referendo e à iniciativa popular. Gosto de referendos, com serenidade, peso e medida. São mecanismos de recurso ao soberano com méritos evidentes: associam a população a decisões importantes, implicam as pessoas em obra comum, fortalecem uma decisão, permitem que muita gente se associe à política sem ser exclusivamente pela via partidária e dão a oportunidade a um debate público. Mas também com enormes defeitos, como sejam a demagogia, o populismo e a simplificação de problemas complexos para além dos limites razoáveis. E bem sabemos que os referendos, a quente, podem ser demagógicos.
Não me parece razoável recorrer a referendos para certas questões que impliquem a vida, a religião e alguns direitos fundamentais. Mas, se houver quem queira e se existir uma percentagem importante de pessoas e de instituições que o pretendem, então que se faça! Mesmo se não concordo. Sempre defendi o referendo da Constituição e da integração europeia, que nunca se fizeram, mas não defendi o referendo ao aborto, que se fez. Não apoiaria um referendo aos impostos (“Concorda com a percentagem máxima de 10% do rendimento para o volume de impostos pagos?”), mas percebo que haja quem o queira e iria votar se houvesse. O problema é que não se pode gostar dos referendos quando convém e eliminar a hipótese quando há riscos de perder.
O “referendo à eutanásia” é para mim desajustado e equívoco, mas percebo que haja quem o queira, até para tentar contrariar uma provável maioria parlamentar. Se houver, lá estarei. Se houver assinaturas em quantidade suficiente, se houver pressão social (da Igreja, por exemplo), se houver debate e sobretudo tempo, faça-se! 
Reconhecendo os perigos do referendo, é possível imaginar dispositivos que os diminuam. Exigir participação ou maiorias qualificadas, por exemplo. Estes mecanismos moderam os ânimos. Mas há um outro, essencial, o tempo. Entre a proposta de um referendo e a sua realização deveria decorrer um prazo de amadurecimento de vários anos, o que teria o condão de diminuir a demagogia, de arrefecer os entusiasmos e de obrigar a ponderar os argumentos. Tempo é reflexão.
Lamento que tanta gente levada pelo entusiasmo das guerras de religião, simplifique o que não o deve ser. E que faça amalgama de argumentos. A designação de “morte assistida” é deliberadamente equívoca. Há uma diferença abissal entre suicídio assistido e eutanásia. Como existe uma diferença essencial entre vários tipos de eutanásia. Os que misturam tudo têm evidentemente intenções escondidas: incomodar os adversários, desviar os méritos da questão ou reduzir o debate a uma batalha campal com interesses partidários evidentes.
A minha vida é… minha! Não é de Deus, nem do Estado, nem da Família. Quero ser só eu, tão informado e lúcido quanto possível, a decidir sobre a minha vida. São muitos os motivos que me podem levar a querer continuar ou terminar a vida: dor, sofrimento, desespero, resignação, arrependimento, erro, culpa, demissão, abandono, solidão e outras. Sou adversário de qualquer decisão que dispense a minha escolha. Tentarei elaborar um testamento vital, como tentarei dar instruções aos médicos, aos parentes e aos amigos íntimos. Mas, se não conseguir fazê-lo (imprevisão, acidente, perda de razão, etc.), não quero que o Estado, o médico ou um familiar me substituam. Quero que a medicina faça o que tem a fazer, sem encarniçamento. E isso não inclui a legalização da eutanásia. Há mil situações de fronteira, incluindo algumas com riscos, que devem ser consideradas, em cada caso, em cada situação, mas que não exigem lei geral. Sou favorável à despenalização do suicídio assistido, na exacta medida em que essa decisão depende de mim. A minha liberdade é o principal critério de decisão. E não a religião, a dignidade, a lei ou a pressão familiar.
Os defensores da eutanásia invocam o argumento da dignidade (na vida e na morte) da pessoa humana. Fazem bem. E têm alguma razão. Mas não toda. Também há dignidade na maneira como se suporta a dor e o sofrimento. Também pode haver dignidade no modo como se desiste ou renuncia. Por isso, o argumento da dignidade não deve ser invocado. O principal argumento é para mim a liberdade pessoal, a decisão autónoma, expressa e conhecida.
Aludir a outras prioridades, como sejam o desenvolvimento económico, a educação ou a corrupção é absolutamente demagógico: objectivos e prioridades estão em planos diferentes e não são alternativos ou incompatíveis. Do mesmo modo, a utilização do argumento dos cuidados paliativos é semelhante. Não são alternativos. Com ou sem eutanásia, com ou sem suicídio assistido, os cuidados paliativos são essenciais e urgentes. Não é admissível que se dê a entender que existe uma alternativa: eutanásia ou paliativos!
A legalização da eutanásia involuntária é perigosa e moralmente discutível. E remete para o médico e os serviços de saúde, públicos ou privados, decisões polémicas que não deveriam ser as suas. Por isso, respeito a legalização do suicídio assistido. Para quem a liberdade individual é o critério essencial, a decisão pessoal é o factor chave. Sem o factor primordial, a decisão pessoal do doente e a sua liberdade, a eutanásia não deve ser legalizada.
Público, 16.2.2020

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Grande Angular - Anti-racismo. Antifascismo. Anti-comunismo

Vivemos tempos delicados. Por boas e más razões, a discussão sobre racismo nunca foi virulenta entre nós. Agora, felizmente, faz parte do quotidiano. Mas, infelizmente, num tom ácido que não ajuda. Como sempre, nem as boas discussões escapam aos preconceitos. Algumas esquerdas, grupos de minorias negras, activistas brancos e militantes anti-racistas têm feito, com êxito, o possível por criar um “conflito racial”. Na segurança, nos bairros, nas relações com a polícia e em todas as áreas do espaço público, sempre que possível, a questão racial é imediata. Como é um problema de difícil tratamento, a opinião está tensa. Os anti-racistas criam conflitos; os racistas ficam agressivos; quem não é racista nem anti-racista fica intimidado. O anti-racismo, com carga política, transforma-se em correcção. O racismo, com detestável violência, veste-se de patriotismo. Vivemos com inverdades rituais. O que fazem os brancos é racismo, o que fazem os negros é a condição social. Os brancos defendem os seus poderes, enquanto os negros exprimem o seu sofrimento. Os negros são vítimas revoltadas, enquanto os brancos são cáfilas decadentes. Os negros são intrusos, enquanto os brancos estão a ficar cercados. Com estas dicotomias, o progresso é difícil.
O anti-racismo tem parecenças com o anti-fascismo e o anti-comunismo. O radicalismo destemperado destrói princípios. Um combate, transformado em sistema, fica tão odioso quanto o objecto. Mas, entre estes três “anti” há, evidentemente diferenças. Fascismo e comunismo são escolhas políticas e filosóficas, enquanto racismo é preconceito. Há liberdade de ser fascista ou comunista, como há liberdade de ser anti-fascista e anti-comunista. Mas não há liberdade de ser racista. Como não há liberdade de ser ladrão, pedófilo ou proxeneta.
O anti-racismo tem um valor moral maior, porque é uma atitude de recusa de um preconceito e de uma forma de domínio ilegítima, enquanto o anti-fascismo e o anti-comunismo são escolhas facultativas. O fascismo e o comunismo não são formas de horror, não são ilícitos. Por isso mesmo, o antifascismo e o anticomunismo são lícitos.
O problema começa quando estes combates se transformam em programa. Para certas esquerdas, anti-fascismo é a virtude, enquanto o anticomunismo é condenável. Segundo as mesmas esquerdas, o antifascismo deveria ser regra, enquanto o anticomunismo deveria ser proibido. Foram essas esquerdas que inventaram o antifascismo, soma de virtudes, equivalente de liberdade, substituto da democracia, categoria simplória e tenebrosa que se limita a catalogar todos quantos não servem os interesses dessas esquerdas. Inventaram também o anticomunismo dos outros, soma de todos os defeitos. Para certas direitas, o antifascismo é vício de pensamento, enquanto o anticomunismo é virtuoso e equivalente de liberdade. Nas direitas, prega-se o anticomunismo, enquanto nas esquerdas decreta-se o antifascismo.
As diferenças entre anti-racismo, por um lado, e antifascismo ou anticomunismo, por outro, são evidentes. Num Estado moderno, civilizado e democrático, o racismo é um sistema e uma atitude que devem ser combatidos por formas legais. Não se deve proibir um indivíduo de ser racista, de ter as opções que entender, mas pode proibir-se o seu comportamento racista, a violência contra outrem, assim como os sistemas legais, as instituições e os dispositivos que consagram o racismo como regra. Tal como os seus contrários, fascista e comunista são escolhas livres, como tal devem ser tratadas. Tudo menos proibidas. É esta diferença que faz com que não haja pleno paralelismo. Fascismo e antifascismo, ou comunismo e anticomunismo devem ser livres. Racismo não.
Outro problema é o da reserva política destes conceitos. Fascismo e comunismo são insultos na voz dos seus detractores. Ainda hoje, tratar alguém de fascista é sinónimo de todas as maldades. Para os defensores de ideias tão primárias, ser-se anti-fascista é uma marca de qualidade, uma regra de origem. Comunista já foi insulto tão enorme quanto esse, nos tempos em que comiam crianças. Hoje, pouco mais é do que uma categoria política. Mas não tenhamos dúvidas de que a invenção do conceito de “antifascista” é obra dos que querem criar uma amálgama política. Nas esquerdas, define-se como antifascista quem é democrata, preza a liberdade, defende a igualdade e, já agora, simpatiza com o comunismo. Esta redução de inteligência tem efeitos: classifica de fascista os que não estão de um lado e de antifascistas todos os que seguem o outro. No essencial, o conceito de antifascista é oportunista e demagógico.
Apesar de tão diferentes, existem semelhanças entre anti-racista e antifascista ou anticomunista. Há uma fortíssima tendência para a exclusão. Por exemplo, o anti-racismo. Transformou-se numa profissão de fé. Numa moral. Numa política. Há sempre quem se julgue autorizado a definir o que é racismo, a determinar quem é inimigo e quem é vítima, a estabelecer o que as leis devem fazer. O anti-racista classifica de racista qualquer atitude, doutrina ou sentimento que esteja do “outro” lado. O anti-racista sabe que tantas vezes se transforma ele próprio em racista. O anti-racista estabelece quem está do bom e do mau lado. Por exemplo, o anti-racista define as vítimas do racismo, “negros”, mas esquece ou afasta outras vítimas, “brancos”, “chineses”, “indianos”, “monhés”, “ciganos”e “mestiços”. O anti-racista não admite a hipótese de negros serem racistas, o que é muito habitual. E tem dificuldade em aceitar que chineses, indianos e ciganos possam eles próprios ser, nos seus países e nos seus costumes, racistas.
O racismo é sempre odioso. É preconceito. É violento. É desumano. O racismo branco não justifica nem desculpa o racismo negro. As vítimas do racismo têm toda a legitimidade para lutar como entenderem pelos seus direitos e contra todas as formas de domínio violento. As vítimas do racismo não têm de esperar que os “senhores” lhes expliquem que métodos devem adoptar nas suas lutas. Mas as vítimas do racismo não têm o direito de utilizar a violência e o preconceito.
O racismo do dominador é pior do que o do dominado. Pior, porque com mais meios. Mas ambos são racistas. E ambos são de condenar. O racismo “branco” tem fama de superioridade, mas o racismo negro não tem desculpa. O racismo em África, na Ásia e na América Latina, por parte dos respectivos povos autóctones, não tem bula nem indulgência por estarem historicamente associados às vítimas do imperialismo. O racismo branco usa preconceitos científicos e biológicos para justificar o poder. O racismo negro ou amarelo usa meios de poder e identidade para justificar o seu domínio. Os brancos julgam-se superiores, enquanto os negros sentem-se mais fortes. Entre os dois…
Público, 9.2.2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Grande Angular - Os Reparadores da História

É fácil imaginar. A meio do ano, aproveitando o bom tempo, milhares de autocarros, camiões, carrinhas de segurança, comboios de mercadorias, aviões de carga, navios porta contentores e outros meios de transporte fazem-se à estrada, ao ar e ao mar. Uns atravessam a Europa, de Norte a Sul, de Leste a Oeste e vice-versa. Outros cruzam o Mediterrâneo e por ali ficam, entre o Egipto e Marrocos. Outros ainda preparam-se para atravessar o Sara e dirigem-se para as dezenas de países africanos a Sul do deserto. Os contentores e os aviões cruzam os mares Atlântico, Índico e Pacífico, em direcção a todos os continentes, onde os esperam milhares de camiões e de comboios, a fim de rumar para as planícies americanas, os vales asiáticos e as florestas de todos os sítios. Estão milhões de pessoas empenhadas na tarefa, incluindo motoristas, carregadores, polícias, forças armadas, arqueólogos, pintores, pedreiros, químicos, físicos, joalheiros e burocratas. Ao chegarem aos seus destinos, descarregam os bens que transportavam: edifícios, muralhas, obeliscos, pinturas, frescos, baixos-relevos, esculturas, múmias, jóias, objectos de ouro, de marfim e de lápis-lazúli. E muito, muito mais. Depois de tudo descarregado e devidamente verificado, os camiões, contentores, comboios e aviões são carregados com outras tantas dezenas de milhões de objectos, da mesma natureza ou diferentes, que serão entregues nos países onde tudo começou. É a grande tarefa da devolução de património e da restituição de obras de arte, com a qual se refaz justiça entre países iguais e irmãos, com o mundo a regressar a uma idade da inocência e da pureza de sentimentos.
É fácil imaginar. Fácil, mas impossível de realizar. Impossível, estúpido e errado. O que não impede que tanta gente, desde o presidente francês aos esquerdistas de todos os bordos, passando por ecologistas, bondosos sacerdotes e outros serafins, esteja actualmente tão empenhada em fazer leis para que tal se faça. Ainda não há resposta a nenhuma das perguntas essenciais (Quem? O quê? A quem? Onde?), mas as adesões a tais planos são mais do que muitas. Não apenas o que deve e pode ser feito, isto é, peças e objectos bem específicos, após reivindicação por titulares identificados, para indivíduos, países e instituições concretos e reais, com motivos de reclamação. Não. O movimento é geral e universal. Também em Portugal, pela mão de alguns esquerdistas, se prepara uma discussão parlamentar. Espera-se que o assunto se esgote rapidamente.
problema da impossibilidade é real. Não há gente, governos, académicos, polícias, militares, cientistas, artistas e comerciantes em número suficiente e que estejam de acordo. Não há povos que aceitem facilmente o princípio de refazer a história e de devolver o património que, entretanto, é seu. Não há condições práticas para levar a cabo tão colossal trabalho. Já houve exemplos passados de transportes de obras de arte e de património. De Madrid para Genebra, durante a guerra civil, para salvar os tesouros do Prado. Durante a segunda guerra, em França, na Inglaterra, na Alemanha e na Polónia, para proteger museus inteiros. Na Alemanha e na Polónia, para roubar museus locais e famílias judias. Nazis e Soviéticos levaram a cabo algumas expedições de pilhagem. No passado, os imperadores russos, prussianos e franceses, a começar por Napoleão, organizaram transportes desse género. Tal como descobridores espanhóis e portugueses. Foi possível transportar. Mas tudo isso é quase nada comparado com o que hoje deveria ser devolvido se seguíssemos os critérios destes reparadores de história.
Mais difíceis de resolver são as questões de fundo. Devolver o quê? Um quadro pintado em França por um pintor italiano e actualmente num museu alemão é de quem? Um artefacto egípcio, descoberto por uma expedição alemã dirigida por um arqueólogo francês e actualmente num museu inglês é de quem? Em geral, devolve-se a quem? Aos povos? Ao governo do dia, mesmo se for um governo de ditadores, predadores e cleptómanos? Aos novos burgueses desses países? Com que fim? Sob risco de serem vendidos mais uma vez? Destruídos?
Há evidentemente circunstâncias em que talvez seja um dever moral. Por exemplo, se for demonstrado que se trata de obra esbulhada. Se houver prova de pertença ou título de propriedade. Se soubermos quem roubou, a quem e quando. Se, na altura da apropriação, havia leis nacionais e internacionais que impediam o tráfico. Se há a certeza de que não foram bens legitimamente comprados. Se quem vendeu o fez livremente e não diante de ameaças. Se não houve contrabando. Se há antigos titulares que reivindicam os seus pertences. 
Há, por outro lado, na ausência de provas de propriedade, justificações fundamentais que aconselhariam a um exame da questão. Por exemplo, mesmo se comprados, faria todo o sentido que os frisos do Parténon, o Grande Altar de Pérgamo ou a Porta de Ishtar fossem devolvidos aos seus países de origem e recolocados nos locais devidos. Há certamente muitos mais casos de bens patrimoniais que fazem parte de um local ou de um edifício e que poderiam ser objecto de devolução. Mas, se não houver acordo, também daí não vem mal ao mundo. Há sempre a hipótese de fazer excelentes réplicas. O que tem a vantagem de impedir que a história volte a pregar partidas.
Ressuscitar nacionalismos é ridículo e perigoso. Veja-se o que aconteceria na Europa, com tudo o que os franceses, os castelhanos, os alemães e os ingleses pilharam uns aos outros e a todos os restantes durante séculos! Ou como os europeus rapinaram África, Américas e Ásia.
Mais grave e sério ainda é a teoria dos defensores da restituição. De grande parte deles, pelo menos. Há quem queira a devolução no quadro mais amplo de um pedido de perdão pelo colonialismo e de desculpa pelas conquistas, de penitência pela escravatura e de arrependimento pelo domínio político. Para devolver, reclamam, é necessário rever a história do país, repensar a colonização e considerar que esta foi um erro! E também será necessário mostrar verdadeira contrição pelas descobertas e garantir que não haverá mais racismo!
É um verdadeiro delírio adolescente que criou raízes nas mentes de tão ilustres europeus de pele branca e alma colorida. Sarar cicatrizes da história é uma actividade que conduzirá certamente ao desastre. Tal empreendimento é impossível, o que já é um bom argumento para não experimentar. Mas, tentado, dá tragédia.
Público, 2.2.2020