domingo, 9 de fevereiro de 2020

Grande Angular - Anti-racismo. Antifascismo. Anti-comunismo

Vivemos tempos delicados. Por boas e más razões, a discussão sobre racismo nunca foi virulenta entre nós. Agora, felizmente, faz parte do quotidiano. Mas, infelizmente, num tom ácido que não ajuda. Como sempre, nem as boas discussões escapam aos preconceitos. Algumas esquerdas, grupos de minorias negras, activistas brancos e militantes anti-racistas têm feito, com êxito, o possível por criar um “conflito racial”. Na segurança, nos bairros, nas relações com a polícia e em todas as áreas do espaço público, sempre que possível, a questão racial é imediata. Como é um problema de difícil tratamento, a opinião está tensa. Os anti-racistas criam conflitos; os racistas ficam agressivos; quem não é racista nem anti-racista fica intimidado. O anti-racismo, com carga política, transforma-se em correcção. O racismo, com detestável violência, veste-se de patriotismo. Vivemos com inverdades rituais. O que fazem os brancos é racismo, o que fazem os negros é a condição social. Os brancos defendem os seus poderes, enquanto os negros exprimem o seu sofrimento. Os negros são vítimas revoltadas, enquanto os brancos são cáfilas decadentes. Os negros são intrusos, enquanto os brancos estão a ficar cercados. Com estas dicotomias, o progresso é difícil.
O anti-racismo tem parecenças com o anti-fascismo e o anti-comunismo. O radicalismo destemperado destrói princípios. Um combate, transformado em sistema, fica tão odioso quanto o objecto. Mas, entre estes três “anti” há, evidentemente diferenças. Fascismo e comunismo são escolhas políticas e filosóficas, enquanto racismo é preconceito. Há liberdade de ser fascista ou comunista, como há liberdade de ser anti-fascista e anti-comunista. Mas não há liberdade de ser racista. Como não há liberdade de ser ladrão, pedófilo ou proxeneta.
O anti-racismo tem um valor moral maior, porque é uma atitude de recusa de um preconceito e de uma forma de domínio ilegítima, enquanto o anti-fascismo e o anti-comunismo são escolhas facultativas. O fascismo e o comunismo não são formas de horror, não são ilícitos. Por isso mesmo, o antifascismo e o anticomunismo são lícitos.
O problema começa quando estes combates se transformam em programa. Para certas esquerdas, anti-fascismo é a virtude, enquanto o anticomunismo é condenável. Segundo as mesmas esquerdas, o antifascismo deveria ser regra, enquanto o anticomunismo deveria ser proibido. Foram essas esquerdas que inventaram o antifascismo, soma de virtudes, equivalente de liberdade, substituto da democracia, categoria simplória e tenebrosa que se limita a catalogar todos quantos não servem os interesses dessas esquerdas. Inventaram também o anticomunismo dos outros, soma de todos os defeitos. Para certas direitas, o antifascismo é vício de pensamento, enquanto o anticomunismo é virtuoso e equivalente de liberdade. Nas direitas, prega-se o anticomunismo, enquanto nas esquerdas decreta-se o antifascismo.
As diferenças entre anti-racismo, por um lado, e antifascismo ou anticomunismo, por outro, são evidentes. Num Estado moderno, civilizado e democrático, o racismo é um sistema e uma atitude que devem ser combatidos por formas legais. Não se deve proibir um indivíduo de ser racista, de ter as opções que entender, mas pode proibir-se o seu comportamento racista, a violência contra outrem, assim como os sistemas legais, as instituições e os dispositivos que consagram o racismo como regra. Tal como os seus contrários, fascista e comunista são escolhas livres, como tal devem ser tratadas. Tudo menos proibidas. É esta diferença que faz com que não haja pleno paralelismo. Fascismo e antifascismo, ou comunismo e anticomunismo devem ser livres. Racismo não.
Outro problema é o da reserva política destes conceitos. Fascismo e comunismo são insultos na voz dos seus detractores. Ainda hoje, tratar alguém de fascista é sinónimo de todas as maldades. Para os defensores de ideias tão primárias, ser-se anti-fascista é uma marca de qualidade, uma regra de origem. Comunista já foi insulto tão enorme quanto esse, nos tempos em que comiam crianças. Hoje, pouco mais é do que uma categoria política. Mas não tenhamos dúvidas de que a invenção do conceito de “antifascista” é obra dos que querem criar uma amálgama política. Nas esquerdas, define-se como antifascista quem é democrata, preza a liberdade, defende a igualdade e, já agora, simpatiza com o comunismo. Esta redução de inteligência tem efeitos: classifica de fascista os que não estão de um lado e de antifascistas todos os que seguem o outro. No essencial, o conceito de antifascista é oportunista e demagógico.
Apesar de tão diferentes, existem semelhanças entre anti-racista e antifascista ou anticomunista. Há uma fortíssima tendência para a exclusão. Por exemplo, o anti-racismo. Transformou-se numa profissão de fé. Numa moral. Numa política. Há sempre quem se julgue autorizado a definir o que é racismo, a determinar quem é inimigo e quem é vítima, a estabelecer o que as leis devem fazer. O anti-racista classifica de racista qualquer atitude, doutrina ou sentimento que esteja do “outro” lado. O anti-racista sabe que tantas vezes se transforma ele próprio em racista. O anti-racista estabelece quem está do bom e do mau lado. Por exemplo, o anti-racista define as vítimas do racismo, “negros”, mas esquece ou afasta outras vítimas, “brancos”, “chineses”, “indianos”, “monhés”, “ciganos”e “mestiços”. O anti-racista não admite a hipótese de negros serem racistas, o que é muito habitual. E tem dificuldade em aceitar que chineses, indianos e ciganos possam eles próprios ser, nos seus países e nos seus costumes, racistas.
O racismo é sempre odioso. É preconceito. É violento. É desumano. O racismo branco não justifica nem desculpa o racismo negro. As vítimas do racismo têm toda a legitimidade para lutar como entenderem pelos seus direitos e contra todas as formas de domínio violento. As vítimas do racismo não têm de esperar que os “senhores” lhes expliquem que métodos devem adoptar nas suas lutas. Mas as vítimas do racismo não têm o direito de utilizar a violência e o preconceito.
O racismo do dominador é pior do que o do dominado. Pior, porque com mais meios. Mas ambos são racistas. E ambos são de condenar. O racismo “branco” tem fama de superioridade, mas o racismo negro não tem desculpa. O racismo em África, na Ásia e na América Latina, por parte dos respectivos povos autóctones, não tem bula nem indulgência por estarem historicamente associados às vítimas do imperialismo. O racismo branco usa preconceitos científicos e biológicos para justificar o poder. O racismo negro ou amarelo usa meios de poder e identidade para justificar o seu domínio. Os brancos julgam-se superiores, enquanto os negros sentem-se mais fortes. Entre os dois…
Público, 9.2.2020

1 comentário:

tempus fugit à pressa disse...

o racismo é a apregoada defesa contra os corpos estranhos, é a xenofobia de aldeia levada à escala nacional