domingo, 25 de março de 2018

Sem emenda - A prova de fogo

Os incêndios de floresta de 2017, dos piores da história de Portugal, dos mais mortais da Europa e do mundo no último século, deixaram feridas não cicatrizadas nas famílias, nas autarquias, nos campos e na natureza. Assim como na segurança colectiva e na confiança dos cidadãos. Agora, há relatórios de investigações, ao que parece competentes e independentes. O que, mesmo havendo polémica, como em tudo, já é um progresso. A conclusão essencial é devastadora: confirma-se, se é que era necessário, o falhanço dos sistemas de prevenção, de protecção e de socorro. Por outras palavras, a segurança foi muito deficiente. Mas aplaude-se o pagamento de indemnizações, o que, além de humano, é o reconhecimento de responsabilidades.
Há também relatórios sobre o desaparecimento de armas e munições das Forças Armadas e das Polícias. Relatórios mais discretos e não inteiramente públicos, não se percebe porquê. A conclusão primordial, a partir do que se sabe, comprova o que era evidente: fracassaram os sistemas de vigilância e de segurança.
O problema da segurança colectiva é muito grave. Dos mais sérios que se conhece. Mas, entre nós e nos tempos que correm, questão tão séria quanto a da segurança é certamente a da Justiça e do Estado de direito, o que implica apuramento de responsabilidades e capacidade de correcção de erros e negligências. Eis por que os próximos meses serão absolutamente decisivos. Serão a prova dos nove e a prova real para a nossa justiça. Poderemos verificar se tudo será diluído pelo sistema político e pela ineficiência. Ou se, pelo contrário, por uma vez, a justiça vai até ao fim.
Obcecados com as questões sociais (os de esquerda) ou económicas (os de direita), os governos portugueses estão a deixar instalar-se uma deriva de impunidade e de ineficiência da justiça. O assunto é sério: é a erosão do Estado de direito.
A segurança colectiva e a protecção civil constituem apenas um capítulo da fragilidade crescente do Estado. A privatização e a reprivatização de empresas e grupos, feitas em condições de poucas garantias, deixaram o país mais fraco. Até porque, em certos casos, algumas privatizações tiveram como destinatários Estados estrangeiros, o que é irónico e arriscado. Um Estado fraco e endividado vende de qualquer maneira.
Coladas às operações de privatização, as desventuras da banca portuguesa aumentaram a fragilidade do país. Constituíram a mais drástica destruição de valor levada a cabo na história recente, só comparável aos efeitos económicos da revolução de 1975 e às consequências económicas da descolonização. Além desse estranho fenómeno que é o da destruição de valor, assistimos, nas sucessivas crises bancárias, à apropriação de recursos e ao desvio de capitais, mais próprios do roubo do que da falência. Como muitos desses bens e recursos eram de milhares de pessoas, vieram os contribuintes compensar as vítimas dos assaltos. É uma nova figura de culto em Portugal: os custos públicos dos roubos privados.
Com a destruição de valor e o roubo de capitais, verificou-se ainda, sob a capa da internacionalização, um autêntico massacre de empresas que tinham conseguido uma posição interessante em áreas de inovação e desenvolvimento, como no caso dos cimentos, das telecomunicações e da energia. Esta reconversão de serviços públicos e de grupos nacionais em redes internacionais foi levada a cabo por gestores sem escrúpulos. Nada do que precede se fez sem intervenção directa do Estado, sem a colaboração de governos e sem a cumplicidade de governantes.
Mais uma vez: a Justiça em causa. Há, na verdade, dos incêndios às armas, entre o BES e o BPN, entre a PT e a EDP, entre Angola e China, entre o Brasil e a Venezuela e entre os vários grandes processos em curso, verdadeiras “causes célèbres”, um fio condutor: é o da ineficiência da Justiça.
Tudo está em saber se a democracia e o Estado de direito podem sobreviver à ausência da Justiça.
DN, 25 de Março de 2018

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Residentes no Teatro Nacional D. Maria, em Lisboa – Há uns anos que parte do Rossio, ruas adjacentes e Largo de São Domingos se transformaram em ponto de encontro de africanos, muçulmanos, asiáticos e, por vezes, uns europeus. Nos acessos ao Teatro, há sempre uns velhotes a descansar ao sol, a jogar às cartas, a conversar, a intrigar, a trocar notícias de outros continentes. Ali perto, fica A Ginjinha, frequentada mais por turistas e lisboetas. Lojas de roupa “étnica”, produtos longínquos e géneros exóticos dão cor e vida. Todo aquele local encontra-se hoje em mudança. Há vários riscos para a evolução futura daquele bairro e daquelas paragens. Transformar-se em bairro degradado e marginal é uma hipótese. Outra é a da operação de limpeza étnica. Qualquer delas é odiosa. Manter a doçura cosmopolita e cuidar da qualidade urbana, preservar a humanidade, tratar da beleza do sítio e garantir a limpeza e a segurança… Estas seriam as boas hipóteses. Sempre as mais difíceis.
DN, 25 de Março de 2018

domingo, 18 de março de 2018

Sem emenda - A desigualdade na saúde

Por António Barreto
É provável que a saúde, em Portugal, esteja à frente do progresso. A saúde e, em particular, o Serviço Nacional de Saúde, vêm antes dos outros, educação, segurança social, justiça, protecção civil e segurança, em eficácia e qualidade. A razão parece simples: é o sector menos ideológico, menos submetido à polémica partidária, mais exposto à opinião, influenciado pela ciência, aberto ao mundo e com superior responsabilidade dos técnicos e cientistas.
O Serviço Nacional de Saúde é justamente defendido por quase toda a gente. Há polémicas, desde o papel da ADSE aos subsistemas, passando pela concorrência e pelo papel dos privados. Isso é certo. Mas o papel essencial do SNS não é posto em causa. Partidos de esquerda e de direita são convergentes, ninguém sugere a sua extinção. Mesmo se o pensam, não o dizem. Ricos e pobres defendem o SNS. Utentes de unidades públicas e das privadas defendem o SNS.
É verdade que há quem queira dominar a medicina privada, limitando-a ou proibindo-a. Como há quem queira privatizar a saúde pública. Mas não parece que estas opiniões tenham muitos seguidores, nem sequer hipóteses de se concretizar, a não ser nas cabeças dos polemistas de serviço nos partidos, nas ordens e nos sindicatos.
A actual agitação no universo da saúde, especialmente pública, tem causas clássicas: carreiras profissionais, vencimentos, horários, folgas… O habitual. Quando os profissionais falam em qualidade dos cuidados, “para bem dos doentes”, estão evidentemente a usar eufemismos para o que está em causa: as condições de trabalho. Mas existem também as tentativas de intervenção dos partidos políticos, de esquerda e de direita, que tentam perturbar o governo ou obter vantagens.
O problema novo é que parece que a saúde está em crise. As dívidas estão descontroladas. Há talvez cinco ou dez anos, a situação sanitária tem vindo a deteriorar-se. Menina de 15 anos, com mais de 40 graus de febre, espera na urgência até seis horas para ser atendida. Rapaz de quinze anos espera seis meses por cirurgia urgente. Senhora de setenta fica deitada em maca, no corredor, durante três dias, para tratamento urgente. Medicamentos em falta nas farmácias e nos hospitais. Os tempos de espera por consulta, exame, análise e cirurgia aumentam. Estes casos não são literatura: são de pessoas conhecidas que se dirigiram às urgências dos melhores hospitais públicos da sua área de residência.
Que provoca a deterioração do serviço? O número de profissionais parece não ser. Na verdade, o aumento de médicos e de enfermeiros por habitante é constante há várias décadas: Portugal era o último país da Europa em 1980 e é hoje um dos primeiros. Quebra de qualidade e competência dos profissionais? Nada faz crer nisso. Situações epidémicas graves? Não parece. Fuga dos bons profissionais públicos para as entidades privadas? O argumento é puramente demagógico.
Sempre na esperança de que estudos independentes possam dizer mais, tudo leva a crer que estejamos diante de dois factores primordiais: baixa de financiamento e organização deficiente. Esta, apesar dos enormes progressos registados nos últimos trinta anos, continua a ser uma forte razão. Ineficiência que se traduz ou resulta da falta de autonomia, do poder excessivo dos corpos profissionais, da confusão de funções, da acumulação de vínculos em sectores privados e públicos e da falta de recompensa para a gestão de mérito.
Mas a primeira razão parece mesmo ser a da redução do financiamento. É verdade que a despesa com saúde, em percentagem do PIB ou por habitante, tem descido. Parece estar agora em recuperação, mas muito ligeira e lenta. Que será preciso para que se mantenha a saúde no topo das prioridades? Com o máximo de controlo financeiro? Com o mínimo de desperdício? Com um real esforço de eficácia social, isto é, uma tentativa permanente de evitar que os menos afortunados e os mais pobres não estejam a ser sistematicamente desprezados nas filas de espera e na qualidade do atendimento?
A desigualdade social na saúde é a mais cruel de todas.

DN, 18 de Março de 2018

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Convento de Cristo, Tomar – Escadaria principal de acesso à igreja, à Charola e aos claustros. Este é um dos grandes monumentos, como a Batalha, Alcobaça e Jerónimos: são os mais visitados pelos turistas portugueses e estrangeiros. Todos tão elogiados e tão menosprezados, bem mereciam, neste Ano Europeu do Património Cultural, mais atenção, melhores políticas, mais recursos e uma visão consistente que permitisse ordenar, preservar, estudar e divulgar sem estragar… Alguns destes monumentos de enorme dimensão e complexidade, não chegam a ter uma dúzia de técnicos e funcionários que vendam bilhetes, acompanhem, estudem, divulguem, guardem, conservem, protejam, administrem… Será assim tão difícil, a qualquer governo, qualquer ministro, qualquer partido, considerar realmente prioritário este património único e irrepetível, sempre em risco de se deteriorar, sempre à beira de ser roubado e destruído, como já foi tantas vezes e ainda é? A questão é simples: o património faz-nos, é também o que nós somos.
DN, 18 de Março de 2018

domingo, 11 de março de 2018

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

O MAAT e a Velha Senhora – Os últimos dias trouxeram aquilo que poderia ser um problema difícil, mas parece ser apenas uma trapalhada habitual. A Velha Senhora, a bela ponte do Tejo, tem rugas! É normal, estranho seria que assim não acontecesse. Claro que se vai discutir o preço e sobretudo quem paga. Vai ver-se que o contrato deixou o Estado a perder, o que também é habitual. Que os partidos estão a fazer uma cena, nada de novo. E que as autoridades, não se sabe por que carga de água, tentaram manter confidenciais relatórios e despachos. Deve ser uma história de rugas, que toda a gente tenta esconder. Verdade é que esta maravilhosa ponte continua ali, altiva, suave e bonita. E por mais anos estará. E nem sequer é ofuscada pelas novas criações que surgem à sua beira. A começar por este MAAT, que já transformou parte da margem direita e que, depois do espalhafato da novidade, tem agora uns poucos anos para mostrar o que vale.
DN, 11 de Março de 2018