domingo, 29 de março de 2020

Grande Angular - O que sobra e o que resta…

Salvar milhões de pessoas. Tratar dos doentes. Lutar contra o contágio. Conter a propagação. Liquidar o vírus. Impedir o seu regresso. Preparar meios para curar os infectados. Descobrir uma vacina. Fazer tudo isto nas melhores condições de equidade. Tratar todas as pessoas igualmente, sem favorecer classes sociais, raça, etnia, religião, origem, idade, sexo, crença ou partido. Esta é uma prioridade.
A outra prioridade é tratar do que vem a seguir. Da sociedade que se mantém de pé. Mas também daquela que fica de rastos. Ocupar-se das empresas, do emprego, do Estado, da educação, da segurança social e da justiça. Da economia que vai ser necessário reerguer. Das instituições a que vai ser preciso dar vida. Da democracia que vai sair ferida. Dos direitos individuais que vão ser diminuídos. Da tolerância que vai sair magoada. Da compaixão que vai ser pisada por muitos. Da informação que vai ser necessário salvar da morte iminente.
Fazer as duas coisas que parecem ou são contraditórias: este é o grande problema. Fazer com que os cientistas e os técnicos, sem se envolver em política, encontrem os remédios e tratem de quem necessita. Mas fazer também com que os políticos façam as leis necessárias, sem se envolver em ciência. Fazer ainda com que os serviços hospitalares e de saúde pública cumpram os seus deveres sem se envolver em ciência nem em política.
Vivemos tempos muito difíceis, inéditos para a maior parte da população, em que é frequente encontrar quem saiba tudo de tudo. Quem tenha soluções para a ciência, a administração, a economia, o emprego, a educação e tudo o resto. “Há que…”, “É só…”, “Basta…”, “O que é preciso é…” estão entre as expressões mais ouvidas nas televisões e mais lidas nos jornais! E o problema é que todos têm direito a tudo, às suas opiniões e às suas asneiras, mesmo erradas… Como todos têm o direito de viver com ansiedade, de ter medo, de imaginar soluções. Mesmo os tolos que dizem que o vírus é mortal para capitalismo e os idiotas que garantem que o vírus é o golpe de misericórdia no comunismo: todos têm direito à opinião. As asneiras e as parvoíces de muitos são a liberdade de todos. E isso é o que interessa.
É essencial tratar da doença. Encontrar as suas causas. Inventar a sua cura. Descobrir a vacina. O que se dispensa é quem aproveita para fazer contrabando de política, tão grave quanto os que fazem mercado negro de máscaras ou papel higiénico. Já se percebeu que há quem queira aproveitar para liquidar direitos dos trabalhadores, despedir precários, reformar efectivos, baixar salários, reduzir a segurança social, diminuir os impostos, tudo legalmente e de modo definitivo. Mas também já se percebeu que há quem queira liquidar a iniciativa privada, as empresas, as instituições particulares de solidariedade, o mercado, a liberdade de estabelecimento e de iniciativa. 
Dar a prioridade às condições sociais e económicas, como muitos fazem, é ridículo. Ouvir um sermão esquerdista sobre a luta de classes e o sector público, a propósito do vírus, com o maior oportunismo sectário que se imagina, é convite a descrer nas capacidades de inteligência. Considerar que tem de se tratar da questão biológica e médica, sem atenção às condições sociais, económicas e políticas, é miopia indesculpável ou intenção eugenista inaceitável.
Quem tem duas assoalhadas, sem aquecimento, para seis pessoas, não tem as menores condições para “ficar em casa” e se salvar. Quem vive em lares miseráveis está condenado. Quem não tem meio de transporte seguro não tem acesso a alimentos frescos. Quem não tem instrução não percebe as recomendações. Quem vive nos arredores ou em isolamento não consegue chegar com segurança às instituições. Quem não tem emprego não consegue comprar pão. Quem é despedido não pode tratar da saúde dos seus. Quem tem pensões mínimas fica sem capacidade de acorrer ao que é necessário. Quem vive no limite da sobrevivência não chega ao que já é mais caro e inacessível. Quem não tem meios não pode contrariar os mercados negros que proliferam. Quem não tem wireless, telefones modernos, telemóveis à altura, iPad capazes, conhecimento informático avançado e assinaturas de redes, não tem meios para ser informado devidamente. Quem vive sozinho e tem problemas de deslocação fica nas margens da sociedade. Quem tem outras doenças e insuficiências vive em pânico.
É tão difícil combater ao mesmo tempo o vírus, a pobreza, o privilégio e o despotismo! É tão difícil tratar das duas coisas, do imediato e do futuro! Da saúde e da sociedade! Da vida e da democracia! É tão difícil tratar de tudo sem demagogia, sem oportunismo, sem aproveitamento político! É tão difícil deixar à ciência o que é da ciência, à política o que é da política, à cultura o que é da cultura e aos indivíduos o que é deles! É tão difícil impedir que a emergência se transforme em regra! Que a eficácia liquide a liberdade! Que a centralização de esforços se transfigure em sistema de vida! Que a vida e a saúde sejam cada vez mais o recurso colectivista e a mercadoria capitalista! Encarar estas dificuldades ou contradições é o princípio de uma sociedade decente.
Algumas das coisas que começarem a ser feitas agora ficarão para sempre. A solidariedade europeia, por exemplo. O que de bom ou de mau se fizer agora, ficará para depois. A dimensão do Estado, também. O necessário reforço do Estado na saúde pública e na ciência médica poderá, depois, transformar-se numa monstruosidade burocrática ou numa máquina lucrativa de mercadoria. Se a força do sistema nacional de saúde não for preservada, fácil será voltar ao seu declínio. Se muitos direitos individuais forem contidos agora, podemos ter a certeza de que, depois, será difícil voltar atrás. Se a comunicação social livre desaparecer agora, é certo e sabido que nunca mais voltará a ser o que foi nem o que deve ser. O que fizermos agora com a autoridade do Estado, a liberdade individual, a cooperação europeia ou o fecho de fronteiras nacionais é o que provavelmente ficará para depois.
Não é o vírus que fará o que quer que seja às sociedades. O destino será o que as pessoas quiserem fazer para lutar contra o vírus, pela saúde e pelo futuro. Haverá mais comunismo e mais despotismo se as pessoas quiserem. Haverá mais mercadoria e mais capitalismo se for isso que as sociedades desejam. Não é por causa do vírus que teremos, a seguir, mais liberdade, mais segurança, mais igualdade e mais decência. Se tivermos, é por causa de nós. Se não tivermos, é por nossa causa.
Público, 29.3.2020

domingo, 22 de março de 2020

Grande Angular - Medo

Com certeza que tenho medo. De morrer. Mais ainda, de sofrer. Pior, de perder os que amo. É moda garantir que não temos medo, que não devemos ter medo e que devemos lutar contra o medo. É bem afirmar que vamos vencer, que sairemos desta prova reforçados, que lutaremos com todas as energias e que, no fim, ganharemos. É lugar-comum persistente e enganador que diz que “se não tivermos medo, venceremos o medo”. Pode ficar bem a certas pessoas dizer isso. Mas é enganador. E errado. Não corresponde à verdade e convida à irresponsabilidade. Não ter medo da morte, da sua e da dos seus, é não dar valor à vida.
Ter medo é, muitas vezes, o mecanismo essencial que nos leva a resistir, a organizar a luta e a tomar precauções. A evitar disparates. A correr riscos inúteis. Ter medo é frequentemente o que nos dá coragem para evitar a tragédia e para combater o demónio. Ter medo é o que nos permite, tantas vezes, escapar ao acidente e à catástrofe. Não conheço quem se tenha livrado do perigo ou derrotado o inimigo sem ter medo, justamente diante da ameaça e perante o inimigo. Ter medo é recear sofrer e perceber que existem altas probabilidades de perder familiares, amigos e pessoas que admiramos, além de eu próprio morrer ou sofrer da doença. Ter medo é recear que efeitos colaterais, incompetências, preconceitos e injustiças provoquem ainda mais desastres e dramas na vida das pessoas queridas e da minha comunidade. 
É evidente que ter medo se pode transformar em pânico, em excesso que paralisa e em pavor irracional. Contra esse medo, também teremos de lutar. Mas não vale a pena fazer o discurso que engana e mente, que garante que não temos medo, nem devemos ter medo. Estas tiradas políticas têm sempre qualquer coisa de machista e marialva insuportável. Quem diz não ter medo está geralmente a tremer de terror ou é exibicionista absolutamente irresponsável.
Tenho medo desta doença, como tenho medo da guerra, da violência, do assassino, do torturador, do selvagem, do criminoso, do terramoto, da inundação e do incêndio. E não vejo que haja mal nisso. Ter medo significa amar a vida e as pessoas. Ter medo implica recear perder qualidade e talento, ver desaparecer oportunidades e obras a fazer. Ter medo quer dizer recear perder quem nos faz falta e quem amamos.
Depois das alterações climáticas que mobilizaram as opiniões e as consciências durante anos seguidos e chegaram agora ao seu ponto mais intenso de alarme, não tivemos repouso e apareceu esta nova ameaça, a da doença inexorável e da pandemia aterradora. É provável que a ciência e os cientistas, a medicina e os médicos, os enfermeiros e os cuidadores, acabem por vencer. Antes disso, todavia, os hospitais estarão sobrelotados e os cemitérios cheios.
Ainda por cima, o paradoxo da previsão aterra mais do que tranquiliza. As estatísticas e a matemática quase nos dizem quantos vão morrer, a que ritmo, em que locais e em que países. Este absurdo, que permite saber com antecedência quantos milhões vão ser infectados e quantos milhares vão morrer, não chega para evitar o mal, até porque as previsões já contam com isso mesmo, o facto de se prever, de se lutar contra e de evitar uma parte, mas não tudo. Ao contrário do que se diz, o inimigo não é invisível, sabe-se o que é, onde está, como actua, por onde se propaga e quantas vítimas vai fazer… Invisível é o ataque. E é esse que mata. É contra esse inimigo que as sociedades e as pessoas podem fazer qualquer coisa.
Todos nós temos uma esperança irracional: a de que escaparemos, a de que os nossos poderão salvar-se, a de que uma cura chegará a tempo de travar o desastre, a de que a vacina será inventada antes do fim do ano e que evitará milhões de mortos… Esta esperança ajuda-nos a organizar a vida, a prever, a evitar… Mas sabemos que muitos ficarão para trás.
Também tenho medo do diabo. Que vive no pormenor, como é sabido. As nossas melhores leis perdem diante do real e da vida. As medidas mais sofisticadas são derrotadas pela rotina e pela incompetência. Os sistemas de defesa e os mecanismos de ataque podem ser fenomenais, dispendiosos e sofisticados, mas podem perder tudo por uma luva, uma máscara, um fato de protecção, um ventilador, um reagente, uma seringa e um tubo de ensaio. Os melhores planos podem falhar porque a injustiça social é mais forte e porque a burocracia resiste. Leis maravilhosas no papel falham estrondosamente sem serviços à altura, sem equipamentos, sem pessoas e sem conhecimento prático.
Há meses que se está à espera disto. Em Portugal e noutros países. No mundo inteiro. Como se explica que não haja máscaras para os médios e os enfermeiros, que faltem os equipamentos de protecção e transporte de doentes, que faltem ventiladores, luvas, máscaras, álcool, desinfectante, papel higiénico e reagentes? Há semanas que sabemos que isto ia acontecer. Há muito que devíamos estar preparados. Mais bem preparados, pelo menos.
Esta semana, a evidente falta de sintonia ou de convergência entre Presidente, Governo e Parlamento, a propósito do estado de emergência, foi sintoma aterrador, pela aparente falta de consciência e responsabilidade. Mas, finalmente, uma réstia de sensatez permitiu um acordo em que a regra geral está aprovada e o governo trata agora de assegurar a eficácia prática e gradual das medidas e das acções. Mesmo com reserva mental e com manha política, foi importante os três terem chegado a este acordo. Mas não esqueçam os ventiladores, as máscaras, as luvas e os reagentes. É aí que se perdem os combates, não nas leis.
Criámos uma sociedade de heróis vácuos, de espectáculo e de satisfação imediata, sem medo, sem amanhã e sem futuro… Fizemos uma sociedade de produto e marca, de performance e produtividade. Inventámos uma sociedade de banalidades e futilidades, de falso brilho e de satisfação efémera. Concebemos uma sociedade que idolatra o risco, sem se dar conta de que esse valor é geralmente destruidor de pessoas e de sentimentos. Houvesse um pouco de medo, de receio do inútil e do vistoso, e talvez estivéssemos mais bem preparados para esta praga.
Público, 22.3.2020

domingo, 15 de março de 2020

Grande Angular - Emergência e razão

É tão fácil perceber!
Os responsáveis pela pandemia e por esta loucura gerada à sua volta são os chineses, o respectivo governo, as suas forças armadas, os seus industriais e os seus comerciantes. Internamente, aproveitam para reforçar a ditadura. Externamente, perturbam o mundo inteiro, fazem mal aos Estados Unidos e aos Europeus, promovem as vendas dos seus produtos farmacêuticos e fazem subir os preços dos seus produtos industriais e electrónicos. Quanto ao número de chineses mortos, ou se trata de mentira descarada permitida pela censura daquele país, ou então é verdade, mas não tem muita importância, dado que eles têm uma noção diferente da vida e da morte das pessoas e que, de qualquer maneira, há tantos chineses!
Como é cada vez mais evidente e provado em relatórios secretos, foi um acidente ocorrido nas instalações chinesas de investigação e produção de vírus e bactérias destinados à guerra biológica e que de qualquer maneira teriam o mundo ocidental como destino.
Na verdade, as várias explicações fornecidas ao público são geralmente boatos destinados a encobrir a verdadeira razão: a origem está de facto nas instalações fabris chinesas destinadas a produzir armas biológicas de destruição maciça, mas tratou-se da execução de um plano deliberado de ameaça às economias e às políticas ocidentais, com o intuito de os obrigar a aceitar as regras e as condições chinesas para os mercados internacionais.
Tem custado muito a ser averiguado, mas já há alguma evidência capaz de sustentar o argumento de que foi este o mais bem urdido plano russo para destruir o ocidente liberal e democrático, facto visível nas quase nulas taxas de mortandade e de contágio verificadas na Rússia.
Tudo leva a crer que tenham sido os grupos islâmicos, moderados ou radicais, que assim conseguiram, pela primeira vez na história, cancelar milhares de missas e outras liturgias católicas através de toda a cristandade, especialmente preparadas para as festividades da Páscoa.
Há provas de que foram os judeus, mais uma vez, que melhor souberam aproveitar o vírus chinês, a fim de ameaçar os europeus e árabes, seja porque não são solidários com o Estado de Israel, seja porque aceitam fazer Jogos Olímpicos e Campeonatos de futebol em países muçulmanos.
A pandemia descontrolada é evidentemente alimentada pelas comunidades racializadas do mundo inteiro (especialmente negros e ameríndios), na mais clara e eficaz campanha de descrédito da civilização ocidental e europeia.
Trata-se de uma das mais conseguidas campanhas de terrorismo jamais concebidas e postas em prática, que não só vai destruir a serenidade em muitos países, desviar as atenções da segurança interna fazendo-as concentrar na segurança sanitária e atacar frontalmente alguns dos países mais ferozmente inimigos do terrorismo, designadamente os Estados Unidos e a China. É aliás surpreendente que ninguém tenha reparado que até agora não morreu um só dirigente dos movimentos terroristas e ninguém, daqueles grupos, tenha sido infectado.
Os principais responsáveis por esta verdadeira paranóia são evidentemente os laboratórios farmacêuticos, os produtores de vacinas e de desinfectantes que esperam ganhar milhares de milhões com este desvario. Não se sabe se foram eles que produziram e espalharam o vírus, ou se apenas se limitaram a aproveitar a oportunidade para fomentar a neurose e estimular as despesas colossais já em curso. Mas que são os primeiros responsáveis pela histeria não sobram dúvidas.
Como é evidente, esta alegada pandemia não é mais do que obra dos movimentos e grupos de extrema-direita, dos nacionalistas, da supremacia branca e dos racistas de todas as comunhões, na tentativa de destruir as liberdades de deslocação, os fluxos de refugiados e emigrantes, a miscigenação das populações a e integração das minorias.
Não há dúvidas de que este fenómeno, se não foi causado, foi pelo menos aproveitado pelas forças liberais e ultraliberais, a começar pelos grupos privados de hospitais e medicamentos, com o objectivo de destruir os serviços nacionais de saúde e todos os serviços públicos de saúde, protecção e educação.
Tem sido uma verdadeira conspiração dos governos ocidentais que, aproveitando-se de um acidente sanitário chinês, fabricaram uma autêntica crise internacional e têm vindo a promover um pânico colectivo que não tem outro fim que não seja o de desviar as atenções das populações e da comunicação social para os graves problemas políticos, sociais e económicos dos respectivos países e dos sistemas democráticos aí vigentes.
            A psicose colectiva e o pavor das multidões foram fenómenos induzidos pelo governo português, a fim de desviar a atenção do público e de não reflectir nos verdadeiros problemas do povo e dos trabalhadores.
Está claro que foram os sindicatos, designadamente os de funcionários públicos e de professores, os principais responsáveis pela neurose, com a intenção de beneficiar de umas semanas de precaução, mas, na verdade, ganhar umas férias pagas e pelo menos duplicar a duração das férias de Páscoa.
            A paranóia persecutória está a ser alimentada pelo governo português que, não vendo como resolver os seus problemas de maioria parlamentar e de governabilidade, melhor não viu do que desencadear esta crise artificial com o objectivo de reforçar o seu poder e de reduzir o espaço de manobra dos seus adversários.
            As farmácias, as drogarias e os supermercados, assim como as lojas dos chineses, têm alimentado o alarme, esvaziam artificialmente as prateleiras e colocam cartazes nas montras anunciando produtos esgotados, pois assim limpam stocks e vendem produtos fora de prazo.
            As redes sociais e os órgãos de comunicação exclusivamente on-line decidiram demolir definitivamente os jornais ainda impressos em papel e, graças à sua superioridade de fornecimento de notícias ao minuto, torná-los simplesmente obsoletos.
            Só não vê quem não quer!
Público, 15.3.2020

segunda-feira, 9 de março de 2020

Grande Angular - Estar à altura

É bem provável que nunca os Portugueses tenham vivido um período igual na sua história. Não há memória de uma convergência de processos judiciais desta importância, nem de que um tal conjunto de crimes e infracções se tenha amontoado às portas dos tribunais e nos corredores das polícias. Nem aquando das revoluções de 1910, de 1926 e de 1974, até porque as revoluções, por definição, fazem a economia da justiça. Mas também é certo que, nos anos que antecederam e sucederam às revoluções, os Portugueses, eméritos juristas falhados, se dedicaram vorazmente aos processos judiciais, tentando resolver nos tribunais o que à política, à economia e aos costumes pertencia. Mas nem nessas alturas se viu uma tão medonha coincidência de processos e de casos com fortes repercussões políticas como aquela a que assistimos agora.
Sucedem-se os raides de polícias, de inspectores, de agentes ou funcionários das Finanças, dos Impostos, da Judiciária e dos Estrangeiros, em casa de poderosos, nos bancos, nas empresas, nos clubes de futebol, nos escritórios de advogados, nas sociedades de consultoria e auditoria e em departamentos governamentais. Já quase não há semana sem rusga. De repente, pela manhã, brigadas de funcionários fiscais batem às portas de empresas e de domicílios. Sucedem-se as pesquisas e as contrafés. Deixaram de se fazer as velhas rusgas da ASAE, substituídas agora, dada a sua impopularidade, pelas buscas fiscais e equiparadas.
É triste, mas a verdade é que grande parte da actividade política, financeira, administrativa e recreativa do país está sob suspeita. Um primeiro-ministro, ministros e deputados são hoje nomes tóxicos. O maior grupo privado financeiro está nas ruas da amargura e parece ter dado conta de milhares de milhões de euros. Vários bancos de menor importância foram objecto de roubo e desvio e depois de inquérito, resgate e falência, ficando quase sempre por punir os responsáveis e por apurar o destino dos rendimentos. Todo o episódio dos interesses angolanos em Portugal e portugueses em Angola deixou em aberto uma visão infernal de promiscuidade e vulnerabilidade que parece sem remédio. Os famigerados roubos de Tancos e subsequentes episódios de fraude, ocultação e mentira deixaram as Forças Armadas com mácula e o governo com culpa. Até as tragédias dos incêndios florestais acabaram por desvendar uma teia de corrupção, dissimulação e roubo.
As melhores empresas portuguesas da banca, das telecomunicações, da energia, dos cimentos e dos transportes foram destruídas ou vendidas sem critério, deixando quase sempre suspeitas corrupção ainda por averiguar. Uma das maiores indústrias portuguesas, a de jogadores e treinadores de futebol, está sob inspecção por centenas de funcionários, polícias e técnicos, naquela que é seguramente a mais porosa, para não dizer criminosa, das actividades económicas do país.
Sabe-se que, num país pequeno como o nosso, o tecido de interesses ilegítimos e de crimes de colarinho é tão denso que “isto anda tudo ligado”. Parece não haver casos simples. Daí os “mega processos”, entidade original e contraproducente. Processos com milhares de volumes, centenas de milhares de páginas, anos de inquérito, centenas de funcionários, milhões de horas de trabalho e dezenas de testemunhas são excelentes candidatos a nunca chegarem a conclusões, a prescreverem e a ficar de tal modo confusos e intrincados que não seja possível levar a julgamento. Pior ainda, são de tal modo complexos que se não podem investigar e instruir decentemente. É muito fácil uma insuficiência de prova “poluir” os restantes argumentos.
Durante muito tempo, pensava-se que o problema da justiça era sobretudo de meios, de pessoal e de processos legais. Assim como de passividade do universo legislativo e de receio do poder político. Agora percebe-se que é muito mais do que isso. É também de promiscuidade e corrupção. De luta entre profissões e corpos judiciais. De fidelidades partidárias e idiossincráticas de muitos dos seus agentes. De manipulação fraudulenta dos procedimentos legais. O que se tem vindo a verificar na Relação de Lisboa, um dos mais importantes tribunais do país, é simplesmente aterrador. Tudo parece estar a ser ali descoberto: sorteios falsificados, sentenças pagas e veredictos manipulados…
Como sair do atoleiro? É um dos mais aflitivos mistérios. Entregar a justiça à política é totalmente ineficaz, todas as experiências conhecidas mostram que a emenda é pior! Esperar pelos próprios magistrados? Já se percebeu que agora nem esse meio é possível. Ter confiança na justiça popular? Seria absolutamente odioso. Depositar esperança em formas populistas de justiça? O que se sabe é detestável. Não há ditador nem justiceiro que resolva o problema. Não há salvador nem virtuoso. Só podemos ter alguma esperança em sistemas de justiça, nas liberdades e na informação livre. Por isso muitos se perguntam todos os dias: estamos preparados para o que temos? Estamos prontos para lutar contra o que aí vem?
Temos magistrados em quantidade suficiente e com as competências técnicas adequadas para julgar estes assuntos de dinheiros, contrabando, fuga ao fisco, branqueamento internacional e corrupção organizada? Temos procuradores preparados para as tarefas de inquérito, instrução e acusação em todas essas áreas? Temos magistrados e procuradores honestos e disponíveis para garantir o cumprimento dessas tarefas? Temos processos de sorteio, de investigação e de recurso suficientemente isentos e à prova de intrusos? Temos leis adequadas para dar conta de tão difíceis tarefas de apuramento da verdade, de julgamento de criminosos e de castigo de infracções? Temos leis processuais que impeçam que os poderosos, ricos e políticos manobrem as investigações e se aproveitem dos sistemas de garantias, de recursos e de prescrições a seu favor? Temos a paz entre magistrados e procuradores que permita a realização de processos sem a intervenção do ciúme, da rivalidade, da vingança e da competição entre sociedades políticas, religiosas e laicas? Temos a certeza de que o ordenamento jurídico e o sistema judicial não constituem um monumental bodo de protecção aos poderosos, aos milionários, aos políticos, aos famosos e aos corruptos?
Está a justiça portuguesa à altura da tarefa? Às vezes, fazer a pergunta é dar a resposta.
Público, 8.3.2020

domingo, 1 de março de 2020

Grande Angular - Frágil, delicada, vulnerável

Há quem pense que é robusta e sólida. Que resiste a tudo, ou quase. E que, sendo amada e defendida pelo povo, nada a põe em risco. Estamos a falar da democracia, claro!
Dia após dia se vai vendo que é um regime delicado. Mesmo se amada pelo povo, sem instituições não vai longe. E sem regras também não. Demasiado rígida, morre por falta de flexibilidade. Excessivamente plástica, peca por dissoluta. Sem atenção nem cuidados, com poucas tradições e menos costumes, a democracia é frágil. Com muitas regras e burocracia a mais, afasta-se dos cidadãos.
O governo de assembleia é uma das modalidades políticas que fazem parte dos universos utópicos e dos devaneios de juventude. Pensa-se em Atenas ou em Roma, em vários Senados e em Assembleias populares, nos Estados Gerais e na Convenção. Apesar de terem dado mau resultado, há sempre quem espere que um dia um angélico governo de assembleia realizará a esperança democrática de quem sonha. Mesmo sabendo que alguns dos melhores exemplos de governo de assembleia redundaram no Terror francês e soviético. O nosso querido Parlamento, no quadro inédito da relação de forças políticas actuais, procura o seu caminho de assembleia. Os Grupos parlamentares arrogam-se direitos que não têm e querem fazer história. Uns querem administrar o sistema financeiro e, para já, fixar custos e comissões dos bancos. Outros pretendem desempenhar papel importante na determinação do futuro aeroporto de Lisboa que já não se sabe onde é. Outros ainda decidiram impedir que as linhas de metropolitano de Lisboa sigam um plano, a fim de determinar um novo traçado. Um deputado barulhento e desordeiro pensou que o Parlamento poderia por si só rever a Constituição e instaurar o princípio de Talião no Direito Penal. Mas o Presidente da Assembleia Ferro Rodrigues também não percebeu muito bem o seu papel e, ajudado por alguns partidos, fez o que pôde para evitar que o deputado exibicionista desse nas vistas e não lhe conceder a palavra nem a iniciativa. Com evidentes resultados contraproducentes.
Da Assembleia da República vieram também as leis sobre a “morte assistida”, cuja aprovação comoveu a opinião e deu origem a reflexões estranhas sobre o referendo e a democracia parlamentar ou directa. A opção pela aprovação desta lei por via legislativa ou por referendo foi discutida com muito calor, mas igualmente com enorme desprezo pela opinião dos eleitores. Estes são inteligentes para uns, estúpidos para outros. Cultos e capazes de decisões racionais para uns e totalmente incapazes e desprovidos de sensatez para outros. O que se deve ou não referendar, o que se pode ou não votar directamente, o que é ou não susceptível de iniciativa popular depende do oportunismo de cada um. 
Ainda na Assembleia, este rico alfobre de democracia, mas também viveiro de tolices, tivemos as decisões de Rui Rio e da direcção do PSD: a partir de agora, a comunicação do partido vai passar a ser “gerida”. Isto é, os contactos entre jornalistas e deputados, ou vice-versa, devem ser feitos através dos serviços de imprensa do Grupo Parlamentar e do partido. Cinco dias depois, ainda não havia reacção de qualquer espécie, os deputados visados não manifestaram repugnância nem objecção de consciência. Os deputados dos outros partidos não exprimiram solidariedade nem interesse, eventualmente por receio de que lhes venha acontecer o mesmo. Que se saiba, os jornalistas parlamentares também não reagiram nem recusaram ter de passar pelos serviços para falar com eleitos que supunham livres. Se esta directiva não provoca reacções de repulsa, é permitido concluir que os deputados não merecem a liberdade que deveriam ter. Os jornalistas também não.
Verdadeiramente hilariante foi a intervenção do ministro Pedro Nuno dos Santos a propósito do aeroporto do Montijo. Uma lei demagógica e certamente estúpida estabelece a unanimidade autárquica como necessidade para aprovar o novo aeroporto. Ora, não há unanimidade. Uma ou duas câmaras não concordam a já manifestaram a sua oposição. O ministro não se incomodou: então, diz ele, é necessário mudar a lei. A história é absurda e mais parece um sketch de comédia “levanta-te e ri”. Mas de uma coisa podemos estar certos: algo de parecido vai ser feito. Com habilidades ou dinheiro. Ou os dois.
A Justiça é fértil de incompetências, corrupção, burocracia, injustiças e eternidades de atrasos. Tendo escapado à revolução, fintou a democracia e ludibriou a liberdade. E espera enganar a Europa. Sem um princípio superior e exposta a quezílias internas de poder, a Justiça dá regularmente más notícias. Esta semana também. Uma, a questão dos sorteios aleatórios camuflados, neste caso na Relação de Lisboa, é de uma gravidade tal que as palavras são curtas para a classificar. Outra, a associação da Justiça a bandidos é uma peste a que nos resignámos. A quase certeza de que só os tribunais europeus têm alguma isenta firmeza deixa-nos o espírito alegre, repousa-nos de aflições, mas destrói a esperança de ver que seremos capazes, um dia, de descansar na nossa Justiça!
A democracia é um sistema de governo que depende essencialmente de convenções. Umas traduzidas na lei, outras criadoras de costumes e tradições. Tais convenções são poucas e simples, dizem respeito à capacidade eleitoral dos cidadãos (antigamente dizia-se “um homem…”, hoje diz-se “uma pessoa, um voto”), à periodicidade das eleições livres, aos governos de maioria, ao respeito pelas minorias, aos métodos de governo e legislação e aos sistemas de informação e responsabilidade. O que se atribui geralmente à democracia (igualdade, cultura, educação, saúde, emprego, mercado e muito mais) não é realmente democracia: são políticas públicas e opções sociais e económicas que combinam (ou não) com a democracia e que lhe dão vida e sentido. Num caso, todavia, estamos perante um sistema que, não fazendo parte do conceito clássico, é todavia essencial à democracia: o Estado de Direito e o sistema de justiça. Por isso, a democracia é tão frágil, tão vulnerável e tão delicada. Depende de tudo e depende de tanto!
Por isso se exige o respeito pelas leis e não se admite que sejam feitas à medida. Por isso se pensa que o sistema de justiça deva ser íntegro. Por isso se espera que os nossos eleitos sejam pessoas livres e responsáveis. Por isso se admite que o melhor governo não é o de uma assembleia executiva e volúvel, mas sim o de um governo responsável perante uma assembleia representativa.
Um só beliscão na democracia é de mais, mas talvez não seja grave. Muitos e seguidos merecem atenção e cuidado.
Público, 1.3.2020