domingo, 31 de maio de 2020

Grande Angular - O vírus é injusto

democracia tem sido, desde o início desta pandemia, uma questão permanente. É natural que assim seja. Conhecemos quem a queira arranhar e quem entenda que é necessário defendê-la. Há toda a espécie de ideias contraditórias. A democracia ajuda a resolver a crise sanitária, afirmam uns. Com democracia, não se pode tratar da saúde das pessoas, garantem outros. Os mais pragmáticos declararam que não se deve curar a saúde sem tratar da democracia. Os mais cépticos advertem que só com uma revolução é possível cuidar ao mesmo tempo da saúde e da democracia. Estes últimos dividem-se, evidentemente, em dois grandes grupos, os que entendem que só a Europa integrada e una consegue tal proeza e os que estão convencidos de que só o regresso ao Estado nacional é capaz de proteger a democracia e a saúde.
Não vale a pena tratar de estúpidos ou ignorantes os que pensam diferente de nós. Nem de dizer que os que não têm as mesmas ideias que nós são hipócritas e corruptos. O debate tem sido, infelizmente, um pouco esse. Mas podemos pelo menos ter a certeza de que as divergências e as contradições são reais e merecem ser ouvidas: só assim se poderá encontrar um caminho.
Continuam vigorosas as ideias radicais, sempre formuladas em tom exclusivo. Só uma revolução socialista poderá dar saúde a toda a população. Só uma mudança de modelos de consumo e de produção será eficiente. Só uma transformação do modelo de sociedade garantirá saúde e liberdade para todos. Só a globalização e as economias competitivas podem garantir tal desígnio. Só as nações proteccionistas podem defender e proteger a liberdade de todos. Só um Estado com muita autoridade pode levar à prática uma estratégia de saúde para o seu povo.
Todos estes pontos de vista traduzem convicções. Todas estas crenças têm direito à vida e correspondem a ideais de sociedade. Mas o que realmente poderá vingar e o que, em última análise, vencerá a luta política é o que dá tanta importância à democracia quanto à saúde. Ora, nada disso se obterá com o Estado nacionalista ou com a revolução socialista; nem com globalização capitalista ou alternativa; muito menos com novos e abstractos modelos de sociedade. E ainda menos com a necessidade de aproveitar a oportunidade para resolver também a pobreza, o racismo, a corrupção, o terrorismo e a imigração ilegal.
Todos aqueles combates globais e revolucionários têm o seu tempo, menos agora, em cima da doença e da emergência. Apesar de terem direito à existência, nunca ou quase nunca tais ideias totais e globais superam as soluções reformistas, discutidas, justas e graduais. O inventário das soluções radicais e globais dos últimos séculos é de tal modo trágico que já poderíamos estar ao abrigo dessas fantasias. Infelizmente, não. Mas as fantasias também têm direito à vida. É bom que assim seja. 
São as soluções práticas, reformistas, discutidas e debatidas, que asseguram mais eficácia. Podem por vezes conter o veneno da desigualdade, com certeza, mas a liberdade e a democracia estão aí para permitir a denúncia e a correcção. São as reformas que permitirão resolver as formas de tratamento igualitário, a descoberta e a generalização das vacinas e as medidas de prevenção. São as soluções empíricas que permitem consolidar um serviço nacional de saúde prestigiado e devidamente equipado. Como são as políticas práticas que permitem a coexistência entre o sector público e o privado, indispensáveis a uma eficiente política de saúde para todos.
Como são as soluções práticas que permitem encontrar um destino rápido e eficiente para o Bairro da Jamaica e para todos os equiparados e similares, nódoas da nossa sociedade. Faz mais pela democracia quem resolve o Jamaica, quem destrói aqueles pardieiros, quem constrói alojamentos decentes em poucos meses e quem realoja os seus habitantes, do que quem passa os seus dias a rosnar contra os fascistas e os patrões. A desigualdade é veneno. Como disse Susana Peralta, há dias, aqui no Público: “ … aguentar o confinamento depende muito da qualidade do sofá, da velocidade da Internet e da variedade do que há no frigorífico”! É difícil, em tão poucas palavras, ser mais certeira! O que diz é comovedor, sem ser piegas. E põe nos devidos termos muitas das polémicas actuais.
É a democracia prática, quotidiana, que permitirá tratar igualmente os pobres e os desempregados brancos, amarelos e negros, muito melhor do que quem vocifera pelos comícios chiques ou vingativos contra o racismo. Faz mais pela liberdade quem procura controlar os fluxos de imigração e a legalização dos trabalhadores e suas famílias, do que quem gasta o seu tempo e a nossa paciência a exigir portas abertas a todos, liberdade total de imigração e legalização imediata de todos os candidatos. É o controlo dos fluxos de imigração e o esforço para dominar a demagogia da sociedade aberta que permitem combater e condenar os negreiros que garantem o transporte de refugiados e estimulam as aventuras quase suicidárias de candidatos à emigração.
É a democracia prática e são as instituições livres que permitirão julgar os corruptos, capitalistas ou políticos, muito melhor do que alinhando teses sobre a globalização democrática e socialista, numa narcisista viagem de satisfação de egos enormes disfarçados de solidariedade palavrosa.
É a democracia prática e a liberdade sem reticências que permitirá julgar os adultos que batem nos velhos e nas crianças, os homens que agridem e matam mulheres e filhos, não são os esforços tonitruantes de quem pretende elaborar planos totalitários anticapitalistas de igualdade de género que não têm qualquer efeito.
A pandemia faz mal a milhões de contaminados. A milhares que morrem. E a centenas de milhões que vivem em condições de vulnerabilidade. Mas também tem danos colaterais. E não são poucos. Dos governantes que se exibem e fazem propaganda. Dos directores gerais que se enganam e não reconhecem o erro. Dos jornalistas que vão na onda e não corrigem. Dos comentadores que sabem mais do que enciclopédias. De todos os que cultivam a demagogia fácil e dos que procuram o lucro indevido. 
É tão fácil incriminar os demónios de todos os males! Acusar os fascistas. Denunciar os brancos. Culpar os pretos. Pendurar os comunistas. Castigar os patrões. Mas a melhor solução ainda parece ser a da liberdade individual e das instituições democráticas. Com a ajuda da ciência!
Público, 31.5.2020

domingo, 24 de maio de 2020

Grande Angular - Esquerda! Direita! Volver!

Vinte anos são poucos para qualificar um século. Mas não se pode negar que o XXI começou mal! As duas primeiras décadas são aflitivas. No mundo inteiro.
Logo no inicio, as Torres de Nova Iorque. A partir daí, o terrorismo islâmico instalou-se. E quase inspirou outros que se seguiram. A invasão do Iraque foi exemplo de desastre. Na Líbia e na Síria, as guerras atingiram inimagináveis graus de violência. As democracias árabes, esperança precoce, transformaram-se rapidamente em desastres autoritários. As guerras de drones, conduzidas pelas nações mais poderosas, sobretudo pelos Estados Unidos, trouxeram uma nova arma de que a humanidade não se vai orgulhar.
As alterações climáticas marcaram o planeta, muitas das suas consequências são já irremediáveis. Perante elas, a incapacidade humana é a mais evidente realidade. Alguns desastres ditos “naturais” deixaram recordações perenes. O furacão Katrina de Orleães mostrou a vulnerabilidade do país mais rico do mundo. O Tsunami asiático revelou a amplitude possível da devastação. Os piores incêndios florestais da história da humanidade queimaram a Califórnia, a Amazónia e a Austrália, assim como a Grécia e Portugal. As piores secas e as mais severas inundações ficaram na memória de gente. 
As crises financeiras abalaram o mundo. Gigantescas falcatruas revelaram a infinita capacidade criminosa do dinheiro. As crises das dívidas soberanas diminuíram a força das entidades políticas. A UE exibiu a sua debilidade política. As migrações ilegais em massa e a procura de refúgio político na Europa e na América serviram para revelar desumanidade e impotência. A desigualdade social atingiu graus inesperados, assim como o crescimento obsceno de fortunas em poucas mãos.
A crise (comercial, financeira e política) entre os Estados Unidos e a China ameaça o mundo inteiro e não dá sinais de ter um termo à vista. Consolidou-se o fiasco definitivo do socialismo e do comunismo, apenas sobrando, desse modelo político, um país, a China, que produziu a aliança improvável entre dois absolutos, o da ditadura política e o do capitalismo desenfreado. As ameaças à democracia chegam-nos de todos os lados, de quase toda a África e de grande parte da Ásia, dos Estados Unidos, do Brasil, da Venezuela e da Hungria. É crescente a perda de importância da nobre Europa e da sua União, em plena decadência política, como todos os fidalgos. 
Em Portugal, fomos poupados a muitas desgraças, como seja, até agora, o terrorismo. Mas tivemos também a nossa quota-parte. Incêndios florestais como nunca se tinham visto. Vinte anos de crescimento económico quase zero. Partilhámos, até com excesso, as crises financeiras e de austeridade. Conhecemos a maior trapaça financeira da história do país. E talvez o mais corrupto governo de sempre.
A pandemia sanitária e a profunda crise económica e social que se vai seguir exigem excepcionais esforços de convergência. E até de patriotismo, conceito em desuso. Nenhum partido sozinho será capaz de resolver o que é necessário. A esquerda, sozinha, não tem soluções em liberdade. E talvez não tenha também para o investimento e o desenvolvimento. Por sua vez, a direita, sozinha, não tem soluções para a protecção social e a justiça. E talvez também não tenha para a liberdade.
E, no entanto, quando se pensa que as soluções políticas podem vir do esforço conjugado de várias forças, logo cai o Carmo e a Trindade! Bloco central não! A esquerda sozinha é que é boa. A direita sozinha é que é boa. Para a cultura política nacional, tudo o que não seja puramente esquerda ou direita cai mal. O “centrão”, o bloco da corrupção, o caldeirão central… Todas essas soluções são malditas!
Ora, em democracia, já tivemos uma dúzia de anos de governos de direita sozinha, assim como outros tantos de esquerda sozinha. Também tivemos outros anos de um só partido ou de misturas. Uma coisa é certa: não há regras nem padrões. Já houve bloco central e governos de um só partido e governos só de esquerda e só de direita. Ninguém, nenhuma solução monopolizou o erro, o disparate ou fragilidade. As várias soluções mostraram tudo aquilo de que foram capazes: trabalho patriótico, crescimento, liberdade e honestidade… e o seu contrário! Não é possível dizer que o bloco central é necessariamente corrupto ou que a esquerda e a direita sozinhas são a instabilidade e a violação da liberdade.
Foi com governos de uma só cor que se assistiu aos desastres financeiros, às políticas de austeridade, a alguns dos piores episódios de corrupção e ao desenvolvimento da porta giratória entre o governo e os interesses. A destruição do sistema bancário e do que sobrava do capitalismo português foi metodicamente levada a cabo pela esquerda e pela direita, ora aliadas, ora a governar sozinhas.
Não se percebe por que razão é tão difícil encontrar soluções governativas de maioria alargada, sem união nacional. Tantos países, na Europa, tiveram de recorrer a essa solução e a maior parte não se arrepende. Dói ver a enorme atracção que tantos revelam pelos desastres dos outros, mesmo sendo os desastres do país! É tentador pedir boleia à desgraça das instituições e do povo para criar um salvador, pessoa ou partido. A direita pede um novo clima ético, uma nova atitude patriótica e a refundação da pátria, se preciso for. A esquerda reclama novos modelos sociais e políticos, uma democracia alternativa e um novo sistema político! Todos aspiram a aproveitar o desastre! Era bom pensar que, se desastre houver, muitos deles são capazes de naufragar também. Como é possível imaginar que a salvação, a liberdade ou o desenvolvimento nascem de milhões de precários e desempregados, de milhares de mortos e infectados, de falências e fraudes sem fim?
Quem havia de dizer que, nas esquerdas e nas direitas, encontraríamos um dia reminiscências das teorias de Schumpeter sobre a destruição criadora do capitalismo? Aflige ver a exigência de novos modelos de sociedade, de economia, de consumo e de Estado e acreditar que esses modelos, ou lá o que forem, estão à espreita de uma oportunidade para vingar por cima dos escombros da sociedade actual. Por cima do capitalismo e da democracia actuais, e até, ironia maior, por cima do esquerdismo actual.
A esquerda sozinha não consegue resolver os próximos anos. A direita sozinha também não. Muito menos um só partido. Não custa reconhecer o inevitável. Mesmo quando este não nos agrade. Eis por que prever e prevenir são actividades nobres. Eis por que preparar-se é um dever.
Público, 24.5.2020

domingo, 17 de maio de 2020

Grande Angular - Justo furor

Algures para os lados de Peniche, uma menina, Valentina, foi assassinada. Tudo leva a crer que os autores tenham sido o seu pai e madrasta. Com irmãos espectadores. Com pancadaria, sofrimento, tortura e encenação escabrosa. Não falta quem reclame justiça privada para castigar aquelas bestas. Nem quem considere que é o momento chegado para restaurar a pena de morte para certos casos, como o assassinato de crianças. Há quem prefira a prisão perpétua. É sempre assim: perante um excesso de violência e de crueldade, logo aparece o excesso de vingança. Ódio com ódio se paga. É o pior que se pode fazer. Basta que se aplique a lei actual e que se proíba a redução. Poder-se-á aumentar a duração da pena? Talvez. Tudo o resto, prisão perpétua, pena de morte e justiça por mãos próprias, é do domínio da vingança, da raiva e não da justiça. 
Há um justo furor, uma revolta contra a violência e a maldade de um adulto, de um pai, de uma mãe ou de um marido, que chegam a este ponto de desumanidade. Fúria contra os que vieram primeiro dizer que se tratava de bons vizinhos, para depois os quererem linchar. Fúria também contra os serviços de protecção de menores e contra os que deviam ter responsabilidades. Fala-se de crianças sinalizadas, mas esquecidas. Diz-se que já havia ficheiros constituídos. Que havia… 
Sinalizados assassinados não faltam. Já não é o primeiro caso. Nem o segundo. Ora crianças. Ora velhos. Ora doentes. Ora mulheres. Sinalizados assassinos também não faltam. À solta. O Estado é só incompetente? Burocrático? Não tem leis que cheguem? Não tem pessoal? Não tem equipamentos? Será que há problemas de carreira? Tudo parece ser possível. Mas uma coisa é certa: num país como o nosso onde é tão fácil pedir ao Estado dinheiros e regalias, empregos e benesses, há receio de pedir ao Estado que proteja as crianças, as mulheres, os doentes e os velhos.
Estamos mais uma vez diante de dilemas. Neste caso, os do papel do Estado e dos serviços de protecção. Pode o Estado retirar membros de uma família para os proteger? Pode retirar crianças aos pais? Tem o dever de esconder mulheres? Pode guardar idosos? Não estamos mais uma vez a pensar que o Estado resolve, que o Estado é justo, que o Estado é ama, padrinho e mãe?
O que tem piores consequências? Meter o Estado dentro de casa? Trazer para dentro das famílias as leis, os assistentes sociais, os serviços de protecção, os juízes, os psicólogos e a polícia, retirar crianças e jovens menores aos pais, colocá-los em instituições, violar as tradições familiares, fazer tábua rasa de velhos hábitos, ignorar que dentro de casa os pais são os reis, mas tentar salvar a vida ou a integridade física de crianças? Ou deixar as famílias resolver os seus problemas, permitir que os conflitos se tratem dentro de quatro paredes, não violar a intimidade e não contribuir para que se destrua ainda mais a família e o seu meio de cultura, afecto e cuidado? E se a intervenção do Estado foi excessiva e não se justificava? E se a protecção do Estado foi mal calculada e não chegou a horas? O que é mais grave? Educar crianças em meio institucional, dando o flanco aos abusos conhecidos e às organizações de exploração sexual e laboral? Ou deixar educar crianças em ambientes violentos, disfuncionais e perigosos, mas familiares?
Verdade é que há qualquer coisa que não está certa com as instituições de protecção às crianças e com serviços que devem protecção aos fracos, aos idosos, aos deficientes e aos internados em lares. Ou aos hóspedes temporários de hostels de imigrantes. Há qualquer coisa errada com as crianças “sinalizadas” e que acabam por ser assassinadas ou abusadas. Ou com as mulheres “sinalizadas” e que os maridos matam ou sovam. Ou com os velhos “sinalizados” e que os bandidos ou os presumíveis herdeiros espancam e roubam. Ou com os candidatos a refugiados que conseguem entrar no país, são “sinalizados” e depositados aos cinco e aos dez por quarto em pousadas geridas por negreiros, com o silêncio ou a cumplicidade de serviços públicos.
Veja-se o que se tem passado com os lares no decurso da presente pandemia. Velhos quase a monte, residências sobrelotadas, taxas de contágio absurdas e contaminados às dúzias. Onde está o Estado? Onde estão os serviços de protecção? Será que se trata de mais uma discussão ideológica sobre o papel do Estado? Será que se pensa que não se pode retirar crianças à família, porque a família é sagrada? Porque os pais e as mães naturais são sagrados? Será que se acredita sempre mais na palavra do pai porque é pai, da mãe porque é mãe? Mesmo quando são bêbedos, bandidos e criminosos? O Estado tem receio da Igreja que considera sagrada a família? O Estado entende que só em última instancia é que se pode e deve intervir, quando é certo que a última instancia é quase sempre tarde de mais. Quantas vezes se ouve dizer que a criança estava sinalizada, que o velho estava identificado, que a doente estava referenciada e que a mulher estava registada? E quantas vezes se ouve dizer que estes todos, mortos, estavam sinalizados?
Os números são cruéis. Nas duas últimas décadas, pelo menos trinta crianças assassinadas. Milhares de mulheres batidas e violadas em casa e no espaço público. Trinta mulheres assassinadas por ano. Centenas de velhos feridos ou mortos em casa. Os serviços de protecção, as polícias, os magistrados, os assistentes sociais e as autarquias estão mal preparados para prevenir. Provavelmente mal equipados. Seguramente sem meios. Mas sobretudo mal formados, parece. Na verdade, a ideologia da família, à luz da lei, da Igreja e dos costumes, faz com que se deixem os mais fracos abandonados. A família é capaz de tudo, do melhor e do pior. Mas é sabido que a maior parte dos crimes contra as crianças, os velhos e as mulheres ocorrem em “ambiente familiar”. E que a grande maioria dos crimes de abuso sexual têm igualmente a família como cenário e decoração.
O que é preciso de crueldade e de falta de humanidade, para espancar, matar e esconder uma criança de nove anos? O que é preciso de barbaridade para deixar os velhos literalmente amontoados a morrer, sem dignidade, sem serviços de inspecção e sem protecção da autarquia, do Estado ou seja de quem for? O que é preciso de selvajaria para espancar uma mulher, a sua mulher, a mãe dos seus filhos até a matar ou deixar desfigurada? O que é preciso de brutalidade e de grosseria para espancar ou matar os velhos indefesos e doentes! Estes crimes não têm desculpa, nem perdão. Nem atenuantes, sejam eles a miséria, a ignorância, as origens, o desespero, o álcool ou a droga…
Público, 17.5.2020

domingo, 10 de maio de 2020

Grande Angular - Nós e eles

A pressão ilegal de emigrantes e refugiados tem deixado a Europa em transe. Há Europeus apavorados. Outros em fúria e com ganas de esfolar. Outros ainda com vontade de fechar fronteiras. E outros paralisados.
A pressão, muitas vezes racista, de grupos anti-racistas, sobretudo brancos e africanos, tem contribuído para provocar reacções xenófobas.
O comportamento irresponsável de certas esquerdas, na tentativa de exacerbar a luta entre etnias, faz o que pode para abrir uma questão racial.
Para completar o quadro, a pandemia despertou todos os imagináveis sentimentos xenófobos, na convicção de que as fronteiras fechadas são os melhores antídotos contra a proliferação do vírus.
Por enquanto, em Portugal, o clima não é ameaçador. Alguns grupos de esquerda, em luta contra o sistema democrático, fazem-se mal ouvir. Umas tantas associações anti-racistas esforçam-se, por enquanto sem grande êxito, por azedar o espaço público. Outros grupos, à direita, provocam as minorias numa tentativa, por enquanto frustre, de glorificar o nacionalismo.
É verdade que há vozes que incomodam, mas não parece haver perigo iminente. Por isso são de admirar as reacções às opiniões do deputado André Ventura. A importância destas é inversamente proporcional ao alarido que provocam. O senhor disse umas tolices sobre Ciganos e o mundo político caiu-lhe em cima. Que vem aí o fascismo. Que é necessário reagir e mobilizar (antigamente dizia-se “avisar a malta”), antes que sejam milhões a dizer o mesmo.
É tão estranho! A democracia portuguesa está assim tão frágil que não permite que haja uns tantos tolos racistas e umas dúzias de xenófobos? É outra vez a história de um prurido provocar a maré-cheia? Estará assim Portugal tão fraco que uma palpitação irracional ameaça as liberdades e a decência? É que… se assim for, estamos mesmo mal!
Necessitamos de políticas sobre as migrações, os refugiados, os negreiros da hotelaria, o narcotráfico e a violência contra as mulheres… Mas não necessitamos de políticas dirigidas aos Ciganos, aos Muçulmanos, aos Africanos ou aos Chineses… Uma das manifestações mais odiosas do racismo é a que identifica defeitos com grupos étnicos. É nesse momento que, em vez de lutar contra o crime, se passa a lutar contra um grupo. É tão criminoso lutar, em Portugal, contra o “banditismo cigano” como contra o “racismo branco”. Contra a “corrupção angolana” como contra o “nepotismo português”. Contra o “terrorismo árabe” como contra a “máfia ucraniana”. Mas contra qualquer daqueles crimes, sem designação de etnia, sim, com certeza.
Há ciganos que recusam a integração, não pagam impostos e roubam? Há. Como brancos europeus. E árabes também. Todos merecem o mesmo tratamento. Há brasileiros que vivem do proxenetismo e do lenocínio? Negros também. Ciganos, brancos, espanhóis e portugueses também. Todos merecem o mesmo tratamento. O racismo russo ou indiano não é melhor nem pior do que o americano ou francês. E o de direita não é mais perigoso do que o de esquerda.
Como é evidente, existem problemas, não com todos, mas com alguns Ciganos, por causa de comportamentos peculiares. Como existem com alguns Muçulmanos, Indianos, Chineses, Brasileiros, Cabo-verdianos e muitos Portugueses (até porque há mais…). Existem problemas quando grupos cultivam crenças e têm costumes contrários aos que as leis permitem, como por exemplo bater nas mulheres, nos velhos e nas crianças, praticar a excisão e a fibulação, vender crianças para casamento e outras variedades conhecidas. Existem ainda problemas com alguns Portugueses, mas também com Angolanos, Russos, Chineses, Paquistaneses e Espanhóis envolvidos em negócios menos claros, em actos de favoritismo, corrupção, desvios de dinheiros e fuga ao fisco. Todos estes comportamentos exigem acção das polícias, da Justiça e de outras entidades defensoras dos direitos humanos, mas não exigem tratamento étnico especializado, que é o traço do racismo e do preconceito. Que é o que o deputado André Ventura gosta de fazer, no Parlamento e na televisão, com a notável experiência que adquiriu num das áreas humanas mais favoráveis ao preconceito, à corrupção e à violência: o futebol!
O preconceito, a xenofobia e o racismo: eis alguns dos defeitos mais baixos da humanidade. As suas manifestações voltam com enorme facilidade. São da autoria de muita gente. São reacções de pessoas fracas de espírito. É gente que usa um dispositivo odioso, o da generalização. Culpa sempre os outros por qualquer coisa. Atribui aos outros as responsabilidades por tudo quanto corre mal. Considera que eliminar, proibir, calar e expulsar os outros são soluções para os seus problemas.
O Diabo está nas generalizações. De género conhecido: os Portugueses são racistas. Os Judeus são usurários, os Negros preguiçosos, os Árabes ladrões, os Muçulmanos terroristas, os Ingleses piratas, os Holandeses maricas, os Ciganos vendedores de droga e os Alemães nazis. E poderia continuar até ao infinito: os Indianos desconfiados, os Romenos vigaristas, os Chineses canibais, os Americanos atrasados mentais. Quanto aos Espanhóis… estamos conversados…
Muito curiosa é a reacção de gente oportunista de alto calibre. Já há quem faça apelos contra o fascismo, quem estabeleça paralelos com a pior escumalha deste mundo. Mas sempre com um fito: aproveitar politicamente. Lutar contra a direita, que culpam de fascista e de nazi. Lutar contra os brancos, os europeus, os cristãos, os democratas… Como se o racismo e a xenofobia fossem necessariamente de direita. Recordo o que dizia Jorge Almeida Fernandes há mais de vinte anos: “Um anti-semita não é necessariamente um nazi”! É exactamente o que se pode dizer hoje de qualquer forma de racismo, de preconceito religioso e de xenofobia: há disso nas direitas e nas esquerdas, entre ricos e pobres, no meio dos brancos e dos negros e em círculos cristãos ou muçulmanos.
É verdade que há hoje factores de sobra que convidam ao irracional. A democracia está em crise. A Europa também. A política não tem muito boa reputação. A corrupção vinga. As crises das migrações e dos falsos refugiados ameaçam a estabilidade europeia. Os Europeus e os democratas têm dificuldade em assumir uma posição simultaneamente liberal e de firmeza, isto é, que aceite o princípio da legalidade e do controlo das migrações. A pandemia em curso veio agravar tudo: para muitos, fechar as fronteiras foi a solução. O preconceito não é a melhor resposta. Não é sequer uma resposta.
Público, 10.5.2020

domingo, 3 de maio de 2020

Grande Angular - Fechar é fácil, abrir é difícil

Já todos percebemos: começa o mais difícil. Não é que, até agora, tenha sido fácil. Não. Pelo contrário. Mas o que nos espera é mais complicado, perigoso e incerto.
Dentro de algum tempo, com estudo sério, seguido de confronto, em regime de liberdade, saberemos o que se tem passado. Os resultados de Portugal são bons ou apenas medianos? Se doze países europeus fizeram pior, vinte e cinco fizeram melhor. Mesmo assim, a nossa condição merece atenção. Mas sobretudo explicação. Deve-se a quem, exactamente? Às autoridades? Aos Portugueses? Ao Serviço Nacional de Saúde? Aos médicos e aos enfermeiros? E deve-se a quê? Ao fecho prematuro? À quarentena? À disciplina?
Os que não gostam do governo dizem que o que é bom se deve aos Portugueses e aos profissionais. Os que gostam do governo dizem o que se espera, que os ministros e os directores-gerais foram impecáveis. Há ainda os que optam pela sorte, outros pelo milagre.
Por enquanto, com tanta gente a saber tanta coisa, não ficámos mesmo a saber nada. Mais tarde, com menos gente a saber tudo, aprenderemos mais. De qualquer modo, fica uma consolação: os que mais ajudaram na explicação e na compreensão foram alguns cientistas. Há qualquer coisa na ciência bem exercida, com escrúpulos e contenção, com dúvida e experiência, com liberdade e cultura, que nos deixa em paz com a humanidade, nem que seja por umas horas…
Aprender a lição ou fazer a revolução? Esta última tem os favores dos militantes, dos intelectuais e dos artistas. Há tantos a pensar que se deve aproveitar a “janela de oportunidade”, como agora dizem os papagaios! Ou então a “transformar os problemas em soluções”, como garantem as mesmas aves! Todos os dias se conhecem novas propostas. Ultrapassada a crise do vírus, há que mudar de modelo de desenvolvimento, transformar as relações de trabalho, remodelar os padrões de consumo, repensar o ambiente e o clima, estabelecer novas regras da democracia e ultrapassar o capitalismo. Exige-se já o grande debate nacional sobre o tema, assim como um olhar radical sobre o estado da sociedade actual. Pensa-se todos os dias na sociedade futura e nas relações sociais imaginadas por intelectuais que mantém relações esporádicas e intermitentes com a realidade. Para já, há que mudar a Constituição. E sair do Euro… Dizem.
E, no entanto, o mais provável é que, logo a seguir à resolução da crise sanitária, o essencial seja arranjar emprego, encontrar clientes, procurar novos mercados, recuperar o tempo perdido nas escolas, estudar o que se esqueceu, semear o cereal, tratar do vinho e alimentar o gado. Será um choque para todos os que se preparam para o grande debate e a oportunidade do século! Será uma frustração medonha para os que pretendem nada mais, nada menos, do que “alterar o paradigma de organização das sociedades”!
Seria tão mais interessante que os esforços e a imaginação se concentrassem em objectivos simples, ao alcance de uma geração! Objectivos mais reais, práticos e menos ilustres do que revoluções gloriosas que se transformam em catástrofes.
Já se percebeu que Portugal sofre de dois problemas profundos: a falta de previsão e as falhas de organização. Na saúde, por exemplo. Temos um número considerável de médicos, mas um número ridículo de enfermeiros e técnicos. Um serviço de saúde repousa nos dois, não só nos primeiros, nem só nos equipamentos. Sabe-se que Portugal é um dos países da Europa com mais médicos e menos enfermeiros por habitante. As filas de espera para as cirurgias e as consultas não podem ter como explicação a “falta de médicos”. Não faltam os medicamentos mais modernos, os tratamentos mais caros e os equipamentos mais sofisticados. Mas faltam máscaras, desinfectante, luvas, reagentes e zaragatoas. Em vez de rosnar contra o Serviço Nacional de Saúde ou de querer liquidar a medicina privada, não seria mais interessante e eficaz ocuparmo-nos de simples questões de organização e disciplina?
Os casos mais chocantes até hoje foram seguramente os que ocorreram em lares com infecção generalizada e velhos abandonados e mortos. Assim como com as “pousadas” para refugiados criadas por negreiros com eventual cumplicidade de serviços oficiais. Sem falar nos aumentos de vencimentos que foram esquecidos, nos pagamentos de indemnizações e subsídios que não chegaram e na liquidação de dívidas do Estado. Episódios destes são mais importantes, para retirar as lições devidas, do que declarações tonitruantes sobre a mudança de modelo social!
Portugal tem reservas de cereais para meia dúzia de dias. Um problema laboral ou de mau tempo deixa em crise a alimentação dos animais e dos humanos. Também temos ridículas reservas de petróleo, oleaginosas e adubos. Há décadas que é assim. Vivemos na dependência dos importadores, dos comerciantes e dos produtores internacionais, das empresas de transporte, dos sindicatos e dos estivadores. Por isso o Estado português tem uma reduzida capacidade de negociação em caso de emergência ou de conflito.
Fazer uma revolução e alterar os modelos de turismo e viagem, como tantos propõem; nacionalizar a banca e as grandes empresas privadas; liquidar o ensino privado; privatizar os últimos serviços públicos; e estabelecer o rendimento mínimo universal e incondicional, nada disto resolve os problemas dos cidadãos, nem corrige os verdadeiros defeitos postos a nu, como sejam a falta de previsão e a desorganização. 
As autoridades têm revelado várias qualidades e outros tantos defeitos. O importante é acertarem, não é serem amáveis. Têm-se perdido em propaganda política intolerável, a que explora o medo. Os governantes têm-se exibido como técnicos e massacram a opinião com pormenores que ninguém compreende. Assim, não se dá segurança, só se aumenta a incerteza. Mas deve acrescentar-se que, até certo ponto, as autoridades surpreenderam: mostraram-se mais responsáveis do que habitualmente. Depois de terem maquilhado a realidade com optimismo, começaram a pensar que dizer a verdade era mais importante. Quando se tratou de fechar, mostraram-se seguros e marialvas. Depois, começaram a corrigir e a rectificar os próprios erros. Agora, chegámos à fase da abertura. As autoridades parecem menos propagandísticas, mais incertas, com receio de errar. Em certo sentido, é melhor assim.
As próximas semanas vão ser cruciais para percebermos se estamos na boa via ou se cometemos erros medonhos. As alternativas são todas fatais: educação ou contágio de jovens; protecção absoluta ou infecção; prevenção ou tratamento. Saúde ou economia.
Abrir é difícil.
Público, 3.5.2020