sábado, 27 de janeiro de 2024

Grande Angular - Prova de fogo

Um grupo de pessoas de direita ou de extrema-direita entende levar a cabo uma manifestação. As intenções e o espírito são de ordem nacionalista, possivelmente xenófobas ou racistas. A manifestação está convocada para a zona do Martim Moniz e da Mouraria, isto é, bairros onde vivem comunidades de imigrantes, africanos, asiáticos e outros. Está também convocada, para a mesma hora e no mesmo local, uma contramanifestação. Entretanto, circula uma carta, assinada por uns milhares de pessoas, solicitando que a primeira manifestação seja proibida. Outras vozes, na imprensa, exigem também a proibição. O executivo da Câmara Municipal de Lisboa condenou, por unanimidade, a realização desta manifestação.

 

Uma manifestação não necessita de autorização, mas apenas de informação remetida às autoridades, a fim de, se tal for necessário, serem tomadas providências. Do ponto de vista da liberdade de expressão e do direito à manifestação, este dispositivo parece suficiente.

 

Proibir esta manifestação é um acto grave e de sérias consequências. É a melhor maneira de abrir uma temporada de violência na sociedade. Deixá-la correr sem qualquer intervenção é igualmente gesto condenável e de maus efeitos: haverá afrontamento e violência. Deixar correr as duas, manifestação e contramanifestação, é ainda pior, é quase garantir que haja confronto físico. Em poucas palavras, qualquer destas soluções é uma má resposta ao problema.

 

É verdade que a situação é delicada e perigosa, ainda por cima com eleições marcadas para breve. A “questão racial” está a ser fomentada há anos, racistas e anti-racistas procuram-se mutuamente. Por ausência de políticas de imigração e de integração, pelo aumento de imigração ilegal, pela exploração de trabalho clandestino e pelas condições de vida de milhares de imigrantes, por todas estas razões, é possível prever a iminência de afrontamentos. É possível que estejamos a viver um desses momentos que marcam uma viragem, para pior, da situação e dos acontecimentos. É alto o grau de nervosismo. É garantida a vontade de mostrar forças.

 

Grupos e partidos nacionalistas e de extrema-direita desejam um momento dramático para dizer que “isto aqui é Portugal”! Para isso, estão dispostos a tudo. Querem choques violentos para depois afirmarem que já não se pode ser português em Portugal. Do outro lado, esquerdistas, antifascistas e anti-racistas querem uma oportunidade dramática e se possível violenta para demonstrar que “Portugal é um país racista”! Ambos ficariam satisfeitos com o confronto. Ambos receberiam com delícia a proibição da manifestação.

 

A discussão pública sobre a imigração e o debate sobre as respectivas políticas estão por fazer. Estes temas são difíceis, por isso mesmo urgentes. São igualmente recheados de preconceitos, o que reforça a necessidade de esclarecimento e de elaboração de políticas. Assim é que importa que não se deixem abrir feridas nem azedar ânimos, o que só tornaria mais inútil o debate nacional. Parece, pois, essencial evitar o confronto que se desenha para a próxima semana. Este e outros a seguir. Mas, evitar esse afrontamento não pode ser feito à custa dos direitos do cidadão. Por isso não é imaginável que se proíba a liberdade e o direito de expressão e de manifestação.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de antidemocratas. Sejam eles de extrema direita nacionalista ou fascista, sejam revolucionários comunistas e aparentados. Todos estes querem ultrapassar a democracia e criar novo regime que a elimine. É o seu direito. São livres de assim pensar e tentar convencer a população, desde que não cometam actos ilegais, como sejam a violência contra pessoas, a segregação à força, a destruição de bens, o roubo, a agressão de qualquer espécie… Isto é, que cometam actos ilegais de qualquer espécie. Nesses casos, terão de ser detidos e julgados. Mas não podem ser atacados pelas suas opiniões.

 

A democracia é o regime de todos, incluindo de racistas e xenófobos. Brancos, negros ou de qualquer outra origem. Os racistas e os xenófobos são pessoas frequentemente detestáveis, não escondem a sua animosidade pela democracia e têm um orgulho infundado na superioridade da raça branca. Podem defender as suas ideias. Podem publicar as suas opiniões e até divulgá-las. Não podem é agir em consequência dessas opiniões, segregar outrem de serviços e empresas, ser violentos, expulsar de locais públicos e ofender as outras pessoas. Noutras palavras, não podem cometer crimes de ofensa, agressão ou segregação, proibidos na lei em todas as circunstâncias. Mas a liberdade de expressão é intocável.

 

A ideia de que se pode proibir alguém, racista, xenófobo ou antidemocrata, de pensar, ter opinião e divulgar os seus pontos de vista é um grave passo atrás na democracia, é uma perversão da tolerância, é um atentado contra alguns dos direitos e liberdades fundamentais da democracia.

 

O direito a manifestação de todos os cidadãos, protegido pela lei, sem qualquer autorização, é igualmente intocável. Evidentemente que se pode, por razões de segurança, condicionar esse direito de manifestação, não no essencial, mas na circunstância. Por exemplo, a hora e o local de manifestação. Este caso da manifestação nacionalista do Martim Moniz e da Mouraria parece um exemplo de escola. Evidentemente que o local traduz uma procura de afrontamento e de confronto social no que pode ser considerado uma provocação. Assim sendo, é legítimo que as autoridades nacionais e camarárias obriguem os manifestantes a alterar a circunstância (hora e local), sem renunciar ao essencial (a manifestação e a expressão de opinião). Como é igualmente legítimo que a contramanifestação seja deslocada na hora e no local. É um imperativo de ordem pública e de paz social que essas manifestações não coincidam no espaço e no tempo. Mas não se pode proibir uma nem outra.

 

O que está em causa na próxima semana é a liberdade de expressão e o direito de manifestação. É uma real prova de fogo da democracia portuguesa. Por razões de interesse público e em defesa da paz e da ordem pública, podem as manifestações (que não necessitam de autorização) ser deslocadas no espaço e no horário, como pode ser exigido que não se realizem no mesmo sítio ou à mesma hora. Mas não podem, definitivamente não podem ser proibidas!

 

Se a democracia portuguesa não consegue viver com antidemocratas e com racistas ou xenófobos é porque é fraca, frágil e medrosa. A democracia defende-se com métodos legítimos e com força democrática, sem recorrer a meios ilegítimos. Sem pisar o risco.

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Público, 27.1.2024

sábado, 20 de janeiro de 2024

Grande Angular - Sonho de uma noite de Inverno

 Dentro de pouco mais de uma semana, ficaremos a conhecer as listas completas de candidatos à Assembleia da República. São listas exclusivamente subscritas por partidos ou coligações de partidos. Movimentos, associações e grupos de cidadãos estão excluídos. Independentes também não se podem candidatar, a não ser que se submetam a fazer parte de uma lista partidária, o que quer dizer que estejam dispostos a perder a sua independência. A não ser que façam prova de fidelidade partidária, mais de dez milhões de portugueses não se podem candidatar a eleições legislativas.

 

O fabrico destas listas é um dos momentos mais polémicos da política portuguesa. Esse gesto traduz a realidade da vida partidária e das relações dos partidos com a sociedade. É através das listas que se pode escolher e sanear quem vai ser eleito, quem fica na vida política e quem é despedido. O dispositivo essencial das listas consiste na ordenação dos candidatos: são eleitos os que vêm à frente, são afastados os que vêm atrás ou ficam cá para baixo. Mas tudo depende, evidentemente, do número de votos que a lista recebe. Nos partidos com muita autoridade, tudo se passa sem ruído percebido pelo público. Nos partidos democráticos no poder, o clima é tenso, mas pacífico. Nos partidos democráticos na oposição, o momento é febril e adequado a ajustes de contas. 

 

De qualquer maneira, dos 230 deputados a eleger, 190 já estão eleitos. Já podem tomar providências, alugar casa ou reservar hotel em Lisboa. Foram as escolhas dos chefes dos partidos que decidiram o lugar em que estão nas listas e é assim possível saber já a maioria dos que são eleitos. Os cidadãos não escolheram absolutamente nada. A não ser os muito pequenos partidos que podem eleger alguns ou nenhuns deputados. Assim como os últimos 30 ou 40 deputados eleitos que vão compor os grupos e definir quem tem maioria. Na verdade, são estes que decidem a vitória eleitoral e respectiva amplitude. Justiça seja feita: o eleitorado ainda tem a escolha destes últimos deputados. Ou seja: escolhe quem vence, mas não escolhe quem o representa.

 

Há cinquenta anos, abstiveram-se cerca de quinhentos mil cidadãos. Há vinte anos, um pouco mais de três milhões.  E há dois anos, perto de cinco milhões e meio optaram pela abstenção. Melhor do que taxas e percentagens de abstenção, estes números brutos revelam um profundo mal-estar. De muitas democracias, com certeza, mas a nossa é a que nos traz aqui. Como toda a gente sabe, existe um problema muito sério, cada vez mais difícil, de legitimidade e de representatividade dos parlamentos eleitos.

 

E tudo poderia ser tão diferente! Poderíamos ter, neste 10 de Março, uma verdadeira revolução dentro da democracia! Poderíamos ter 230 círculos eleitorais, cada um elegendo, por maioria absoluta, um só deputado. Este seria alguém já conhecido pela comunidade, ou que passaria a sê-lo depois da campanha e da eleição. Seria um elemento da região, ou de sítio vizinho, ou mesmo vindo de longe (da capital, por exemplo) mas que se tinha apresentado localmente para ser seleccionado. Aliás, o “candidato a candidato” por um partido deveria ser seleccionado pelas assembleias dos partidos. 

 

O termo “o meu deputado” faria assim sentido para todos os deputados, com responsabilidades pessoais, contas a prestar, mandatos a receber, lutas a conduzir e batalhas a travar. O distrito de Lisboa, por exemplo, em vez dos actuais 48 deputados, uma verdadeira sociedade anónima que ninguém conhece em maioria, seria dividido em outros tantos círculos, cada um com o seu deputado, de acordo com a dimensão demográfica. O resto do país teria o mesmo tratamento.

 

O “meu deputado” seria o que foi eleito, evidentemente, poderia ou não ser do meu partido ou daquele em quem votei. Desde que é eleito, um deputado representa todo o eleitorado, não apenas o seu partido. Esse “meu deputado” teria reuniões regulares com os seus eleitores (os que quisessem estar presentes) e teria anunciado, à porta do seu gabinete e na NET, os dias em que receberia os seus eleitores que lhe apresentariam casos e poderiam assim elogiar, criticar e fazer sugestões ou reclamações.

 

O “meu deputado” poderia ser um membro do partido que eu apoiaria, ou de um outro partido que teria ganhado as eleições. Mas poderia também ser de um movimento cívico, de um grupo de defesa do meu bairro ou da minha cidade. Ou de um movimento de defesa da ecologia, do género, de uma religião, dos idosos, dos doentes ou de outro qualquer grupo de referência. Poderia até ser apenas independente absoluto, sem pertença a grupo, partido ou movimento, mas claramente conhecido, até para vencer as eleições.

 

O mais provável é que a maioria dos deputados eleitos pertencesse aos partidos estabelecidos. São eles que têm nome e meios, profissionais de campanha, história e interesses estabelecidos, referências de classe, religião, origem ou doutrina. Mas as relações de cada deputado com o seu partido mudariam de modo significativo. Os deputados saberiam que eram eleitos pelo que eram, ou também por isso, não apenas pelo nome do partido. O que quer dizer que teriam mais força e mais autonomia.

 

Ao mesmo tempo, os partidos saberiam que se não respeitassem os deputados e a sua liberdade, estes poderiam pura e simplesmente informar o eleitorado. Além disso, quando os partidos escolhessem as suas listas, teriam de ser muito mais exigentes e seleccionar os melhores, tanto do seu ponto de vista como dos interesses das comunidades. Caso contrário, perderiam a eleição. Ou os candidatos em questão apresentar-se-iam por eles próprios. As listas partidárias teriam de ser as melhores e não apenas o rol dos fiéis, dos que causam menos problemas à direcção do partido e dos que fazem o que lhes mandam e só isso. Os independentes e membros de associações ou movimentos teriam assim um duplo papel: o de serem bons representantes do povo e o de obrigarem os partidos a seleccionar melhor.

 

Tal como noutros países, este sistema eleitoral poderia funcionar a duas voltas, isto é, todos concorrem à primeira e, à segunda, passam os dois primeiros ou os que estão acima de uma fasquia determinada. Quer isto dizer que um deputado é sempre eleito com mais de 50% dos votos, o que confere legitimidade e consolida as maiorias. 

 

Não há milagre. Nem soluções mágicas. Mas os que se queixam de falta de proximidade da democracia, de afastamento dos políticos, de reduzida transparência do processo democrático e da legitimidade decrescente em tempos de abstenção em permanente aumento, deveriam pensar duas vezes. O sistema está feito para afastar, não para chamar.

Público, 20.1.2024

sábado, 13 de janeiro de 2024

Grande Angular - Santos e diabos. Polícias e ladrões.

O Partido Socialista é, cada vez mais, o partido do regime. Está a ficar parecido com o que foram, durante uns tempos, o Partido Conservador britânico ou os partidos Gaullistas franceses. É o partido da democracia portuguesa. Não era esse exactamente o sonho de Mário Soares, mas foi o de Sá Carneiro e a obsessão de Cavaco Silva. Os dois últimos falharam. Nunca estiveram tão próximos de ser o partido do regime como o PS de hoje, herdeiro de Guterres e de Sócrates, filho de Costa e de Santos. O que é uma vantagem para os socialistas e certamente um motivo de orgulho. Mas os benefícios para a população são muito discutíveis.  Até porque não é partido do regime quem quer e só porque quer. É também preciso que o deixem ser.

 

O grande sonho do PS consiste em transformar-se numa espécie de PRI mexicano, o Partido Revolucionário Institucional! Só o nome é um programa! Único na história a juntar, na mesma designação, revolução e instituição! O PS conseguiu meter tudo dentro. Do liberalismo ao socialismo, passando pelo corporativismo. Tanto ajuda, apoia, subsidia e controla a economia privada como a empresa pública. Foi o maior obreiro da Constituição, mas também o seu mais importante revisor ou revisionista. Dentro de si cabem todos. Há lugar para todos e acredita em tudo, desde que esteja no poder e que os seus dirigentes desempenhem as primeiras funções.

 

Na verdade, dentro do PS, há de tudo. Santos e demónios. Polícias e ladrões. Virtuosos e bandidos. Maçons e católicos. Rigorosos e trafulhas. Por isso se sucedem a si próprios, por isso se alternam. Neste PS, está o público e o privado. O nacional e o estrangeiro. O judeu e o palestino. O americano e o russo. Guterres e Sócrates. Costa e Santos. Tudo cabe no PS que consegue sempre mudar de pele sem mudar de corpo. Melhor ainda, o PS é capaz de criticar, com aparente inocência, o que está mal no país  e não corre bem por sua própria responsabilidade. Com enorme sentido da oportunidade, faz o mal e a caramunha.

 

Sempre o PS teve uma predilecção pelos serviços públicos. É o seu melhor lado, a sua primordial inspiração. Acontece que é crente, mas não praticante. O estado actual em que se encontram muitos serviços púbicos faz-nos pensar em ciclos de bancarrota ou situações depois de catástrofe natural. As cidades são esvaziadas, é o termo, dos seus habitantes tradicionais. Nas ruas de Lisboa e Porto, regressam os mendigos, os sem abrigo e os despejados sem capacidade económica. A crise da habitação parece planeada pelos especuladores. O caos do Serviço Nacional de Saúde é inimaginável. É escandalosa a absoluta falta de previsão das necessidades, dos meios, dos profissionais e dos recursos para a saúde. Tal como a incapacidade para gerir a escola pública, que parece em permanente desastre.

 

O partido e os seus dirigentes revelaram um excepcional talento para adoptar todas as políticas possíveis. Sucessivamente ou, se for necessário, ao mesmo tempo. Aliaram-se com a direita, com o centro e com esquerda, com a mesma sinceridade. É o único partido que já se coligou com quase todos os outros: CDS, PSD, PCP e Bloco, sem falar nos governos provisórios onde estavam em circunstâncias excepcionais. Nacionalizaram e privatizaram com igual alegria. Tiveram tantas políticas económicas, agrícolas e industriais, quanto os ministros que nomearam e não foram poucos. Com igual firmeza, foram centralistas, descentralizadores e regionalistas. Construíram incansavelmente o Serviço Nacional de Saúde, que estão em vias de destruir ou deixar decair com cuidadosa minúcia. Tiveram várias políticas de educação, ao sabor dos ministros, com cujas ideias, as boas e as más, navegaram alegremente. Foram campeões do endividamento e brilharam pelo modo como reduziram o mesmo. Levaram o país à bancarrota e pediram assistência financeira internacional. Quando havia recursos, gastaram tudo o que havia para gastar e foram, depois, autores dos primeiros grandes programas de austeridade. Defendem a abertura de fronteiras, são tolerantes e amigos dos imigrantes, mas os seus governos são os que mais permitiram o desenvolvimento do tráfego de mão-de-obra ilegal e a sobre-exploração de trabalhadores estrangeiros.

 

Os socialistas podem gabar-se de ter estado em todas, de terem sido responsáveis por tudo! Foram favoráveis a pelo menos quatro localizações diferentes para o aeroporto de Lisboa. Tal como apoiaram, hesitaram e combateram o TGV ou, antes disso, as auto-estradas. Nacionalizaram e privatizaram a TAP com igual destreza.

 

O novo secretário geral, Pedro Nuno Santos, anunciou ao que vinha. Depois de um enorme elogio ao antepassado António Costa e ao seu tempo histórico, garantiu que tudo isso, Costa e o seu tempo, estava acabado. Terminado. Ultrapassado. E prometeu que agora tinha chegado a sua vez. A “nossa” vez, como disse. Com singela delicadeza, anunciou tudo o que de novo e diferente quer fazer, tendo denunciado tudo o que anteriormente fez e em que colaborou.

 

O partido de regime necessita de apoio popular. Hoje, na imprensa e na comunicação, tem-no como ninguém. Pedro Nuno Santos, depois de obra mal feita e antes mesmo de obra nova, tem o favor da imprensa como raros políticos recentes. Depois de, na oposição, ter ameaçado os alemães e os banqueiros europeus, é agora, ao comando do partido, um doce e sensato aliado da finança internacional, do capital estrangeiro e das empresas europeias. O seu programa económico, saído directamente da universidade, anunciado no encerramento do congresso, é uma declaração de paz e de rendição à economia europeia e ao capitalismo internacional, mesmo se na versão moderna, sistémica e tecnológica. Prepara-se para fazer, à direita, o que a mão esquerda não vê.

 

Nem sempre é mau haver um partido de regime. Ou antes, um partido de regime não tem só más consequências. A democracia cristã em Itália, o partido Gaullista em França e o PRI no México, por exemplo, desempenharam essas funções durante uns anos e garantiram ciclos importantes na história dos seus países e na consolidação democrática. Mas também tiveram péssimas consequências políticas e sociais, sem falar na corrupção a pior chaga dos partidos de regime. Na verdade, a constituição de uma “grande família” de regime e partido é muito negativa para as liberdades e a honestidade. E tenhamos consciência de que, em democracia, um partido destes é assim porque os votos querem e os outros o deixam ser.

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Público, 13.1.2024

sábado, 6 de janeiro de 2024

Grande Angular - O PS: Dualidade e duplicidade

 Em Congresso este fim de semana, os Socialistas portugueses bem podem ter orgulho na sua história. Fundado em 1973, o partido tem praticamente a idade da democracia portuguesa. Ao longo de cinquenta anos, é seguramente o primeiro responsável pelo estabelecimento da democracia em Portugal. Não se esquece, com certeza, Ramalho Eanes e os militares do 25 de Abril e do 25 de Novembro, nem o papel pessoal de Mário Soares. Além de, durante períodos curtos, mas significativos, a Aliança Democrática, o PSD, Sá Carneiro e Cavaco Silva terem dado também grandes contributos. Mas é indiscutível que a parte mais importante cabe ao PS.

 

Este venceu quase uma dezena de eleições, esteve em outros tantos governos, elegeu dois Presidentes da República do partido e um fora do partido, teve duas maiorias absolutas, já governou sozinho em minoria e em maioria, já fez governos de coligação com toda a gente, com a direita do CDS, com o centro direita do PSD e com as esquerdas bloquistas e comunistas. Foi o partido que solicitou a plena adesão à CEE (então Comunidade Económica Europeia). Deixou o seu nome associado à Constituição e às suas revisões, assim como às principais leis do país.

 

Mais e melhor do que todos os outros, os socialistas souberam, alternada e sucessivamente, mas também em simultâneo, aliar-se à Igreja e à Maçonaria, numa muito difícil, mas conseguida pirueta política. Em grande parte, as instituições públicas conhecidas e criadas nas últimas décadas foram conseguidas e estabelecidas por este partido. É, de muito longe, com perto de centena e meia de presidências de municípios, o partido dominante do poder autárquico. A sua força política contrasta favoravelmente com a maior parte dos partidos socialistas europeus que se encontram em plena decadência doutrinária e eleitoral.

 

Elástico, do ponto de vista ideológico e programático, a sua maior virtude reside na dualidade, no facto de tudo fazer para combinar liberdade com igualdade, Estado com privados, o individual com o colectivo e o mérito com a discriminação positiva. Esta dualidade, interessante e positiva, compara com a duplicidade do partido, as suas tendências para fazer uma coisa e dizer outra e a de virar à esquerda cada vez que quer governar à direita. Duplicidade também nas contas públicas, com as mais sólidas contribuições para os défices e os mais dolorosos esforços para a sanidade das contas certas. Por três vezes, teve de pedir assistência financeira internacional, tendo sido, uma vez, o responsável pela mais profunda bancarrota financeira portuguesa do último século. Em poucas palavras, a dualidade é de louvar, já a duplicidade é de lamentar.

 

A duplicidade pode ter vantagens a curto prazo, mas, no conjunto e historicamente, é o triunfo da desorientação e uma das causas do atraso relativo da economia, da sociedade, da cultura e da política. Fez a Constituição, é o seu principal autor, mas deixou fazer normas ridículas de que nos queixámos durante décadas e de que ainda hoje sofremos as consequências.

 

Aparentemente respeitador da sociedade civil e do livre associativismo, oscila entre a absoluta tolerância e o dirigismo despótico perante os grupos privados, as associações e as instituições. É, por um lado, defensor da transparência democrática nos processos de recrutamento para o Estado, de obtenção de benefícios e subsídios e de licenciamento e autorizações, que considera, justamente, essencial à liberdade e ao mérito. Mas também é, por ouro lado, o partido com mais clientes seus nomeados e beneficiados e com mais cunhas e favores que considera a justa recompensa da ética republicana, isto é, do espírito de “quem ganha, alcança”! Ou de “quem ganha eleições, manda!”. Ofende, sem escrúpulos, as ordens profissionais e as Forças Armadas.

 

Sempre preocupado, justamente, com o progresso da educação e da cultura, que considera motores da igualdade e indispensáveis elevadores sociais, o partido deixou sistematicamente degradar o ambiente escolar, deteriorar a situação dos professores e instaurar-se um estilo indisciplinado no processo pedagógico. E deixou crescer uma orientação anticientífica e anti cultural, cujas principais vítimas são evidentemente as famílias das classes trabalhadoras e dos grupos mais desfavorecidos.

 

É seu o maior contributo para o crescimento da magistratura e para a definição dos campos e competências das várias magistraturas (judiciais e do ministério público), ao mesmo tempo que parece ser o partido com mais envolvimentos em processos de corrupção e nepotismo. Por outro lado, é também notória a sua paralisia ou a sua abstenção diante da crise de justiça que se agudiza há anos.

 

Os socialistas são, inequivocamente, os autores e os principais responsáveis pelo SNS, Serviço Nacional de Saúde, mas são também eles que presidem, no momento actual, ao período do seu maior declínio. Tudo fizeram para tornar compatíveis as duas medicinas, as duas saúdes, a pública e a privada, mas acabaram por se desentender com ambas!

 

Com provas dadas, no discurso e na legislação, de uma atitude excepcionalmente tolerante e solidária, não o incomoda ter vivido e governado o período de maior exploração de mão-de-obra clandestina e de mais intenso tráfico de imigrantes ilegais.  Favorável, retoricamente, à integração de estrangeiros imigrantes, tudo faz e deixa fazer para o progresso multicultural dos “guetos” e das comunidades segregadas.

 

Considera-se traído por todos os seus aliados. Foi derrotado no Parlamento pela esquerda e foi derrubado pela direita. Perdeu com a direita, mas com a cumplicidade e a ajuda da esquerda. Foi derrotado em Belém por presidentes que tinha ajudado a eleger.

 

Em geral, os congressos partidários deixaram de ser locais de debate e confronto. Ainda menos de reflexão. São agora, ainda por cima com a eleição directa e prévia do líder, liturgias de consagração. Deste congresso, nada resultará. Já se sabe o essencial. O objectivo é o de preparar a campanha, trocar números de telemóvel e mostrar-se ao eleitorado. O futuro destes socialistas, com a nova direcção, ser-nos-á servido logo a seguir às eleições de Março. Para já, de uma coisa podemos estar certos: o PS é capaz de tudo.

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Público, 6.1.2024