domingo, 26 de maio de 2019

Grande Angular - Nós e o património

As eleições chamam a atenção para a definição do que é a Europa. E cada vez mais sobressai uma evidência: realmente europeu é o património. A história e a cultura. À cultura europeia também pertence a religião, que não nasceu na Europa, mas na Europa se fez e hoje aspira à universalidade. E outros fenómenos europeus, como as liberdades, os direitos humanos e a democracia, deixaram de ser distintivos, são de vários continentes e espera-se que possam vir a ser do mundo inteiro. Também o Estado social parece ter as suas raízes na Europa, mas começa a ser olhado por outras paragens. Ao contrário de outras áreas, o património é o mais sólido e perene traço distintivo da Europa.
A Europa está a perder todos os dias para a América, a Ásia, o Próximo Oriente e a China. Talvez até para a Rússia e a Índia, mais tarde. A Europa tem cada vez menos a oferecer ao mundo. O património é, com a protecção social, o que a Europa tem de melhor e diferente, que outros não têm, têm menos ou diferente. A cultura é mesmo o que a Europa mais dá ao mundo inteiro, às centenas de milhões de turistas que vagueiam pelo mundo. O que vêm fazer essas pessoas à Europa? Beber, dormir, bronzear e comer, seguramente. Mas tudo isso pode também ser feito e consumido noutros sítios. O património é que não. Está construído, preso à terra e aos edifícios, fechado em museus, presente na sociedade, nos vales e nas planícies. E nas cidades.
Já ninguém duvida da existência da crise na Europa, na União e nos países europeus. O que a pode salvar? E o que pode salvar Portugal? Evidentemente, a liberdade, a economia e a ciência. Mas isso também se arranja noutros sítios, não faz a diferença. O que nos pode salvar e distinguir é a cultura e o património. A batalha da competitividade está perdida. Nada nos permitirá chegar aos pés dos Estados Unidos ou da China. As batalhas da ciência e da tecnologia estão perdidas, não tão inexoravelmente quanto as da competitividade, mas não teremos a hipótese do primeiro lugar. Com muito trabalho, um honroso segundo ou terceiro lugar. Mesmo se com atributos especiais, a democracia começa a viver por outros lados também. O Estado de protecção social é um bem querido, mas não é necessariamente uma oferta ao mundo. Já o património cultural é distintivo, único, com enorme capacidade de atracção. Cidades, aldeias e regiões, monumentos, edifícios e artes diversas. Há uma geografia patrimonial única e atraente. O património é uma realidade humana com valor. Ajuda-nos a viver. E a sobreviver. O património tem a vantagem de, sendo europeu, é irremediavelmente nacional. Tem identidade.
Com a Europa em crise económica, tecnológica e política, a cultura deveria transformar-se em prioridade. Do Estado, da sociedade e dos povos. Em tempos de capitalismo desregulado e de negócios sem escrúpulos, Portugal vai perdendo todos os dias. Para se distinguir da Europa e para a Europa se distinguir do mundo, só o património e a cultura. Sublinhe-se o património. Na verdade, tudo o que é móvel é transportável por definição. Por isso os museus e as salas de teatro e música do Próximo Oriente, do Japão e dos Estados Unidos proliferam.
Adefinição de prioridades para a cultura é uma das mais difíceis tarefas que se conhece. Especialmente porque, na hora de fazer contas, é considerada supérflua e dispensável. Além disso, definir prioridades é escolher e deixar alguém de fora. Ora, grande parte dos beneficiários das políticas culturais tem voz alta. E os “agentes culturais” têm altifalantes potentes, enquanto os autores do património estão mortos. Infelizmente, o património não ganha eleições. Mas o património é urgente.
O crescimento do turismo nos últimos anos foi um maná para a economia e o emprego. Foi talvez a mais importante contribuição para o crescimento económico. Já se percebeu que os turistas não vêm apenas pela praia e pelo vinho. As cidades, a paisagem, o património construído e humano, uma certa maneira de viver, os preços baixos, uma boa localização geográfica, paz nas ruas e ausência de violência religiosa ou política: tudo isso conta. Verdade é que o património tem desempenhado papel importante na atracção de visitantes. Basta vê-los, de pé, ao sol, em filas de espera de duas horas para entrar nos Jerónimos ou na Torre de Belém. É verdade que esses são fenómenos especiais, os restantes monumentos exibem números menores. Mas o certo é que as cidades interessantes (por exemplo Lisboa, Porto, Coimbra, Évora e Braga) não aguentam mais. Os conjuntos monumentais importantes (por exemplo Jerónimos, Belém, Batalha, Cristo e Alcobaça) não resistem mais. E muitas pequenas cidades estão a rebentar.
Portugal tem pouca cultura clássica para mostrar. Com excepção dos festivais pop e rock, os museus, os teatros e as salas de música são pouco visitados. Mas o que tem é importante. E o mais interessante é o sítio, a geografia, as cidades e o património. Tudo está a rebentar pelas costuras. A hotelaria está talvez a desfigurar parte das cidades. O peso, o stress e a pressão do turismo ameaçam destruir em poucos anos o que demorou séculos a construir. Portugal não soube prever este crescimento.
Em menos de vinte anos, o número de passageiros nos aeroportos passou de 20 para quase 60 milhões por ano! Em menos de quinze anos, o número de turistas passou de 11 para 21 milhões. E o de estrangeiros de 5 para 13 milhões. Se é verdade que uma boa parte do bem-estar actual se deve ao turismo, não é menos verdade que uma bomba ao retardador está à espera. A sociedade portuguesa não está preparada para esta avalanche. O património está mal protegido.
Outros acontecimentos recentes obrigam-nos a pensar a política de cultura e de património. Para além da intriga e do crime, as colecções Berardo, BES e Ellipse são realmente de importância excepcional. São milhares de obras (pintura, escultura, fotografia, livros e moedas) à espera do mercado, dos especuladores e dos tribunais, uma tríade fatal.
É razoável perguntarmo-nos o que se deve fazer com estas obras importantes. A pergunta é simples: deve o Estado comprar ou não? Desde que o negócio seja limpo e que se respeite a lei, o Estado deve comprar, conservar e divulgar. Para já, impõe-se a interdição de exportação. Moedas e livros são património histórico. Pintura, escultura e fotografia passarão a sê-lo. E tudo será património público. É assim que deve ser.
Longe de nós, Notre Dame recorda a eternidade da história e a fragilidade do património. E a certeza da cultura.

Público, 26.5.2019 

domingo, 19 de maio de 2019

Grande Angular - Estado frágil, país vulnerável

Já se sabe que o Estado português não é forte, mas é gordo. Pesado. Lento. E presa fácil. Os últimos anos têm sido confirmação dessa verdade. Pode dizer-se últimos quatro anos, de socialistas e esquerdas. Últimos oito, se acrescentarmos a aliança PSD/CDS. Ou mesmo catorze, com os seis dos socialistas de Sócrates. Não vale a pena tentar culpar o “governo anterior”, como eles próprios fazem. Já se percebeu que é receita gasta. O estado a que chegámos traduz um processo de deterioração política e institucional para o qual têm contribuído governos, parlamentos e muito mais gente. Só que, se não serve dizer que “são todos culpados”, também não vale diluir as responsabilidades. Para cada caso, é sempre possível designar no espaço e situar no tempo. Sem isso, não há remédio.
Jamais saberemos se a acumulação de casos na comunicação se fica a dever a coincidências ou ao ano eleitoral. É possível que esta última seja a hipótese adequada. Mas isso faz parte da democracia. Quando há eleições, ajustam-se contas, fazem-se promessas, castiga-se e recompensa-se. E também há quem se vingue.
Bastou um homem e a sua singularidade para deixar em crise as instituições nacionais, os órgãos de poder, a banca, os jornais e as televisões. Um só homem, apoiado em peritos na utilização do Estado e do direito, consegue pôr em cheque o sistema de justiça e vários governos. Um especulador, especialista em despertar a libido dos ministros, foi capaz, com a promessa de dar lustre artístico ao governo, de conquistar a idolatria dos clientes, a cumplicidade do governo e o silêncio das instituições artísticas do país. Usou e foi usado, mas imprimiu o seu toque especial.
Um outro homem, apoiado num partido, com a colaboração de ministros, advogados e predadores de várias origens, exerceu seis anos o cargo de Primeiro-ministro e deixou marca profunda na história da vilania política, enfraqueceu as instituições, transformou políticos em agentes sem mérito nem qualidade, mas com uma capacidade de impostura só comparável à sua covardia.
Outro homem, com família, reputação e fortuna, soube condicionar a seu proveito a economia do país, as suas finanças e muitos políticos, conseguiu contribuir decisivamente para a destruição ou a alienação da banca portuguesa e de algumas das melhores empresas, numa acção única da história do país, só talvez comparável aos estragos feitos pelas revoluções. 
Há mais casos que ensombram e atormentam os nossos dias. Greves de camionistas que, em poucos dias, deixaram uma sensação de pânico. Ameaça permanente de incêndios que revela a falta de previsão, a preparação da última hora e a dependência de traficantes. Adquirido em suspeitíssimas circunstâncias, o sistema de comunicações de segurança revela-se incapaz de dotar o país daquilo para que foi encomendado, eficiência na emergência. Um roubo de material de guerra levado a cabo em estranhas condições que deixaram as Forças Armadas em questão, o governo em cheque e as polícias em crise. As comissões de inquérito parlamentar, neste caso sobre questões de energia, aprovam o que a maioria quer e lhe convém.
Este breve catálogo peca por defeito. O pior nem é a gravidade dos crimes e do abuso. O pior é que a sociedade, o Estado e as instituições permitem o que nos acontece. Assim se revela a incapacidade de regular e vigiar. A ausência de instituições livres e eficientes. A morosidade das polícias e dos tribunais. A miopia de muita imprensa. A facilidade com que as elites económicas, políticas e artísticas se deixaram aliciar e seduzir. A covardia ou a cupidez de muitos que vão sempre sabendo o que se passa, mas calam ou só revelam quando lhes convém. A falta de agilidade dos organismos públicos incapazes de reagir prontamente. O pior é que as instituições políticas e judiciárias não estão à altura dos criminosos.
O nepotismo faz evidentemente parte da teia complacente. As famílias dos ministros, mulheres e maridos, filhas e filhos, genros, irmãos, netos e sobrinhos, estão incluídos. É estranho que a esquerda, ainda por cima a esquerda democrática, que tanto diz lutar pela igualdade, contra o nepotismo das aristocracias, pelo laicismo, pela neutralidade do sangue e da condição social, é estranho que esta esquerda seja cúmplice. Tinha de ser a esquerda democrática que viria, com hipocrisia, a valorizar a conjugalidade na política e a defender o velho principio da moral corrupta e do nepotismo: “Não é por ser da família de alguém, que uma pessoa pode ser penalizada!”.
Não são só as famílias, nem os políticos. Perto deles, a par deles, às suas ordens ou no seu comando, estão os escritórios de advogados poderosos, com meios e pessoas, com reputação e força, conhecedores de segredos de pessoas, de partidos e de empresas. Apoderaram-se do Estado e dos ministérios, recebem encomendas para contratos, acordos, cadernos de encargos, PPP, operações financeiras, defesa do Estado contra privados e defesa dos mesmos privados contra o mesmo Estado. Esta espécie de Mamelucos do direito exerce hoje tanta ou mais influência do que grupos privados, sindicatos, partidos políticos, igreja católica ou maçonaria!
O que também enfraqueceu o Estado democrático foram as privatizações e as reprivatizações que moldaram a política e a economia das duas últimas décadas. Feitas aparentemente pelas boas razões, por espíritos liberais, concebidas para libertar a sociedade e a economia, levadas a cabo com as melhores intenções expressas, acabaram por ser o leilão histórico de empresas, a destruição de algumas, a alienação irreflectida de outras e a entrega de poderes a grupos de predadores nacionais e estrangeiros. Assim se liquidaram, alienaram ou miniaturizaram empresas e sectores como os telefones, os cimentos, a electricidade, os petróleos, a rede eléctrica, o gás, os correios e outras.
Catervas de políticos à solta, bandos de capitalistas (nem todos empresários…) e de traficantes de influência (nem todos ilegais…), associados a advogados e seus escritórios, ligaram-se ao poder político com mais profundidade e mais intimidade do que o Estado Novo salazarista ou o comunismo de Cunhal e Gonçalves e estreitaram o seu conúbio com dois partidos, o PS e o PSD. Governam a sociedade e a política. E até agora não encontram diante de si instituições livres, independentes e eficazes que lhes ponham travão. É o que faz um país vulnerável.
Público, 19.5.2019 

domingo, 12 de maio de 2019

Grande Angular - Europa, sem ilusões

Há dias, este jornal publicou uma carta comovedora. Foram 21 os Chefes de Estado europeus que se dirigiram aos cidadãos do continente, exortando-os a amar a Europa e a votar nas eleições. Como é sabido, declarações deste género só se fazem quando as coisas ameaçam correr mal. Geralmente, correm mesmo. Eram só os 21 Presidentes da República. Os monarcas, também chefes de Estado, estavam ausentes, o que é incompreensível, ou foram excluídos, o que é inadmissível. Eram países sem importância, como a Bélgica, a Dinamarca, a Espanha, a Holanda, o Luxemburgo, o Reino Unido e a Suécia.
O texto é curioso. É uma profissão de fé na Europa. Chefes de Estados que já se detestaram e guerrearam inúmeras vezes juntaram as suas vozes em prol da Europa. É bonito ver! Tão bonito quão inútil! Eles imploram votos e pedem entusiasmo: é quase tudo o que não vão ter! A crise da Europa e as crises na Europa não se resolvem com mais Europa, o que é o mesmo que dizer com mais crise! Nem com Ágapes ou Credos.
Apesar das enormes taxas de abstenção, o pensamento dominante na Europa é de que é possível, com educação e propaganda, aumentar a participação. Entre os mitos virtuosos relativos à União, contam-se o da cidadania e o da democracia. Ora, não existe uma cidadania europeia, nem uma democracia europeia. Há cidadãos nacionais na Europa, tal como há democracias na Europa. 
Uma ideia fixa é a de que existe uma identidade europeia, quando é evidente que existem identidades nacionais, possivelmente em bom convívio com a Europa, mas uma identidade europeia é uma invenção. Outra ideia persistente é a de que a Europa deve estar próxima dos cidadãos, resolver os problemas das pessoas e ser sentida como uma realidade na vida quotidiana de todos. Se assim for, as crises desaparecerão, o nacionalismo será derrotado, os fanatismos serão combatidos e os inimigos da Europa poderão ser destroçados. Os europeus perceberão a bondade da ideia europeia. A União será uma realidade quase familiar. São estas as ilusões que abundam no nosso continente, as mesmas que poderão liquidar tão interessante criação como a União!
As crises europeias, segundo os ortodoxos, resultam do facto de não haver suficientemente Europa. Daí a solução conhecida de “Mais Europa”, com o que as dificuldades aumentam. Sempre que surge um problema, seja uma mera questão de identidade e de autonomia, de imediato aparecem os sacerdotes europeus a bramar contra o nacionalismo e assim se dá, ao contrário do esperado, mais força ao nacionalismo.
A Europa ainda é invejável pela cultura, pela protecção social, pelos direitos dos cidadãos e pela paz. Mas já não o é na ciência, na tecnologia, na inovação, na economia, na produtividade, na defesa e na força política no mundo. Destruir as grandes conquistas europeias, que são conquistas dos Estados e das nações, significa simplesmente desistir do que a Europa tem de grande e importante, a sua variedade, a autonomia dos seus países e a identidade dos seus Estados e cidadãos.
A democracia e a liberdade têm geografia. Talvez, dentro de uns séculos, seja diferente. É possível. Mas, para já, quem defende a liberdade, a democracia e os nossos direitos são os Estados nacionais que conhecemos, com os seus parlamentos, os seus tribunais, as suas forças armadas e as suas polícias. E até com as suas alianças internacionais, como a NATO e a UE. São os Estados e as nações que garantem direitos e liberdade. Quem quiser reclamar Justiça, segurança, direitos fundamentais, protecção e solidariedade, dirige-se ao Estado nacional.
Alguém sensato acredita que um Parlamento com 750 deputados, vindos de 28 países e falando 24 línguas oficiais seja capaz de defender os direitos dos cidadãos? Alguém se revê num Parlamento em que os deputados não são reconhecidos pelos seus eleitores, não representam pessoas e não tem meios para cuidar das liberdades e dos direitos dos europeus?
Alguém sente como seu um Parlamento com enorme capacidade de dissolução dos problemas e das diferenças, onde qualquer mudança à direita num país é compensada por igual mudança à esquerda noutro país? Se, dentro de uma semana, Portugal fizer uma viragem política, logo a Lituânia compensará, votando de outra maneira. Aquela assembleia não é um Parlamento, é um lugar geométrico e um passatempo. Ou Cafarnaum, cidade de esperança, destruída na confusão.
Haverá alguém capaz de dizer o nome de cinco comissários? Ou de enumerar os países membros? Ou de citar os nomes de três presidentes da Comissão? Ou de saber as diferenças entre o presidente do Conselho, o presidente do Parlamento e o presidente da Comissão?
Aideia de que há uma só União, a que temos, é uma ideia despótica, como sempre que existe um dilema. Querer uma União diferente da que temos, menos federal, menos unitária e mais variável não significa ser nacionalista, fascista, xenófobo e anti-europeu. Há várias Europas e várias Uniões possíveis. Com e sem nações. Com e sem federação. Com e sem geometria variável. Com ou sem euro e Schengen. Com e sem fronteiras abertas a terceiros. É detestável a ideia de que só existe uma Europa, uma só União, uma só modalidade! Isso é puramente totalitário! Existem mutas Europas possíveis, tudo depende das escolhas, da força dos países, da convergência ou divergência de vontades maioritárias.
É verdade que a União está sob ameaças. Dos seus rivais, Rússia, China e Estados Unidos. Dos seus inimigos, nacionalistas de extrema-esquerda e de extrema-direita. Sobretudo de si própria, dos que insistem em dizer que a União se deve construir contra os Estados, contra as identidades nacionais e as pátrias.
Como já toda a gente percebeu, nas próximas eleições europeias, apesar de tantos candidatos dizerem com ar seráfico que querem “discutir a Europa”, a verdade é que se vai votar nacional, Lisboa, Paris, Londres, Madrid, Barcelona, Roma e Milão. Mas, como o voto não tem efeitos, a maior parte dos eleitores não vai votar. Os que, nesse dia, o fizerem, votarão por causa dos imigrantes, da corrupção, dos bancos, do salário mínimo, da saúde, das filas de espera, dos atrasos na justiça, da criminalidade, dos incêndios, do racismo, da violência doméstica e da pobreza. Quem votará por causa das directivas europeias e das estruturas de decisão?
Quem realmente pode destruir a Europa e a sua União é quem se revela intolerante e autoritário, quem utiliza a Europa contra a identidade nacional. Quem se limita a acreditar. Quem sonha com sociedades sem geografia e sem identidade. E quem fantasia com países sem cultura e sem autonomia. Quem cultiva a pior das armas: as ilusões. 
Público, 12.5.2019 

domingo, 5 de maio de 2019

Grande Angular - Saúde e política

É legítimo pensar que o PCP e o BE pretendem acabar com a saúde privada. Até chegar esse dia, procuram percorrer os caminhos estratégicos dos passos graduais. Primeiro proíbe-se isto, depois aquilo, até à vitória final. É o seu mais legítimo direito. Não gostam da saúde privada, não entendem que assim se possa tratar bem de doentes, acham que só o público gere e trata bem. Pensam que a saúde não é um negócio e que não se pode ganhar a vida com a saúde dos outros. Para eles, a saúde privada prejudica a saúde pública. Se o público trata mal, é por causa dos governos e do sector privado. A ideia de que a saúde privada deve ser liquidada não é original: estes partidos pensam o mesmo da educação, da segurança social, da água, da electricidade, dos caminhos-de-ferro, dos correios e de quase tudo. Não há verdadeiramente novidade.
Conforme os tempos e as conveniências, o PS acolhe todas as hipóteses para organizar a saúde, com especial afecto pelo Serviço Nacional de Saúde. As sensibilidades que existem dentro do partido dão para tudo. Há os que querem estreita colaboração entre público e privado. Os que querem separar as águas, mantendo ambos sectores activos. E os que querem deixar os privados longe, em áreas residuais ou em condomínios de ricos.
O PSD e o CDS, com diferenças de pormenor, aceitam o serviço público, uns mais por resignação, outros por suave convicção, nunca foram persuasivos nas suas declarações favoráveis ao SNS e exibem uma preferência marcada pela saúde privada.
É pena que quase ninguém defenda um sector público forte, ao lado de um sector privado consistente. Geralmente, entre nós, quem quer um forte, quer liquidar o outro. Ou espera que os outros sejam fracos.
Adiscussão sobre a lei de bases da saúde é bem vinda. Permite esclarecer opiniões. O momento, em cima de eleições, não é o melhor. Os ânimos estão acesos, o argumento eleitoralista domina. Como vivemos em tempos de adversários, esquerda contra a direita, a saúde não vai ficar a ganhar. A nova lei de bases, se houver uma e se for declarada constitucional, não vai durar muitos anos. De qualquer modo, o mais importante na saúde não é de todo a lei. É o orçamento, o investimento, a organização hospitalar e dos centros de saúde, a exclusividade dos médicos, a humanização dos cuidados e a prontidão do atendimento.
Aparentemente, o caso mais polémico é o das parcerias público privadas, de que Portugal é, previsivelmente, o campeão do mundo! PSD e CDS querem que seja possível. O PS admite, diz que não gosta muito, mas esteve em quase todas. O PCP e o BE querem proibir. É mais um debate bem português. A proibição é o essencial. Uma boa lei, em país civilizado, deixaria as hipóteses em aberto aos governos e aos partidos que, conforme os votos, fariam o que desejassem fazer. 
As PPP da saúde são poucas, talvez quatro. Umas correm bem, outras mal. Não merecem este barulho todo. É certo que não deveria haver PPP em quase nada. Mas a verdade é que as PPP dos últimos trinta anos e que incluem os sectores ferroviário, rodoviário, portuário, de saúde, de segurança e outros, foram uma solução de espertinhos para adiar défices, como foram a porta de entrada para enorme quantidade de negócios ruinosos para o Estado. Este paga a mais, controla a menos, reserva para si as cláusulas de risco, remete para os privados os benefícios e assinou misteriosos contratos com cláusulas secretas. As PPP para a saúde deveriam ser revogadas, tal como, aliás, a maior parte das outras, se não mesmo todas, dado que se revelaram um péssimo negócio para o Estado e uma escola de promiscuidade para muita gente. 
OSNS deve ter gestão pública, é um princípio evidente. Não faria qualquer sentido subalugar este serviço a entidades privadas cujos objecto e orientação são diferentes da lógica essencial do serviço público. Deve ter meios e exclusividade, com autonomia e responsabilidade.
A existência de instituições privadas é essencial, como exigência de liberdade e democracia; como termo de comparação entre sistemas; como fonte de desenvolvimento; e como condição para a livre escolha, mesmo sabendo que esta liberdade de escolha não beneficia toda a gente de igual modo.
Parece inquestionável que possa haver convenções leais entre organizações públicas e instituições privadas, no quadro dos subsistemas e de contratos públicos, como a ADSE, os militares e outros. As convenções contribuem para a liberdade de escolha. Esta deveria ser virtude estendida a todos os portugueses. Os sistemas de convenção deveriam ter organizações de supervisão de confiança e não incompetentes como foi o caso durante os anos de facturação exagerada, só possível com a conivência das entidades públicas pagadoras.
A dedicação exclusiva ao serviço público, por parte de médicos e enfermeiros, deveria ser a regra, com efeitos benéficos para as instituições e para os utentes, como se vê nos poucos hospitais em que tal é adoptado.
Indispensável, sem exigir qualquer nova lei, é um grande desenvolvimento do SNS, das suas capacidades técnicas, da prontidão, do conforto e da humanidade das suas unidades e dos seus profissionais! Uma revisão radical dos sistemas de filas de espera e de marcação de consultas e de cirurgias é tarefa urgente, pois vivemos num país cruel, em que os atrasos são marcas de uma enorme desigualdade social.
Há quem queira destruir as instituições privadas de saúde, como aliás querem liquidar os privados das escolas, dos seguros, dos serviços públicos e, mais tarde, da economia! É lamentável verificar isto, meio século depois de fundada a democracia. Mas a vida reserva-nos estas surpresas. Governo, socialistas, comunistas e bloquistas juntam esforços contra os médicos e os enfermeiros, contra a ADSE, contra os seguros de saúde e contra as clínicas e os hospitais privados. É evidentemente uma luta política que nem sequer se desculpa por ser ano de eleições. Foi-se longe de mais. O SNS e as instituições públicas de saúde já sofriam uma enorme pressão por falta de investimento e menor qualidade de serviços. Há miséria na saúde desde os tempos da troika, agravados agora pelo socialismo. O SNS não precisava desta crise exclusivamente política. Precisava, isso sim, de cuidado.
Público, 2.5.2019