sábado, 6 de janeiro de 2024

Grande Angular - O PS: Dualidade e duplicidade

 Em Congresso este fim de semana, os Socialistas portugueses bem podem ter orgulho na sua história. Fundado em 1973, o partido tem praticamente a idade da democracia portuguesa. Ao longo de cinquenta anos, é seguramente o primeiro responsável pelo estabelecimento da democracia em Portugal. Não se esquece, com certeza, Ramalho Eanes e os militares do 25 de Abril e do 25 de Novembro, nem o papel pessoal de Mário Soares. Além de, durante períodos curtos, mas significativos, a Aliança Democrática, o PSD, Sá Carneiro e Cavaco Silva terem dado também grandes contributos. Mas é indiscutível que a parte mais importante cabe ao PS.

 

Este venceu quase uma dezena de eleições, esteve em outros tantos governos, elegeu dois Presidentes da República do partido e um fora do partido, teve duas maiorias absolutas, já governou sozinho em minoria e em maioria, já fez governos de coligação com toda a gente, com a direita do CDS, com o centro direita do PSD e com as esquerdas bloquistas e comunistas. Foi o partido que solicitou a plena adesão à CEE (então Comunidade Económica Europeia). Deixou o seu nome associado à Constituição e às suas revisões, assim como às principais leis do país.

 

Mais e melhor do que todos os outros, os socialistas souberam, alternada e sucessivamente, mas também em simultâneo, aliar-se à Igreja e à Maçonaria, numa muito difícil, mas conseguida pirueta política. Em grande parte, as instituições públicas conhecidas e criadas nas últimas décadas foram conseguidas e estabelecidas por este partido. É, de muito longe, com perto de centena e meia de presidências de municípios, o partido dominante do poder autárquico. A sua força política contrasta favoravelmente com a maior parte dos partidos socialistas europeus que se encontram em plena decadência doutrinária e eleitoral.

 

Elástico, do ponto de vista ideológico e programático, a sua maior virtude reside na dualidade, no facto de tudo fazer para combinar liberdade com igualdade, Estado com privados, o individual com o colectivo e o mérito com a discriminação positiva. Esta dualidade, interessante e positiva, compara com a duplicidade do partido, as suas tendências para fazer uma coisa e dizer outra e a de virar à esquerda cada vez que quer governar à direita. Duplicidade também nas contas públicas, com as mais sólidas contribuições para os défices e os mais dolorosos esforços para a sanidade das contas certas. Por três vezes, teve de pedir assistência financeira internacional, tendo sido, uma vez, o responsável pela mais profunda bancarrota financeira portuguesa do último século. Em poucas palavras, a dualidade é de louvar, já a duplicidade é de lamentar.

 

A duplicidade pode ter vantagens a curto prazo, mas, no conjunto e historicamente, é o triunfo da desorientação e uma das causas do atraso relativo da economia, da sociedade, da cultura e da política. Fez a Constituição, é o seu principal autor, mas deixou fazer normas ridículas de que nos queixámos durante décadas e de que ainda hoje sofremos as consequências.

 

Aparentemente respeitador da sociedade civil e do livre associativismo, oscila entre a absoluta tolerância e o dirigismo despótico perante os grupos privados, as associações e as instituições. É, por um lado, defensor da transparência democrática nos processos de recrutamento para o Estado, de obtenção de benefícios e subsídios e de licenciamento e autorizações, que considera, justamente, essencial à liberdade e ao mérito. Mas também é, por ouro lado, o partido com mais clientes seus nomeados e beneficiados e com mais cunhas e favores que considera a justa recompensa da ética republicana, isto é, do espírito de “quem ganha, alcança”! Ou de “quem ganha eleições, manda!”. Ofende, sem escrúpulos, as ordens profissionais e as Forças Armadas.

 

Sempre preocupado, justamente, com o progresso da educação e da cultura, que considera motores da igualdade e indispensáveis elevadores sociais, o partido deixou sistematicamente degradar o ambiente escolar, deteriorar a situação dos professores e instaurar-se um estilo indisciplinado no processo pedagógico. E deixou crescer uma orientação anticientífica e anti cultural, cujas principais vítimas são evidentemente as famílias das classes trabalhadoras e dos grupos mais desfavorecidos.

 

É seu o maior contributo para o crescimento da magistratura e para a definição dos campos e competências das várias magistraturas (judiciais e do ministério público), ao mesmo tempo que parece ser o partido com mais envolvimentos em processos de corrupção e nepotismo. Por outro lado, é também notória a sua paralisia ou a sua abstenção diante da crise de justiça que se agudiza há anos.

 

Os socialistas são, inequivocamente, os autores e os principais responsáveis pelo SNS, Serviço Nacional de Saúde, mas são também eles que presidem, no momento actual, ao período do seu maior declínio. Tudo fizeram para tornar compatíveis as duas medicinas, as duas saúdes, a pública e a privada, mas acabaram por se desentender com ambas!

 

Com provas dadas, no discurso e na legislação, de uma atitude excepcionalmente tolerante e solidária, não o incomoda ter vivido e governado o período de maior exploração de mão-de-obra clandestina e de mais intenso tráfico de imigrantes ilegais.  Favorável, retoricamente, à integração de estrangeiros imigrantes, tudo faz e deixa fazer para o progresso multicultural dos “guetos” e das comunidades segregadas.

 

Considera-se traído por todos os seus aliados. Foi derrotado no Parlamento pela esquerda e foi derrubado pela direita. Perdeu com a direita, mas com a cumplicidade e a ajuda da esquerda. Foi derrotado em Belém por presidentes que tinha ajudado a eleger.

 

Em geral, os congressos partidários deixaram de ser locais de debate e confronto. Ainda menos de reflexão. São agora, ainda por cima com a eleição directa e prévia do líder, liturgias de consagração. Deste congresso, nada resultará. Já se sabe o essencial. O objectivo é o de preparar a campanha, trocar números de telemóvel e mostrar-se ao eleitorado. O futuro destes socialistas, com a nova direcção, ser-nos-á servido logo a seguir às eleições de Março. Para já, de uma coisa podemos estar certos: o PS é capaz de tudo.

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Público, 6.1.2024

1 comentário:

Jose disse...

Se pessoa, dir-se-ia de carácter duvidoso.