Quem disser que as eleições anteriores foram a feijões, não anda longe da verdade. Com as próximas, todavia, estaremos a falar de coisas sérias. Por mais que os os candidatos queiram fazer demagogia, como fizeram magistralmente durante a campanha europeia, não vai ser possível evitar os grandes temas e as escolhas difíceis.
Todas as eleições legislativas são decisivas. As próximas não escapam ao lugar-comum. Mas têm qualquer coisa mais. As esquerdas, que há quatro anos escaparam às questões de doutrina, têm agora de escolher e tomar decisões prévias sobre o que é importante. Na verdade, a solução de governo encontrada há quatro anos foi um acaso proporcionado pelos resultados e inventado numa noite de insónia, graças à ousadia oportunista do PCP, à disponibilidade sonsa do BE e à ambição escorregadia do PS. Como é sabido, nenhum partido teve de anunciar ao que vinha.
Agora, é diferente. O eleitorado não aceita que os partidos se escondam novamente e espera saber quem faz coligação e quem está disponível para entrar no governo. Nestas eleições, as esquerdas vão ter de dizer o que querem da futura União Europeia, da NATO e das Forças Armadas. Estão obrigadas a esclarecer o que preparam para o Serviço Nacional de Saúde, para a ADSE e para a acumulação de funções públicas e privadas por parte dos médicos. Têm de se exprimir sobre as Parcerias Público Privadas, as passadas e as futuras. São obrigadas a desvendar as suas políticas relativas ao investimento privado nacional e estrangeiro.
O que precede é a substância. Mas há mais do que isso: o compromisso e a política de alianças estão a partir de agora no centro das realidades. Está a chegar a altura de sabermos se as extremas-esquerdas, o PCP e o Bloco, estão ou não em vias de se render à democracia e de renunciar aos seus valores tradicionais de combate à iniciativa privada e à liberdade individual, de ditadura da classe trabalhadora e de estratégia de luta de classe contra classe.
Chega também o momento de o PS, se for honesto, revelar se está disposto a mudar a sua política tradicional, a de uma esquerda democrática central e de equilíbrio, substituindo-a por uma estratégia de união ou unidade das esquerdas e de convergência com os comunistas e os bloquistas. O que não será novo. Em França, nos anos 1930, a Frente Popular deu o exemplo. Mais tarde, Mitterrand fez algo de parecido nos anos oitenta, com o que liquefez a extrema-esquerda. Em Portugal, Jorge Sampaio e o chamado ex secretariado tentaram, em seu tempo, a frente comum e a aliança de esquerda. Mário Soares que, toda a sua vida, se distinguiu pela vontade obsessiva de se manter sozinho, sem os comunistas, soçobrou nos últimos anos da sua vida e, por causa da maioria de direita e da austeridade da Troika, também defendia a frente unida. Estará o PS disponível para abandonar o seu papel de principal charneira da política e da sociedade? Ou está mais interessado em enfileirar-se nas hostes da guerra das classes?
Nas direitas, os dilemas também abundam. Com mais experiência de alianças, não seria difícil ao PSD e ao CDS definir um caminho. Além disso, na inexistência de uma extrema-direita com peso no Parlamento ou nas ruas, também não seria difícil definir uma estratégia com sentido e futuro. O problema é que as direitas estão derretidas. A desorientação estratégica é enorme. Os problemas pessoais abundam. As relações entre os dois partidos estão no seu ponto mais baixo. Ora, seria realmente importante definir programas e reorientar a estratégia. O que é, finalmente, a direita portuguesa? Ou antes, as direitas portuguesas? Na ausência de líder incontestado, as questões doutrinárias e estratégicas ganham evidente importância. As direitas são liberais? Neoliberais? Ultraliberais? Mais democratas-cristãs ou cristãs sociais? Preferem a Europa, o cosmopolitismo, o Atlântico ou o nacionalismo?
Pode pensar-se que se trata de divagações ideológicas ou de problemas teóricos, tudo inutilidades quando o que está em causa são políticas práticas. Pois que assim seja, mas a verdade é que o futuro das direitas em Portugal depende destas definições e das respectivas escolhas. E se as direitas não souberem começar a resolver a sua vida doutrinária, podem ter a certeza de que a fragmentação espera por elas e de que todas as pulsões ditas populistas e nacionalistas esperam por essa oportunidade.
É de qualquer maneira muito interessante ver os destinos cruzados. Enquanto na esquerda se vai decidir se a extrema-esquerda (existente) é ou não integrada no sistema, na direita vai-se ver se a extrema-direita (inexistente) tem ou não uma oportunidade. Na esquerda vai-se ver se a extrema-esquerda vence a democracia ou é por ela derrotada, na direita vai-se ver se a extrema-direita tem uma oportunidade para crescer e se desenvolver. É quase um paradoxo: a unidade da direita pode salvar-nos da extrema-direita, enquanto a unidade das esquerdas pode-nos transformar em reféns da extrema-esquerda.
Estamos a entrar num ciclo perigoso da nossa vida colectiva. Depois de mais de trinta anos sem bipolarização entre a esquerda e a direita, aproximamo-nos do dia em que o dilema alternativo e o confronto radical entre esquerdas e direitas, entre público e privado, entre capital e trabalho e entre autoridade e liberdade, constituirão o eixo principal da política. Se assim for, ficaremos a perder seguramente.
Enquanto quase toda a gente, na Europa e alhures, tenta fazer aproximações e fugir das polarizações, em Portugal, mais do que nunca desde há quarenta anos, está a tentar dividir-se o pais em esquerda e direita! É mau caminho! É perigoso! Há umas semanas, quando vimos os deputados de esquerda, em roda, a cantarolar a “Grândola” no hemiciclo parlamentar, foi dado um sinal. Parece uma anedota, parece risível, mas não é!
Se com esta divisão e este confronto, a extrema-esquerda se rendesse à democracia ou desaparecesse eleitoralmente, estaríamos diante de uma obra-prima política. Se, em vez disso, a esquerda democrática se deixa encantar pelas novas versões da política do confronto, da luta das classes sem tréguas, de absorção pelo Estado de toda a iniciativa social, económica e cultural, então estaremos diante de um novo e monumental desastre da política portuguesa.
Público, 2.6.2019
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