sábado, 23 de outubro de 2021

Grande Angular - Estratégias

 Já houve outras modas. Foram os Planos, Nacionais ou Integrados. Sem falar nos de Fomento, invenção portuguesa para fugir à má fama dos planos soviéticos. Os planos mantiveram-se ao longo do tempo, mas hoje estão em perda de importância. Vieram depois os Programas e os Projectos. E finalmente os Observatórios. Criaram-se para tudo, desigualdades, violência, crime, droga, justiça, família, cultura… Há cerca de uma década, contavam-se 85 Observatórios (nacionais, regionais, municipais e sectoriais), geralmente recheados de amigos. Os resultados desta incansável actividade são por vezes interessantes, mas em maioria são medíocres. Os Observatórios dedicam-se à propaganda, mais do que à observação.

Agora, são as Estratégias! A complexidade da vida social, a preocupação em dar a entender que as autoridades têm ideias e a obsessão com a aparência fizeram com que os governos desenvolvessem esta lucrativa actividade: a da elaboração de estratégias. Estas têm todas as vantagens. Parecem inteligentes e competentes. Recorrem a numerosas contribuições disciplinares. Prometem mundos sem responsabilidades práticas. Conseguem calar as reclamações. Sugerem que o destino está sob controlo. Ocupam muita gente a elaborar, escrever e reunir. Permitem a contratação de amigos, familiares, agências de comunicação e empresas de consultoria. Assim é que, para quase todos os problemas nacionais, há estratégias. Pode mesmo dizer-se que a grande estratégia consiste em… elaborar estratégias!

Umas têm meia dúzia de páginas, outras centenas. Com gráficos ou texto. Imagens ou links. Organigramas e calendários. Coligem informação e criam emprego. Saber se as estratégias são eficazes, se são compreendidas, se contentam os destinatários… esses são outros problemas. Saber se os beneficiários (eleitores e contribuintes) querem aqueles fins e respectivos meios, isso é também outro problema.

A maior parte das vezes procuram a resolução de problemas, como a desigualdade social ou a corrupção. Isso é verdade. Mas fazem-no sempre com segundas intenções. Primeira, mostrar que toda a gente na Administração está unida. Segunda, criar uma sensação de dever cumprido. Este último facto é particularmente chocante, num país exímio em formidáveis soluções jurídicas, mas que falham diante da vida.

Estas estratégias são de uma enorme utilidade suplementar: revelam a tendência autoritária e dirigista das tradições políticas portuguesas. O que está a acontecer, a propósito do género, da idade, do sexo, da origem racial, da comunidade étnica, da nacionalidade, da natureza e da alimentação, é simplesmente insuportável. As autoridades fazem suas as ideias mais mirabolantes que se atravessam nos circuitos culturais e nos movimentos sociais, sobretudo das classes médias urbanas com gosto para ditar a virtude.

São excelentes exemplos da vontade de unificar o público e o privado, os modos de vida e as crenças, os comportamentos e as atitudes. As estratégias designam o pecado e a virtude, o Bem e o Mal. As estratégias são simulacros democráticos de ideologias autoritárias e são os sucedâneos dos dogmas religiosos ou laicos.

As estratégias são documentos e textos oficiais, aprovados por quem de direito, através de Resoluções do Conselho de Ministros e decretos-lei do governo. De muitas delas se diz que foram submetidas a debate público, o que quer dizer que se cumpriram uns procedimentos burocráticos destinados a encenar a discussão. 

Vejamos alguns exemplos das estratégias disponíveis. Estratégia Portugal 2030. Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas. Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade. Estratégia Nacional para as Florestas. Estratégia Nacional para o Mar. Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Estratégia Nacional para o Hidrogénio. Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento. Estratégia Nacional de Inteligência Artificial. Estratégia Nacional para as Compras Públicas Ecológicas. Estratégia Nacional para os Direitos da Criança. Estratégia Nacional para as Cidades Sustentáveis. Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Pedonal. Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho. Estratégia Nacional de Prevenção e Controlo da Dor. Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção. Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo. Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar. Estratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço. Estratégia Nacional para a Habitação. Estratégia Nacional de Educação Ambiental. Estratégia Nacional para a Qualidade na Saúde. Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais. Estratégia Nacional para os Pagamentos de Retalho. Estratégia Nacional para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade. Estratégia Nacional para a Inclusão e a Literacia Digitais. Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas. Estratégia Nacional de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente. Estratégia Nacional para as Pessoas com Deficiência. Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situações de Sem Abrigo. Estratégia Nacional para o Envelhecimento Activo e Saudável. Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação.

Esta última é, sem dúvida, a jóia. Começa assim: A Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação – Portugal + Igual” (ENIND) assenta numa visão estratégica para o futuro sustentável de Portugal, enquanto país que realiza efectivamente os direitos humanos, assente no compromisso colectivo de todos os sectores na definição das medidas a adoptar e das acções a implementar. Esta abordagem integrada potencia a colaboração e coordenação de esforços, valorizando uma visão comum que simultaneamente tenha um efeito mais estruturante e sustentável no futuro que se pretende construir”. A esta gloriosa entrada em matéria, seguem-se as considerações mais fantasiosas, alucinadas e totalitárias que seja possível imaginar. A ENIND propõe-se eliminar os estereótipos e liquidar os preconceitos próprios de todas as formas de discriminação e desigualdade, de género, de fortuna, de origem racial, idade, cultura, estatuto social… Para esse fim, recorrerá a todos os meios e todas as intervenções nas áreas publicas e privadas, no trabalho, na escola, nas instituições… Enfim, na vida.

Público, 23.10.2021

2 comentários:

Jose disse...

Não fique por dizer que a desigualdade perante a lei e perante os agentes da igualdade (desde logo os funcionários do Estado que promove a estratégia), é o resultado seguro de toda a estratégia para a igualdade e não discriminação.

O que foram delírios de uma esquerda juvenil institucionalizam-se e criam despesa pública; e velhos cínicos distribuem empregos.

António Ladrilhador disse...

Planos? Duvido que aqueles que contam na política ainda se lembrem do que isso é. Observatórios, seria melhor que fossem dispostos em frente ao espelho que cada um deveria ter em casa. Mas não, seria inútil: os políticos de hoje apenas olham para o espelho para fazer a barba, e nunca para olhar bem dentro dos olhos. Aliás, não são eles próprios o espelho dos outros que tão edificante exemplo deveriam seguir? Há também as agências que não agem, os institutos que nada instituem e por aí fora.
Mas devo discordar quanto às estratégias: aquilo que atualmente assim se designa não passa de táticas, de coisas rasteirinhas, de jogadas e de golpes de rins visando, antes de mais - ou unicamente - o enriquecimento material do próprio, necessariamente em detrimento de outrem, já que, apesar de toda a tecnologia de que dispomos, continua a não haver quem nos diga como fazer esticar a manta que cobre, ou os ombros, ou os pés de quem não é 'estratego', como essas pessoas agora dizem.
Ainda que se tratasse de verdadeiras estratégias, também elas soçobrariam perante a entidade maior a que se referia Cardoso e Cunha, que cito em https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/10/antonio-cardoso-e-cunha.html.
Terei gosto em contar com a sua visita.