É uma antiga expressão, uma fábula, uma lenda e um mito: o “Albergue espanhol” é o local para onde se leva o que se quer e onde só se come o que se traz. O significado actual é moderadamente crítico ou pejorativo: qualquer coisa ou sítio onde há de tudo, pessoas, comidas, ideias e políticas, pode ser tratado de albergue espanhol. Com a sensação de que não há escolha nem critério, está tudo misturado, cada um leva o que tem e quer. Diz-se com frequência dos programas eleitorais ou de governo: está lá tudo! A propósito da “Reforma do Estado”, pérola prioritária da tomada de posse do governo, a invocação deste albergue pode justificar-se, é o que veremos nos próximos dias. Ou já há muito trabalho feito ou corremos o risco de estarmos diante de uma miragem. É o que saberemos em breve. É o que deveríamos ver nos próximos debates parlamentares sobre o programa de governo.
É também uma velha ideia, um ideal antigo e uma promessa segura: a reforma administrativa, a reforma do Estado e reforma da Administração Pública são três designações conhecidas e correntes. Desde Marcelo Caetano que a expressão ganhou foros de política e de utilização formal. Desde o século XIX, aliás, que a ideia está no ar. Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Costa Cabral e outros deixaram os seus nomes ligados ao tema. Depois do 25 de Abril, foram poucos os governos que não incluíram a Reforma do Estado e da Administração Pública como prioridade, sinal distintivo, garantia de renovação e de mudança. Por vezes, tratava-se só da Administração e dos serviços, outras vezes era a descentralização. Frequentemente, era de Regionalização que se falava.
O último governo adoptou a tradição. A reforma do Estado é uma prioridade. A prioridade. Segundo as suas palavras, é sobretudo de burocracia que se trata. Mas rapidamente se lêem alusões aos direitos do cidadão, às liberdades públicas e ao progresso económico. Tudo leva a crer que seja, no seu espírito, mais do que eficácia e prontidão. Mais do que “simplex”, talvez. Mas não é claro.
Esta “reforma do Estado” destina-se, o que já não seria pouco, a alterar os procedimentos quotidianos dos serviços, a transparência, a eficácia, a clarificação de competências e o esclarecimento de funções? Ou pretende-se realmente alterar os poderes e os direitos dos cidadãos perante o Estado? Será que se deseja mudar o essencial das competências das freguesias e dos municípios? Ou procura-se mesmo realizar finalmente ou afastar definitivamente o programa de regionalização que continua a encantar ou ensombrar tantos portugueses?
O Serviço Nacional de Saúde faz parte da reforma do Estado? E o sistema público de Educação? A segurança social? A Justiça? A polícia? A segurança e a defesa? Esta breve enumeração já basta para mostrar os equívocos criados. Os poderes das autarquias, o número de municípios e de freguesias e as famosas e famigeradas regiões fazem parte do que este governo entende por reforma do Estado? E a Administração Pública, que evidentemente é peça central da reforma do Estado, a que título será olhada: o da reorganização dos serviços, das direcções gerais, dos institutos e das empresas públicas ou municipais? Ou da relação de tudo isso com os cidadãos, os direitos destes, as suas capacidades de auto-organização? De que estamos a falar, de uma “Reforma da Administração” ou de uma “Reforma do Estado”?
Uma reforma do Estado, qualquer que seja a sua versão, desde a mudança da burocracia até à alteração das estruturas e dos fundamentos do Estado moderno, exige estudo prévio, uma espécie de “Livro branco”, capaz de aliar o pensamento ao conhecimento e a informação ao envolvimento dos interessados. Um esforço desta dimensão, qualquer que seja o modelo adoptado e o fim explícito, pede participação e colaboração de quem sabe e a quem se destina. Um conselho político, social, científico ou consultivo teria papel decisivo. A participação de associações e instituições, sejam as universidades e as associações profissionais, sejam as empresas e os sindicatos, é indispensável. A personalidade e a competência dos novos ministros mais interessados neste tema (Maria Lúcia Amaral e Gonçalo Matias) são garantias da seriedade de propósitos. Mas o tema é mais vasto do que a personalidade de dois ministros.
Será que todo o governo está realmente empenhado nesta reforma? Incluindo e a começar pelo Primeiro ministro? Será que o partido de governo está sinceramente envolvido? O Presidente da República foi devidamente informado? Já existe algo que se pareça com um plano, um projecto, um roteiro ou um programa com objectivos e datas? Está previsto o estímulo a um grande debate público?
Podemos supor que se trata de uma reforma do Estado de grande amplitude. Não total, mas de grande extensão. Ocorrerá a alguém que é possível fazer o que quer que seja sem maioria parlamentar? Ou até mesmo com uma maioria que envolva algum consenso com outras forças de oposição? Alguém pensará que é possível tocar nos poderes das autarquias locais e das regiões administrativas sem uma folgada maioria política? Ou tratar-se-á de grande ilusão e de grandiloquente plano destinado a demonstrar a impossibilidade de governar por causa do mau comportamento da oposição? Alguém pensou seriamente em que um governo minoritário pode levar a cabo uma “Reforma do Estado”? Ou tão só uma reforma da Administração Pública?
O facto de o governo afirmar que pretende realizar tão importante e tão decisiva reforma, sabendo que é um governo minoritário, sugere as piores reacções de incredulidade e de desconfiança. Nenhum dos grandes partidos de oposição, Chega ou PS, estará disponível para um tal esforço e para uma tarefa desta dimensão, sabendo que o espírito, a ideia, os objectivos e os louros serão todos do governo minoritário. Anunciar que pretende fazer o que já sabe ser impossível em condições de clara minoria é de mau agoiro. A fazer-nos pensar que o governo já cometeu o seu primeiro erro: o de pensar que os cidadãos são estúpidos.
Há outras hipóteses de explicação para este gesto. Primeira: a crença de que, à força de ser derrubado, o partido acabará por ter a tão ambicionada maioria parlamentar. Segunda: a convicção de que o Partido Socialista está tão fraco que fará tudo o que se lhe pede, incluindo o suicídio. Terceira: a possibilidade de o governo justificar com a “reforma do Estado” a sua enorme dificuldade em tratar da saúde e da Justiça. Em qualquer caso, é fraca a ambição.
Público, 7.6.2025
2 comentários:
Claro que é fraca a ambição deste governo e de Montenegro. Ou melhor, a única ambição é manter e colher no poder.
Do resto é mais do que sabida a impossibilidade de qualquer reforma ou mudança no Estado e na administração pública. Há demasiado vício e privilégio instalados.
Qualquer mudança relevante ou com impacto significaria introduzir exigência e responsabilização. Os acomodados e privilegiados jamais o permitirão.
Os sindicatos comunistas já estão a mobilizar tropas para a guerrilha à Sociedade e ao governo em particular. Os jornalistas também dão mostra de manter firme a trincheira da manipulação, da parcialidade e do activismo.
O fedor burocrático tudo empesta, na sua fórmula que se dizendo democrática é essencialmente corporativa, amante da tolerância e alérgica a hierarquias e suas responsabilidades.
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