Em 2021, na Europa, continente dos direitos e das liberdades, terra de asilo e refúgio, em Portugal, Estado democrático há quase cinquenta anos, mais propriamente na capital, Lisboa, a Câmara Municipal tem gesto horrendo de delação e insídia.
É possível que o presidente da Câmara, Fernando Medina e o seu gabinete de apoio não tenham querido expressamente agradar ao governo russo e entregar os cidadãos que se manifestaram em Lisboa. É também possível que a Câmara de Lisboa não tenha desejado encantar os governos de Israel, da China e da Venezuela, fornecendo-lhes coordenadas de opositores. É finalmente provável que, dada a diversidade de governos em causa, a Câmara de Lisboa não esteja a seguir os caminhos da cumplicidade política. Muito bem. É sempre bom deixar a porta aberta a uma explicação inocente. Ma a verdade é que a Câmara de Lisboa praticou, durante anos, actos moralmente reprováveis e politicamente condenáveis.
O Presidente da Câmara pediu desculpas. Mas não respondeu a dúzias de perguntas. Não revelou responsabilidades, não esclareceu o comportamento da sua instituição. O Presidente da Câmara pediu perdão, mas defendeu-se mal e não foi convincente. Depois das desculpas de mau pagador, criticou os adversários políticos. Donzela ferida, tratou-os de oportunistas. Contra-atacou, na crença de que era essa a melhor defesa. Mas admitiu que as informações poderiam ser dadas a países democráticos.
O Governo, a quem se exige explicação pronta, parece estar ausente. Pretende que o problema se limite a Lisboa e seja uma questão municipal. Mas não pode escapar a várias exigências, como seja a de verificar quantos municípios fazem o mesmo. Assim como de responder a afirmações claras do embaixador russo, segundo as quais a sua embaixada recebe muitas informações deste tipo e que as outras embaixadas também.
Os silêncios e os adiamentos do Primeiro-ministro foram confrangedores. Assim como os dos Ministros dos Negócios Estrangeiros, da Administração Interna e da Justiça. Onde está a decisão de mandar efectuar inquérito urgente? Que outros organismos fornecem dados pessoais e políticos às embaixadas? E às polícias? Quantas câmaras municipais (são 308 no país inteiro) têm as mesmas rotinas? Quantas enviam dados pessoais e políticos às embaixadas? E aos serviços de informação?
Em tudo quanto se vê, ouve e lê sobre este assunto, há frequentemente um gosto amargo. Muita gente, autoridades, jornalistas, comentadores e académicos, sugere que há modos aceitáveis e denúncias justificadas. “Se é um país democrático…”, alvitra um. “Se for um país da União Europeia…”, sugere outro. “Se ainda fosse um país da NATO…”, aconselha ainda outro.
Ou então, há quem aceite facilmente que nomes de pessoas possam ser enviados para a PSP, a GNR, o SIS e outras polícias. Nomes individuais? Com dados e coordenadas? Para as polícias? Enviados pela autarquia? A que título? Denúncia? Vigilância? Moralidade de costumes? Espionagem politica? Custa acreditar que os nossos contemporâneos, portugueses ou europeus, estejam assim tão insensíveis às questões de direitos fundamentais e da liberdade individual.
Parece que estão aceites normas condenáveis. Por exemplo, pode enviar-se informação pessoal e política a embaixadas de países democráticos, amigos e aliados! Tal é errado! Não se deve enviar informação deste tipo a nenhuma embaixada, amiga ou não. Desde que ao abrigo de tratado internacional e sem qualquer implicação política, as únicas informações pessoais que poderão ser objecto de transmissão cuidadosa e condicional são as que dizem respeito a criminosos procurados pela INTERPOL, assassinos, salteadores e traficantes de qualquer coisa.
Parece que se pode enviar informação pessoal e política a países democráticos que respeitem a Convenção dos Direitos Humanos. Falso! Não se pode nem deve enviar informação deste género a nenhum país, seja qual for o regime. Até porque seria necessário avaliar, caso a caso, a democracia de cada Estado.
Há quem não veja inconveniente em que se possa enviar informação pessoal e política aos países da União Europeia com os quais existe já uma tradição de partilha de informação e de canal aberto entre as polícias. Errado! A informação pessoal e política não deve ser enviada a nenhum pais, seja ele da União Europeia, da NATO, da CPLP ou de qualquer outra associação internacional. Tanto faz que seja a Rússia ou a China, a Espanha ou a Itália! Isto não se faz, ponto final!
Pode uma câmara municipal, no quadro das actividades da liberdade de manifestação, enviar informação pessoal e política às polícias portuguesas, à PSP, à GNR, ao SEF e ao SIS. Errado! Isso também é próprio de Estado policial. A Câmara só deve saber onde se desenrolam as manifestações e disso, apenas disso, informar as polícias e os agentes de trânsito. Não tem de dar nomes de pessoas.
Dizem ainda que se pode enviar informação pessoal e política a empresas, instituições e organizações diante das quais se fazem manifestações. Errado! A Câmara pode informar sobre a ocorrência prevista, o local e a hora, mas nada deve dizer sobre as pessoas e as suas coordenadas!
O problema não é o de protecção de dados, como tanta gente diz. Não é um problema de segredo informático, nem de procedimento administrativo. O problema é político e fundamental. Uma Câmara não pode usar prerrogativas oficiais para obter dados pessoais e políticos a fim de os transmitir seja a quem for!
Medina garante que a delação foi um erro técnico administrativo de procedimentos. Não é verdade! Trata-se de cultura de poder! De Inquisição! De espionagem política. De denúncia e delação. Não é um caso de protocolo, nem um erro de rotinas, é uma questão de controlo da liberdade de expressão!
A ideia de que esta é uma “partilha de dados” é sinistra e faz pensar em relações comerciais, burocráticas e similares. Aqui não se trata de partilha do que quer que seja. Há entrega, delação e denúncia de pessoas cujas coordenadas podem facilitar a espionagem, a perseguição e a represália. Não estamos a falar de hábitos de consumo ou de preferências comerciais, dados que aliás nunca deveriam ser recolhidos sem autorização. Estamos a tratar de liberdades, de garantias constitucionais e de direitos fundamentais. E de instrumentos, aparentemente neutros, que podem servir eficazmente para a perseguição pessoal e política. Falamos de liberdade!
Público, 12.6.2021
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