Um boato corre o mundo: foi a pandemia que derrotou Donald Trump. A vida política é feita destas pequenas verdades e destes grandes boatos, assim como de rumores académicos, disfarçados de rara sabedoria. Inventados por gente esperta, são depois retomados nas redacções dos jornais e nos canais de televisão. Assim se chegou à certeza de que a pandemia tem potencialidades políticas inesperadas. Logo se começou a pensar que é preciso agir depressa para aproveitar o momento. De imediato se começaram a fazer cálculos para as mais insensatas aventuras, para o que políticos portugueses rapidamente se prepararam.
Está estabelecida a ideia de que “quanto pior melhor”. Se tudo correr mal nos hospitais e nos centros de saúde, perde o governo e ganha a oposição. Como de facto muito não está a correr bem, os políticos de oposição sentem que têm de estar atentos. Não só os actuais dirigentes, mas também os candidatos. As direcções partidárias do PS, do PSD, do CDS, do Bloco e até, imagine-se, do PCP são vítimas da pandemia.
Assim é que, dentro dos partidos, começou a temporada de luta e caça. Até no PS, que deveria estar mais empenhado em tratar do governo e do país, apareceram as primeiras “movimentações”. Nos outros partidos, vai haver luta pela liderança antes do Inverno. Na previsão de que, até lá, se confirme a perda de reputação de António Costa e do seu PS. Desde a votação do orçamento que se percebeu que a maioria estava desfeita. Bloco e PCP fazem contas à vida e percebem, com as presidenciais, que o seu futuro está periclitante. Foi quanto bastou para que a competição interna desse sinais de aquecimento. No PSD, que nunca deixou de estar em guerra consigo próprio, revelaram-se já ambições inesquecíveis.
A verdade é que o governo e as autoridades sanitárias não têm desempenhado as suas funções com eficácia. Antes pelo contrário. Mostraram hesitação, ignorância e medo. Revelaram prepotência e capricho. Deram provas de uma obscena inclinação para a propaganda política. Deixaram vir à tona do discurso toda a sua aversão à sociedade e à economia privadas. Ganharam terreno as alucinadas veleidades do PCP e do Bloco que sonham com a destruição pura e simples do mundo privado.
As autoridades enganaram-se com as máscaras, o plano de vacinas, a duração e as regras do confinamento, os comércios a fechar, o ensino à distância, o teletrabalho e a colaboração com os hospitais privados. Falharam nas previsões. Mesmo sabendo, como os socialistas dizem há anos, que o Serviço Nacional de Saúde estava com enormes faltas de pessoal, instalações e equipamento, não foram tomadas medidas suficientes, mal se soube o que aí vinha. Erraram para além do admissível numa área particularmente sensível, a do racionamento e das prioridades das vacinas.
Exageraram nas facilidades e no optimismo quando deviam ser firmes nas regras e nos costumes. Tentaram manipular as taxas e as estatísticas, como fazem os ditadores. Exageraram nas conferências de imprensa ou nas conversas de vão de escada, deram avalanches de pormenores técnicos, logo contrariados no dia seguinte, afogaram a opinião pública, confundiram os cidadãos com excesso de informações inúteis, ocultaram sistematicamente os números simples e reveladores em proveito das enxurradas de equações e taxas. Conduziram uma política de comunicação errada. Informação a mais. Pormenores técnicos a mais. Política a mais. Ideologia a mais. Auto-suficiência a mais. Foram meses que poderão servir, dentro de anos, nas escolas de comunicação, como exemplos da arte de errar e manipular.
Portugal já revelou os melhores resultados do mundo, está agora na fase dos piores resultados do mundo! A chegada de equipas médicas das Forças Armadas alemãs, com material e equipamento, foi festejada como uma vitória diplomática. Foi gesto único ou quase em toda a Europa. A recepção no aeroporto foi um triunfo. Só que o facto não foi apenas visto com reconhecimento. Levou toda a gente a concluir o inevitável: a situação é pior do que se pensava, está tudo mais grave do que se imaginava.
As mudanças de regras e de critérios relativamente às vacinas, a denotar demagogia e propaganda, constituíram os momentos mais confrangedores desta opereta. A elaboração das listas dos “vacináveis” é um monumento à incompetência. Mais de oitenta anos? Mais de 65? Mais de 50, mas com doenças? Que doenças? E os políticos? Os governantes e os deputados? E os profissionais de saúde? E os cuidadores? E os autarcas? E os habitantes dos lares? E os responsáveis das IPSS?
Desorientação convida a sonhar e crise acelera as ambições. Que fazer? Convocar eleições? Dissolver o Parlamento? Demitir o Governo? Nomear um governo de iniciativa presidencial? Obrigar a um governo de unidade nacional com todos os partidos? Forçar um bloco central com o PS e o PSD? Exigir uma coligação formal com de toda a esquerda? Estamos no domínio da fantasia. Os especialistas em artes e manhas políticas sabem tanto ou mais do que os especialistas em máscaras cirúrgicas e em marcas de vacinas.
Reformar? Sim. Mudar um ministro? Com certeza. Demitir um director? Sem dúvida. Criar um serviço mais competente, menos político, menos partidário, mais isento e mais operacional? Sem hesitações.
Mudar o governo? Fazer novo orçamento? Repartir cargos pelos diferentes partidos? Distribuir os directores pelos partidos apoiantes? Voltar aos debates programáticos no Parlamento? Nem pensar nisso! Não há tempo, nem necessidade. Nem se compreenderia uma monumental perturbação política no meio da pandemia, da terceira ou quarta vaga. A não ser que se pretenda pura e simplesmente esquecer a democracia, congelar direitos e deveres, impor autoridade sem limites…
Faça-se o que tem de ser feito neste maldito ano. Mude-se um ou vários ministros. Secretários de Estado. Comissários e directores gerais. Alterem-se procedimentos. Acabe-se com o discurso ridiculamente propagandístico. Recorra-se cada vez mais aos profissionais e aos cientistas. E sobretudo vacine-se o país! Quando chegarmos a um equilíbrio sanitário, a um controlo eficaz e a uma relativa imunidade de grupo, nessa altura terão tempo para fazer eleições, recompor maiorias e governos, derrubar presidentes e secretários-gerais, ajustar contas, derrotar com seriedade os extremos, elaborar plataformas pré-eleitorais adequadas e conhecidas a sufragar pelo eleitorado… E sobretudo terão salvado vidas.
Público, 6.2.2021
1 comentário:
Tudo indicadores de um Estado e de um Governo ocupados por arrivistas que chegam a lugares de competência por 'habilitação política', algo similar a saber articular um qualquer corretês e ter um qualquer padrinho bem colocado na 'estrutura'.
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