A pandemia e os seus efeitos, assim como os processos de combate, a organização dos serviços e a eficácia das medidas tomadas, ocupam os nossos dias, os jornais, as redes e o espaço público. É normal. Fala-se de mais e surgem multidões com uma competência médica e cientifica inesperada. Tanta gente tem tantas opiniões definitivas sobre estes assuntos! Mesmo nestas circunstâncias é razoável que o tema seja a principal preocupação de todos, pessoas, organizações e jornais. Ainda por cima, com a acumulação de incerteza, de ineficiência e de erros, é compreensível que quase não se discuta outra coisa.
Mesmo assim, vivemos tempos em que novas polémicas se instalam, desenvolvem e sobem de tom. Ou antes, velhos preconceitos e antigas irracionalidades renascem. Fascismo e antifascismo, racismo e anti-racismo, antigas rivalidades, estão de novo presentes. Mesmo estando hoje desadequados à sociedade portuguesa, absolutamente fora de tempo e questão, sendo indignos disfarces para outras lutas e infames pretextos para envenenar as relações sociais e políticas, estes dilemas ocupam o espaço que deveria ser de razão e liberdade. Há fascistas em Portugal? Certamente. De todas as condições. Há racistas em Portugal? Não há dúvidas. De todas as cores. Devem a democracia, a razão e a liberdade combater essas pessoas e esses valores? Seguramente e sem hesitação. Mas o que fazem os que se classificam como antifascistas e anti-racistas é tão nefasto à liberdade quanto os adversários. A peste não se combate com a cólera.
Quando as coisas correm mal, mesmo muito mal, o pior vem ao de cima. Os espectros que actualmente ameaçam a paz em Portugal, os vultos que rondam as ruas e os campos são as causas erradas. Não a pandemia, não a desigualdade, não a pobreza, não a incerteza económica e social, mas sim o fascismo e o antifascismo, o racismo e o anti-racismo.
Em tempos de crise, há quem culpe os estrangeiros. É sempre assim, há séculos. Doença ou greve, fuga de capital ou conspiração, terrorismo ou desordem, tudo vem com os estrangeiros. Porque eles tomam conta dos nossos empregos, casam com as nossas mulheres, ficam com os nossos homens, ocupam as nossas casas, trazem valores deles para as nossas escolas, não respeitam as nossas tradições nem as nossas leis. São estrangeiros e abusam da nossa hospitalidade. Aprenderam a viver à custa dos subsídios do Estado, não pagam impostos, só têm direitos, não querem ter deveres. Se não se sentem bem, deveriam ir-se embora. Para o seu país.
E depois há os que além de serem estrangeiros são negros, amarelos ou castanhos. Asiáticos ou ameríndios. Árabes ou chineses. Sem falar nos judeus e nos muçulmanos. São duplamente nocivos. Não respeitam as nossas tradições e querem impor as deles. Desprezam as nossas leis e querem forçar as suas regras. Com os seus deuses, as suas comidas, as suas famílias, as suas regras de casamento e educação, não fazem esforços para se integrar. Forjam casamentos contratados, vendem crianças e adolescentes, trocam pessoas por fortunas, tratam mal os animais, vivem fechados nas suas comunidades, só tratam dos seus e sujam o espaço público de todos e o nosso em particular. Oprimem os seus e não querem saber da democracia.
Somos nós os europeus verdadeiros, senhores de um passado, mestres da descoberta. Filhos e herdeiros de uma longa história, de uma velha tradição, não podemos deixar que nos destruam costumes, regras e crenças. Fomos generosos a ponto de deixar entrar estrangeiros, minorias, negros e árabes, mas eles não se querem integrar nem respeitar as nossas leis. Por isso temos de restaurar a nossa pátria, reconsiderar as nossas tradições e exigir respeito, sem o que terão de ir embora, até porque muitos vieram com mentira, não são refugiados, não são exilados e não são perseguidos. Uns procuram trabalho, outros nem sequer, entregam-se a actividades ilegais, a comércio ilícitos, conspurcam as ruas e as instituições. Não é verdade que somos todos iguais. Quem não está bem que se retire. Não sou racista. Até tenho amigos pretos.
É por isso que combatemos os “supremacistas” brancos. Nós, portugueses de outra etnia, imigrados, minoritários, africanos, estrangeiros, brancos solidários com as minorias e que denunciamos a superioridade dos brancos, dos antigos colonialistas, dos esclavagistas e dos nostálgicos do fascismo. São esses brancos que nos exploram, abusam das nossas mulheres, tentam vender-nos droga, não nos pagam a horas e quando pagam são salários de miséria. Não nos admitem nas suas escolas nem nos seus hospitais, não cuidam dos nossos velhos, pagam mal as pensões e quando as coisas não correm bem para eles, por causa deles, a primeira coisa que lhes ocorre é dizer-nos “vão-se embora”. Nem sequer percebem que muitos de nós, cada vez mais, nascemos aqui. Por isso, exigimos medidas contra os racistas, contra os que, no espaço público, alimentam o ódio contra os estrangeiros, querem restaurar as glórias do colonialismo, a força dos conquistadores, os direitos ilimitados dos brancos e dos poderosos sobre os trabalhadores. Exigimos que nos devolvam o património que nos roubaram durante séculos. E que a história seja expurgada do racismo e do colonialismo.
Estes confrontos envenenam a vida política portuguesa. Destroem a inteligência e o sentido de comunidade solidária. Estes episódios fazem-nos ter saudades da luta das classes! Dos tempos em que as lutas se desenrolavam à volta de questões políticas, económicas e sociais de grande importância e de relevo para a direcção de uma sociedade e para a afirmação de um poder! Dos debates em que estavam em causa o poder político, as relações entre o capital e o trabalho, a propriedade dos meios de produção e a repartição do produto e do rendimento. Dos combates em redor da organização do Estado, da defesa nacional, da paz e da guerra e da segurança colectiva. Saudades dos tempos em que se lutava por valores essenciais da política, do trabalho e do emprego, dos direitos dos trabalhadores e dos patrões, das obrigações e dos deveres de cada um e de todos! Saudades das lutas pelos serviços de saúde e de educação e pelos direitos e deveres dos idosos! Dos tempos em que a liberdade e a democracia estavam no centro das discussões e das lutas e não eram consideradas, como hoje, hábitos adquiridos e secundários ao lado da importância decisiva de símbolos, da memória e da culpa.
Público, 20.2.2021
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