AINDA NÃO SÃO AOS BANDOS, mas há já figuras sinistras que voam pelo Príncipe Real, pelas ruas da Escola Politécnica, da Alegria e do Salitre, pelos jardins da Faculdade de Ciências e pelo Jardim Botânico, até ao Parque Mayer. Já há “interessados”, com muito dinheiro, que querem “desenvolver” a área, “promover” a habitação, abrir escritórios de luxo, criar unidades hoteleiras, centros comerciais e zonas de lazer. Parece mesmo que certos edifícios do Príncipe Real foram já adquiridos. Está ali, sem dúvida, uma “janela de oportunidade”, um “desafio da modernidade” e uma “aposta na qualidade”. A Lisboa competitiva ameaça passar por ali.
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O CONJUNTO está identificado. Já foi a Quinta do Monte Olivete e já pertenceu aos Jesuítas. Já foi o Noviciado da Cotovia e o Colégio dos Nobres. Já foi a Escola Politécnica e a Faculdade de Ciências. Hoje alberga dois museus, muitas relíquias e alguns pardieiros. É a antiga Faculdade de Ciências, seus imóveis, anexos e jardins, a que se acrescenta o Jardim Botânico. Inclui alguns edifícios escolares, uns desactivados desde o incêndio de 1978, outros depois disso. Pertence à Universidade de Lisboa. São cerca de seis hectares no centro da cidade. Espaço único que qualquer capital civilizada aproveitaria e mostraria, orgulhosa, aos seus cidadãos e ao mundo.
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O INVENTÁRIO do que ali está é imenso. Com a ajuda da directora Ana Eiró e da investigadora Marta Lourenço, pode resumir-se, por defeito, no seguinte. Os Museus da Ciência e da História Natural, que incluem o museu e laboratório mineralógico e geológico, o museu, laboratório e jardim botânico e o museu e laboratório zoológico e antropológico. O Observatório Astronómico. A Biblioteca científica dos séculos XV a XIX. Os restos das instalações escolares do século XIX, nomeadamente as salas, laboratórios e anfiteatros da química, da física e da matemática. O Picadeiro Real do Colégio dos Nobres (nascido em 1766), fabuloso edifício, hoje transformado em pavilhão de desportos. Os arquivos históricos de várias instituições científicas.
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O CONTEÚDO é impressionante. São colecções notáveis de instrumentos científicos e técnicos de química, física, astronomia e matemática dos séculos XIX e XX (mais de 10.000 peças). Arquivos históricos (mais de 100.000 documentos). Bibliotecas científicas dos séculos XV a XX (25.000 livros). Mobiliário muito curioso e interessante. Colecções de antropologia (2.000 esqueletos), de mamíferos (5.000 espécies), de aves (2.600), de peixes (7.000 lotes), de anfíbios e repteis (1.000), de invertebrados (30.000 lotes) e de sementes (4.000 lotes). A que se acrescentam os herbários (250.000 espécies) dos séculos XVIII e XIX, incluindo os de Vandelli, Brotero e Welwitsch. Ou as colecções de mineralogia, petrologia, estratigrafia e paleontologia (80.000 peças). E finalmente o fantástico Jardim Botânico (1.500 espécies), com mais de 150 anos de existência, sobre o qual dou a palavra ao Senhor Félix Krull, criação de Thomas Mann, que nos diz, nos anos cinquenta, a propósito de Lisboa: “A sua primeira visita deverá ser para o Jardim Botânico, sobre as colinas do Oeste. Não tem igual na Europa inteira, graças a um clima em que a flora tropical prospera tanto como a da zona temperada. O jardim está cheio de araucárias, de bambus, de papiros, de iúcas e de todas as variedades de palmeiras. Aí verá com os seus olhos plantas que, no fundo, já não pertencem à actual vegetação do nosso planeta, mas a uma flora mais antiga como, por exemplo, os fetos arbóreos. Vá lá imediatamente e repare no feto arbóreo do período carbónico. É mais do que uma pequena história cultural. É toda a antiguidade da terra”!
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A AMEAÇA dos promotores não é a única. A outra é a da ruína e da degradação. É um verdadeiro tesouro no meio da cidade, mais ou menos ignorado, decadente, parcialmente abandonado, com equipamentos degradados e espécies mal conservadas... Os efeitos desta ameaça já se podem observar à vista desarmada. Há instalações fechadas porque perigosas. Há paredes degradadas e soalhos a cair. Há salas e edifícios encerrados por razões de segurança. Muitas colecções estão fechadas por falta de condições de preservação ou de exibição. O Jardim Botânico tem falta absoluta de jardineiros e carência de verbas para tratamentos e manutenção, não havendo sequer orçamento suficiente para pagar a rega. Degradação e abandono são as palavras que vêm ao espírito, apesar de uns bandos de alunos que visitam os locais e mau grado alguns investigadores e funcionários que se esforçam por manter aquilo vivo. A Universidade não tem recursos para manter ou desenvolver este património. O Governo diz, há muitos anos, que também não tem. Da Câmara de Lisboa, além de intenções vagas, pouco se sabe. Mas, a seu favor, nota-se a abertura de um “concurso de ideias” até ao próximo 4 de Janeiro.
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NÃO HAVERÁ, em Lisboa ou no país, inteligência suficiente para preservar e aproveitar este conjunto, utilizando-o para os fins óbvios, como sejam o estudo, a investigação e a divulgação cultural e científica, sem esquecer todas as funções que pode preencher um espaço público único? Não haverá ninguém que não se tenha ainda deixado perverter pela cultura vigente do efémero, da espuma virtual, do superficial e do divertimento? Não haverá ninguém interessado em evitar novos incêndios, inundações, delapidações ou promotores imobiliários? Não haverá um ministro capaz de perceber isto? Um Presidente da Câmara? Um banco? Uma companhia de seguros? Uma empresa? Uma fundação?
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SEIS HECTARES e um património tão rico no centro da cidade! Numa cidade onde faltam os espaços verdes; onde são poucos os espaços públicos organizados e acessíveis; onde são raros os locais de repouso e convívio; onde há poucos museus e instituições de divulgação cultural e científica! Nunca saberei exactamente o que mais leva ao desperdício e à degradação. Já pensei que fosse a pobreza. Depois, a ignorância. Agora, acrescento a demagogia dos novos-ricos.
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«Retrato da Semana» - «PÚBLICO» de 2 de Dezembro de 2007
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