segunda-feira, 23 de junho de 2008

Armas de arremesso

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TAL COMO OUTRAS ACTIVIDADES HUMANAS, a política tem as suas regras. Assim como tradições, hábitos, leis e rotinas. Quase tudo se sabe e conhece. É difícil haver surpresas. Mesmo assim, há ilusões e as pessoas, muitas pessoas, acreditam ou vivem nelas. Os políticos falam verdade e mentem indiferentemente. Realizam o prometido ou não, sem qualquer dúvida ou remorso. Defendem, sucessiva e metodicamente, o interesse geral, o partidário e o pessoal, sem nunca deixar de garantir que se trata do interesse nacional. Procuram sobretudo os votos e tentam conquistar, manter e renovar o poder, afirmando sempre que o essencial é o bem-estar da população. Acusam os adversários, ora no poder, ora na oposição, de tudo quanto fazem eles próprios, exibindo sempre a pureza original dos servidores do público. Com os impostos e o emprego na função pública, fazem quase sempre o contrário do que disseram, acusando-se mutuamente de mentira e hipocrisia. Demitem impiedosamente os adversários e até os amigos, em nome da transparência e da legitimidade democrática, sem esquecer de denunciar o despotismo dos opositores quando fazem exactamente o mesmo. Em nome da modernidade e da eficácia, favorecem as empresas, os capitalistas e as associações civis que os ajudam e prejudicam os que a tal se negam, estando sempre disponíveis para, na oposição, expor a promiscuidade dos adversários. No poder, interferem discretamente na justiça e na investigação policial, actuação que, na oposição, desvendam prontamente. No governo, condicionam e tentam manipular a informação, mas, na oposição, proclamam-se os mais inocentes defensores da liberdade de expressão e do pluralismo.
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TUDO ISTO É SABIDO. Mesmo assim, os políticos persistem no seu comportamento e o público vai acreditando. A ilusão e o interesse são as regras deste jogo aparentemente complexo. Como no amor, na economia e no futebol, o facto de haver regras e de se conhecerem os hábitos não impede que se viva na ilusão e se mantenha um comportamento dúplice. No amor, é frequente interditar ao parceiro aquilo que se permite a si próprio. E acreditam na sedução mesmo os que conhecem as suas regras. Na economia, ganhar e vencer são os únicos critérios válidos, enquanto roubar ou trair só são criticáveis se foram vistos. Com o dinheiro, a moral é quase sempre para uso alheio. No futebol, fracturar a perna de um adversário temível só é condenável se não for bem feito. São estranhos estes comportamentos. Conhecem-se as regras, percebem-se os interesses, sabe-se que é ilusão e tem-se a exacta consciência da encenação. Mesmo assim, vive-se como se estivéssemos diante de factos genuínos e situações novas. Faz pensar naqueles filmes que vimos dezenas de vezes e que guardam toda a sua capacidade de nos comover e até talvez de surpreender. Mas a política não é cinema. As emoções da arte não são comparáveis aos interesses da política.
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TERMINADA A PRESIDÊNCIA PORTUGUESA da União, atiraram-se imediatamente as armas de arremesso. Entre outras, o referendo e a remodelação. O primeiro é já usual. Nenhum dos grandes partidos acredita nele, nem no seu contributo para a democracia. Só se lembram dele quando pretendem agredir ou incomodar o adversário. Sócrates e o PS garantiram, durante anos, que se faria referendo europeu. A direcção nacional do PSD prometeu, por unanimidade, realizar um referendo. Agora que não vêem nenhuma vantagem puramente partidária, ambos negam o que garantiram. Para o que recorrem aos conhecidos argumentos defensivos. Os resultados são previsíveis. O referendo é tão democrático quanto o parlamento. Não é uma constituição, é um tratado. Este tratado é igual ao anterior. Um referendo é caro. A participação dos cidadãos é reduzida. Os outros parceiros europeus também não fazem. Não se pode pôr em causa a eficácia da União. Não os choca o facto de ser evidente que não há referendo porque não interessa directamente a um partido. Nem os incomoda saber-se que a Nomenclatura europeia combinou não o realizar e força quem tem dúvidas. Aos dois grandes partidos é-lhes totalmente alheia qualquer preocupação relativa à participação política ou à identificação dos cidadãos com os ideais europeus. Interessa-lhes, isso sim, o que pode ajudar o seu próprio partido e prejudicar o adversário.
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QUANTO À REMODELAÇÃO, é o habitual. Os partidos da oposição não querem que o governo a faça, pois seria sinal de que ainda tem energia. Para tal conseguir, dizem depressa que é necessária, na esperança de a ver recusada pelo Primeiro-ministro que não quer remodelar sob pressão. Caso se faça, os partidos da oposição já sabem exactamente o que dizer: “é insuficiente, foi só cosmética, o essencial não foi feito”. É sempre assim. Sempre foi assim. E assim será. Os socialistas fizeram-no sempre. Os social-democratas também. Tal como os outros. Sabemos isso. Eles sabem isso. Mesmo assim, o jogo de espelhos continua. A ilusão vigora. Muitos acreditam nela. O mais provável é que não haja remodelação. Ou simplesmente uma substituição casual. Nenhum ministro faz sombra ao Primeiro. Nenhum tem peso suficiente, nem sequer para o disparate, para inquietar o Primeiro. Todas as políticas são suas. Como exclusivamente suas são as inaugurações, as distribuições, os aumentos e os subsídios. Nada disto impede que a remodelação ocupe primeiras páginas e telejornais durante uns tempos. A ilusão funciona assim. É este o jogo de espelhos. É contra os espelhos que se atiram pedradas.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Dezembro de 2007

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