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LI OS COMENTÁRIOS que vários leitores quiseram fazer ao meu texto sobre as regras que afectam hoje a restauração e outros tipos de comércio. A maior parte era favorável aos pontos de vista que exprimi. Ou pelo menos partilhava as minhas preocupações e até a minha indignação. Devo dizer, sem vaidade, que me senti reconfortado.
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MAS A LEITURA de alguns comentários muito críticos obriga-me a responder. Segundo estes, parece que defendo nostalgicamente o passado sem higiene, a aldrabice, a falta de cuidado e o desmazelo. Segundo alguns, eu estaria disposto, a bem da tradição, a conviver com a porcaria e os comportamentos incivilizados que trazem a doença e a insegurança. Ainda de acordo com essas opiniões, eu admitiria que as autoridades nada têm a fazer pela segurança colectiva e que cada um poderia fazer o que muito bem entenda, mesmo com perigo para os outros.
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A ESSES, quero dizer que estão errados. Não me revejo na nostalgia dos cocós de cão na rua, do lixo no chão, das beatas no soalho dos cafés, na comida estragada, no contrabando de produtos congelados, nas chávenas mal lavadas e nas nódoas nas toalhas. Abomino o vinho a martelo, o excesso de alho para esconder carne antiga, o leite azedo, as sopas fermentadas, os iogurtes fora de prazo, o pão seco em cima da mesa e os ovos estragados. Raramente me deixo convencer por aquilo a que se chama vulgarmente o “vinho do produtor” ou os “produtos da terra”, que muitas vezes são eufemismos para produções pouco cuidadas, produtos mal confeccionados e géneros mal cultivados. Já provei enchidos “tradicionais” que são um verdadeiro nojo. Já bebi vinho “do produtor” capaz de intoxicar qualquer cidadão robusto. Já saí de restaurantes e cafés que não respeitavam os mínimos critérios de decência.
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EM RESUMO: olho com esperança para os progressos que se vêm fazendo na restauração e que anunciam, gradualmente, limpeza e cuidado. Assim como para os cidadãos que, cada vez mais, prestam atenção ao que se lhes serve e protestam quando necessário. Assim como vejo com prazer a agricultura biológica a crescer, com os seus produtos que fogem da velha porcaria, mas que evitam também a nova porcaria que trazem muitas das tecnologias agro-industriais e que nos são apresentadas como sinal de modernidade e segurança. Como é sabido, muitos dos produtos “seguros”, com toda a espécie de conservantes e outros acrescentos tolerados pelas regras modernas, são autênticos venenos, sendo cada vez em maior número as pessoas que sofrem de alergias e outras doenças causadas por esses produtos “seguros”.
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ACONTECE QUE A LEGISLAÇÃO e as regras, tanto europeias como portuguesas, pecam por excesso e fundamentalismo. Sofrem do síndrome de perfeição, pois pretendem organizar a virtude à força, com métodos intrusivos e atentatórios das liberdades. São frequentemente irracionais e representam a defesa de interesses escondidos de certo tipo de embalagens, de determinadas indústrias e de alguns produtos. Assim como de certas profissões novas, como as dos engenheiros de nutrição e segurança alimentar. Muitos ingredientes do “fast food” e dos alimentos enlatados ou plastificados são claramente mais perigosos do que o pão deixado secar de um dia para o outro ou do que as flores naturais colocadas numa jarra em cima do balcão de um café. Mas não deixa de ser estranho que, em Portugal, as normas são mais duras do que noutros países. As autoridades mais maximalistas. Os especialistas mais fundamentalistas. E as polícias e os fiscais mais absurdamente violentos e agressivos.
VIVI LONGOS ANOS NA SUÍÇA, país obcecado com a limpeza e a higiene. Em frente a minha casa, duas vezes por semana, um mercado de produtos frescos abastecia a população do bairro. Vinham agricultores com os seus produtos, traziam queijos, manteiga, fruta, legumes e mesmo alimentos confeccionados, como doces, compotas, quiches, empadas e bolos. Vi inspectores sanitários que passavam pelas bancas e iam examinando os produtos, davam conselhos e, raramente, obrigavam a substituir produtos. Nunca vi fiscais armados nem agentes mascarados. Nunca ouvi falar de proibições definitivas ou encerramento de bancas. Nunca um agricultor foi proibido de vender os seus produtos ou obrigado a medir a temperatura dos géneros e das embalagens. Voltei muitas vezes à Suíça, assim como vou frequentemente a outros países, designadamente França e Inglaterra. A realidade dos mercados de alimentos e das feiras urbanas onde os agricultores trazem os seus produtos é semelhante àquela que conheci de perto na Suíça.
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O QUE VEJO EM FRANÇA ou em Inglaterra, hoje, dever-nos-ia fazer reflectir, pois esses países também pertencem à UE, também devem cumprir as directivas e os regulamentos comunitários. Acontece que o fazem de modo diferente daqueles que foram contemplados pela Administração portuguesa, sejam os governantes e o legislador, sejam os serviços sanitários e de segurança alimentar. Ou têm uma interpretação diferente das leis. Ou entendem que a sua aplicação se deve fazer de modo gradual e inteligente. Ou os agentes da segurança alimentar não estão apostados em defender certos interesses. Ou não estão apostados em criar emprego para os novos especialistas da saúde e da perfeição. Ou a cultura cívica e política das autoridades é muito diferente da nossa. Ou não pensam nem esperam impor a virtude a que preço seja. Ou estão mais habituados a respeitar direitos e tradições. Ou evitam a intrusão e a agressividade como métodos de educação do povo.
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DE VEZ EM QUANDO, agrada-me ver, na televisão, programas de cozinha ingleses, italianos ou americanos. São em geral engraçados, aprende-se muito, os cozinheiros são, além de bons profissionais, pessoas cultas e divertidas. Vejo os instrumentos com que eles trabalham. Além de máquinas de toda a espécie, como as que já há em Portugal, reparo que fazem praticamente tudo em cima de pranchas de madeira, usam a mesma faca para cortar quaisquer géneros e não dispensam uma ou outra colher de madeira. Ostentam flores naturais nas suas cozinhas. E nem sempre abrem as torneiras com os cotovelos ou os pés. Estas práticas e estes instrumentos são simplesmente proibidos pelas leis e pelas autoridades portuguesas. Seremos mais rigorosos do que eles? Teremos mais cuidado?
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O QUE É CONFRANGEDOR, no que se passa actualmente em Portugal, a este propósito, é a falta de sensatez e de sentido do equilíbrio. Muitas das regras de segurança alimentar podem ser justas, outras são desadequadas. Quem se propõe aplicá-las não procura melhorar a situação sanitária, antes pretende mostrar folhas de serviço. Há, nas práticas antigas e tradicionais, muito que se pode fazer, e até ir melhorando, sem que seja necessário, de repente, eliminar procedimentos artesanais, na convicção de que são perigosos. Pisar as uvas com os pés, o que ainda se faz em numerosas quintas, poderia ser imediatamente condenado pelas autoridades. Mas não o deve ser, mais vale tentar introduzir gradualmente algumas normas de higiene nas explorações. O que já se faz. As autoridades portuguesas não querem convencer, nem melhorar ou reformar: querem mostrar quem manda!
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A ATITUDE POLÍTICA e, se quisermos, “filosófica”, das autoridades está errada. Partem do princípio que todos são ignorantes, todos pretendem vigarizar o próximo e todos preferem a porcaria. Aceitam como postulado que os consumidores, os utentes e os clientes são ignorantes, ingénuos, não exercitam os seus poderes de crítica, de apreciação e de escolha. As autoridades não confiam nos cidadãos, nem esperam que melhorem com o exemplo e a informação. Finalmente, as autoridades sabem o que é bom para os cidadãos, elas conhecem os perigos, elas julgam ter a missão de proteger as nossas vidas, orientar os nossos comportamentos e dirigir as nossas opções de vida. É contra esta visão do mundo que me elevo e indigno. É este modo de vida que, na medida do possível, não aceitarei.
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«Sorumbático» - 6 de Dezembro de 2007
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