A defesa da liberdade e da
democracia depende em primeiro lugar dos povos. Se estes não quiserem a democracia,
será difícil criá-la. Dito isto, que não chega, há mais. A democracia é uma
construção difícil e longa. É uma convenção complexa. É uma organização frágil,
condicionada pela circunstância e pelos costumes. Pelas instituições e pelos
políticos…
Tendo durado quase quarenta anos,
o edifício da democracia portuguesa está construído sobre quatro pilares. Frágeis
e actualmente sob ameaça.
O acordo constitucional. Serviu para fundar o Estado de direito
democrático. Apesar das reticências, até o CDS aderiu. E o PCP também, mas forçado.
Depois, foi-se fazendo um compromisso de revisão, entre o PSD, o PS e o CDS.
Todos com vontade de rever, desde que lhes convenha o momento. Curiosamente, o
mais rígido defensor da Constituição é o PCP, único partido que explicitamente
considera a democracia parlamentar como um regime transitório… Este consenso
está hoje em crise séria, talvez sem remissão. A ruptura dos últimos anos entre
o PS e o PSD parece irreversível. Quem quer rever a Constituição não tem força
para isso. Não parece haver uma maioria de defesa nem de revisão da Constituição.
O Estado social. Com uns pormenores datando dos anos 1960, o actual
Estado Social é essencialmente obra da democracia, que o criou e dele se
alimentou. O Estado social manteve o consenso constitucional. Todos, no
Parlamento e no governo, ajudaram. Os partidos de direita e os mais liberais,
se é que estes existem, contribuíram. Os de esquerda também. Ninguém quis
perder uma oportunidade para aumentar prestações, subsídios, pensões e abonos.
A democracia agradou à população enquanto o Estado social parecia rico e generoso.
Este, agora, sem meios nem demografia, está a desfazer-se aos poucos. Nas
últimas eleições, percebeu-se, a este propósito, a crispação entre partidos.
Sem crescimento económico, não há Estado Social. Sem um compromisso entre
partidos, muito menos.
A União Europeia. Depois de África, a Europa foi a casa de refúgio.
A direita e extrema-esquerda começaram por ser contra. Socialistas e alguns
“liberais” foram pioneiros. Lentamente, quase todos aderiram e gostaram. Até os
comunistas, ainda hoje nada europeístas, aproveitaram o que puderam para os
seus autarcas e para os investimentos públicos. Este pilar foi sobretudo válido
como garante e factor de coesão nacional, enquadramento internacional e coesão
social. Foi a mais importante fonte de recursos para investimento. Nos próximos
anos, depois do falhanço da coesão europeia, o papel da UE, como factor de
democracia em Portugal, será difícil. Com a adesão da União e do BCE aos
programas de assistência (vulgo Troika), muitos portugueses deixaram de olhar para
esta Europa com simpatia e interesse. É o caso do Bloco e de parte dos
socialistas, que se juntam ao PCP. A crise financeira e política europeia, a
crise dos refugiados, as contradições crescentes entre Estados, a irresistível
supremacia alemã, o apagamento francês, o “separatismo” britânico e os
tormentos gregos mostram uma União perturbada, incapaz de segurar as forças
centrífugas.
A aliança entre o Estado e os negócios. Uns chamam-lhe
promiscuidade. Outros dizem que é corrupção. Há quem pense que são inimigos
perigosos da democracia. A longo prazo, é verdade: são a sua destruição. Mas
infelizmente, a curto prazo, podem ser, como têm sido em Portugal, factores de
sustento e funcionamento da democracia. Aquela aliança criou investimentos e
oportunidades, fomentou o emprego, distribuiu rendimentos, alimentou partidos e
empresas, fez obras públicas, projectou empresas para o estrangeiro e foi
viveiro de negócios. Velhos ricos, partidos políticos, grandes grupos privados,
empresas públicas, companhias multinacionais, bancos, empresas de construção e
de serviços públicos, novos-ricos de colheita recente e grupos financeiros de
origem incerta ganharam e tiveram o seu ciclo de riqueza, fama e viço. Os
protagonistas foram os suspeitos habituais ou não. De um lado, os chamados
partidos de governo, o Estado central, as autarquias e as empresas públicas. Do
outro, alguns grupos económicos nacionais, uma parte da banca, algumas
multinacionais e um rosário de empresas especializadas nas encomendas do Estado
ou nos seus concursos de obras e de fornecimentos. A matéria era vasta: estradas,
energia, água, construção, cimentos, transportes, banca, telecomunicações,
equipamento militar… Os elementos de ligação eram os concursos públicos, as
adjudicações directas, as encomendas, as Parcerias Público Privadas, as
privatizações… Poucos criaram riqueza. Muitos compraram o que havia. Alguns
foram mesmo capazes de comprar para destruir. Esta aliança parece estar em fase
de ruptura. Depois de terem deixado desenvolver-se os negócios e a dívida, a Troika
e as entidades internacionais necessitam agora de ter garantias de honestidade
nas relações entre o Estado e os negócios. Além de que não há dinheiro, nem
crédito fácil. E tudo leva a crer que os dinheiros europeus não serão mais portas
abertas ou mãos rotas…
Com estes quatro pilares
ameaçados, como poderá segurar-se a democracia portuguesa? Era bom que as
soluções de governo que se preparam estivessem à altura destas ameaças.
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DN, 11 de Outubro de 2015
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