domingo, 12 de março de 2017

Sem emenda - Utilidade pública

Diz-se “public utilities”. Em português, não quer dizer a mesma coisa, mas diz tudo. Serviços e infra-estruturas de serviços e facilidades para toda a gente. Inicialmente organizados pelo Estado, ulteriormente geridos pelo mesmo ou por empresas privadas. Cada país tem a sua solução. Mas é sempre a mesma coisa: serviços públicos.

Muita coisa pode entrar nesta categoria: água, luz, electricidade, gás, telefone, correios, banda larga, transportes, esgotos, resíduos, faróis e outros. Há quem inclua certos serviços públicos especiais, como a saúde e a educação. Podem ser de gestão pública ou privada, local ou nacional, em monopólio ou em mercado aberto. Fazem parte da concepção moderna de país civilizado.

Estes serviços, em Portugal, começaram por ser públicos. Uns mantiveram-se como tal, outros foram privatizados. Nada muito diferente de outros países. A eficácia, a utilidade e a honestidade destes serviços variam muito. Em tempos, a imprensa realizava uma espécie de ranking em que classificava, segundo a opinião pública, cada serviço. Alguns, aborrecidos com uma má classificação, esforçavam-se por melhorar, o que às vezes conseguiam e nós ficávamos a ganhar.

Entretanto, com a privatização a ajudar, mais a crise financeira e a compra e venda de empresas, sem falar na concorrência e na voracidade de tanta gente, todas estas empresas se viraram para a agressividade comercial. São dezenas de e-mails e telefonemas não desejados que se recebem por mês em casa de cada um. Novos serviços, mais pacotes, descontos aparentes, novos dispositivos, vantagens incríveis e brindes inacreditáveis! No fim do dia, é sempre para vender mais mercadoria inútil, fidelizar aberta ou furtivamente, instalar aplicações, adquirir uma nova “box”, alargar o serviço para áreas inúteis e subtrair o cliente à empresa rival!

Uma moda recente é a dos serviços de distribuição separados da produção e da assistência, o que exige escolhas feitas pelos clientes, impostas por lei (dizem eles…), que logo anunciam descontos e vantagens, mas que não têm uns nem outras. Rapazes e raparigas com bilhetes de identidade vistosamente exibidos batem à porta, declaram que, “para nosso bem”, vêm verificar as instalações e anunciam benefícios, mas que têm sempre mercadoria para vender, regras absurdas e fidelizações ocultas! Para não falar das “letras pequeninas” cheias de ratoeiras, nem das regras incompreensíveis tanto para velhos analfabetos como para jovens doutorados!

Tentar esclarecer com os serviços de assistência é inútil. Podemos esperar até meia hora a ouvir música idiota. Quando a chamada é atendida, num Call Center da Covilhã ou de Cabo Verde, somos informados que temos de fidelizar, que outro serviço tratará de nós, que é necessário comprar mais um pacote ou mudar um tarifário! É inútil queixarmo-nos. Ou porque não se sabe a quem. Ou porque os “provedores” estão ao serviço da empresa, não de nós. Ou porque demoram. A análise das facturas é um pesadelo. Informação inútil e excessiva, para que ninguém compreenda. Para desmoralizar quem quer compreender. Ou obrigar toda a gente a desistir. Quando há dupla facturação, ou contagem errada, é preciso primeiro pagar, depois litigar, pagar inspecções (mesmo quando a culpa é deles…) e esperar. Meses… Anos… Sorte nossa é quando recebemos a visita de um técnico ou assistente: a gentileza e a perícia destroem o mito das máquinas e das competências digitais.

Algumas práticas destas empresas, públicas ou privadas, são simplesmente ilegais. Como tanta gente lhes deve emprego ou investimento, ninguém as castiga. Nem sequer se faz legislação que proíba o assédio comercial.

Perceber o que “eles” fazem exige tempo, sabedoria, paciência, letras, advogados e recursos. Quer isto dizer, esquecer. Por outras palavras, dar milhões a ganhar às empresas. Privados ou públicos, estes serviços teriam de responder, respeitar e servir. Não o fazem. E gabam-se da sua agressividade. Uma coisa é certa: ninguém os desafia ou vigia!


DN, 12 de Março de 2017

2 comentários:

Anónimo disse...

É pena que “os amigos da sociedade civil” que AB tanto defende não tenham previsto que as privatizações iriam “dar milhões a ganhar às empresas” e permitir a “agressividade” do ”assédio comercial”, prejudicando com isso os serviços públicos. Não vale aqui misturar empresas públicas e privadas, uma vez que os serviços públicos essenciais em Portugal estão todos privatizados! Infelizmente, digo eu!

Já agora, “utilidade pública” é um conceito jurídico…

Sílvia

bea disse...

Desgosta-me a agressividade comercial. Desgosta-me a falta de princípios que a acompanha. Desgosta-me que os jovens entrem por essa via de vender um produto a qualquer preço. Mas também me desgostam as pessoas que por uma ninharia mudam desta para aquela companhia, só porque lucram um nada; saltitam de um a outro lado numa mesquinhice que é miséria moral.Talvez em Portugal como no resto do mundo. Mas é aqui que vivo.