É uma velha questão política,
filosófica e até estética. A paz é mais importante do que a guerra, tal como a
unidade e o diálogo são mais necessários do que a luta e o combate. Mas a luta
e a guerra merecem mais admiração do que a paz. Há frases e momentos na nossa
história cultural bem reveladores desta dualidade. Por exemplo, o dito de
Brecht segundo o qual “é violento o rio que tudo arrasta consigo, mas ninguém se
lembra de dizer que são violentas as margens que o apertam”. É uma espécie de
emblema para a luta de classes e o combate permanente.
Aliás, são vários os hinos
nacionais que, em vez de festejar a paz, o trabalho e a comunidade, glorificam
o heroísmo bélico. O nosso louva a guerra e ordena cruamente que, “contra os canhões”,
se deve “marchar, marchar”… É o resultado da inspiração francesa, sempre a
mesma, da horrenda Marselhesa que promete que um dia “o sangue impuro” dos
inimigos estrangeiros “encharque o nosso solo”!
De Mário Soares, nestes dias de
homenagem, festejou-se a luta, raramente a paz. O combate, não o diálogo. É
pena. Na verdade, o seu contributo para a paz foi o decisivo e o mais durável.
Os que alimentam esta obsessão
pela luta garantem que com ela virá a libertação, a salvação, a dignidade e a liberdade…
Mas esquecem evidentemente que a luta também dá guerra, violência, desordem,
motim e morte de inocentes…
Vive-se em Portugal, há cerca de
um ano, um agradável clima de paz social. Greves e perturbações diminuíram
drasticamente com a tomada de posse deste governo. Foram desmobilizadas as
brigadas de contestação espontânea e os grupos de arruaceiros que fizeram a
vida negra a Passos Coelho e a Cavaco Silva. Eram poucos, mas eficientes. A
cumplicidade das televisões, que necessitavam de material, era trunfo
inestimável. O silêncio do PS, que esperava dividendos, ajudou à manutenção do
clima de crispação.
Verdade seja dita que a situação
económica e social, assim como a falta de perícia do governo, eram de molde a
criar descontentamento. Mas já tínhamos vivido situações igualmente difíceis
sem movimentos contestatários similares.
Passado pouco mais de um ano
depois das eleições, a paz social é a regra. Os cuidados médicos ainda não
melhoraram, mas a contestação é agora cordata. O funcionamento das escolas não
é muito diferente, nem mais favorável ou eficaz, mas a controvérsia é agora
afável. Os transportes públicos não conheceram uma evolução positiva, mas a
perturbação no sector é inexistente. Em muitas áreas de altercação tradicional,
como no universo dos precários, na Função Pública, nos portos ou nas
universidades, vive-se pacificamente. Ainda bem. É melhor para o trabalho e a
produção, para a qualidade de vida e a produtividade.
O Bloco tem grande influência nos
meios de comunicação, na imprensa e nas televisões. E influencia os
socialistas, sobretudo por razões culturais. Mas também por uma espécie de
ciúme: os socialistas gostariam de parecer tão inteligentes quanto os
bloquistas. Já o PCP tem indiscutível influência nos sindicatos e nas
instituições públicas como os serviços de saúde e de educação, os funcionários,
as magistraturas ou as polícias. Em conjunto com o PS e o governo, Bloco e PCP
têm contribuído para criar um clima excepcional de paz social. O que é bom. Com
ou sem crise, a paz social é sempre melhor do que a luta de classes, o conflito
regional ou a guerra de religiões.
É possível que a política actual
saia muito cara. Que os problemas aumentem. Que não haja condições para o
investimento futuro. Que os défices piorem. Que as taxas de juro aumentem. Tudo
isso é possível. Mas é melhor chegar lá em paz do que em guerra social, em
piores condições para resolver os problemas. O “quanto pior, melhor” nunca teve
bons efeitos. Nunca resultou. A não ser para pior.
DN, 15 de Janeiro de
2017
3 comentários:
Não, não! Isto não é o que parece!
AB sabe que a acalmia é típica dos regimes autoritários. Com alguma mestria, parece fazer um desenho aplicando a técnica da colagem.
Com ironia, parece desaprovar – e com razão - a paz conseguida através da imobilidade dos sindicatos e do sossego e incapacidade da oposição.
Na verdade, AB sabe que, em democracia, o movimento e a agitação das sociedades só podem trazer benefícios para todos.
A luta continua!
Na verdade e ao invés de quem seja, julgo que os portugueses agradecem estas tréguas. Eu não lhe chamaria paz, mas acalmia. O país beirava o ataque de nervos. E não creio que tal estado seja salutar. Não sei onde chegaremos, aquilo que mais teremos de engolir ou pagar, mas sei que tanta crispação e prejuízo cheio de vingancinhas perversas e desastres económicos colossais destroçavam e traziam desalento diário, eram mau exemplo. Não havia esperança que se aguentasse. Também não considero que esta acalmia se assemelhe à triste paz salazarenta.
Os leitores do DN, intrigados com o pacifismo manifestado nesta crónica, parecem perguntar: What happened to António Barreto? Que lhe aconteceu? Mudou assim tanto?
Encontrei uma resposta para tão súbito espanto:
Não mudou de caráter ou personalidade. Apenas de circunstância. Barreto faz o que lhe convém. Continua rápido e superficial como sempre. A mesma superficialidade com que lê história, dos egípcios a Alexandre e de Trento à Vendée. Sem falhar os Medinas Carreiras, os Jesuítas do Paraguai, nem os Habsburgos. A mesma velocidade ligeira com que viaja. O que é preciso é ter estado. Ter lido. Ter passado. Ter visto. Ser visto.
Barreto não mudou. Foi sempre um adjectivo.
(Adaptado da sua crónica “What happened to António Guterres?”, Público, dezembro/1999).
Enviar um comentário