domingo, 15 de janeiro de 2017

Sem emenda A luta e a paz

É uma velha questão política, filosófica e até estética. A paz é mais importante do que a guerra, tal como a unidade e o diálogo são mais necessários do que a luta e o combate. Mas a luta e a guerra merecem mais admiração do que a paz. Há frases e momentos na nossa história cultural bem reveladores desta dualidade. Por exemplo, o dito de Brecht segundo o qual “é violento o rio que tudo arrasta consigo, mas ninguém se lembra de dizer que são violentas as margens que o apertam”. É uma espécie de emblema para a luta de classes e o combate permanente.
Aliás, são vários os hinos nacionais que, em vez de festejar a paz, o trabalho e a comunidade, glorificam o heroísmo bélico. O nosso louva a guerra e ordena cruamente que, “contra os canhões”, se deve “marchar, marchar”… É o resultado da inspiração francesa, sempre a mesma, da horrenda Marselhesa que promete que um dia “o sangue impuro” dos inimigos estrangeiros “encharque o nosso solo”!
De Mário Soares, nestes dias de homenagem, festejou-se a luta, raramente a paz. O combate, não o diálogo. É pena. Na verdade, o seu contributo para a paz foi o decisivo e o mais durável.
Os que alimentam esta obsessão pela luta garantem que com ela virá a libertação, a salvação, a dignidade e a liberdade… Mas esquecem evidentemente que a luta também dá guerra, violência, desordem, motim e morte de inocentes…

Vive-se em Portugal, há cerca de um ano, um agradável clima de paz social. Greves e perturbações diminuíram drasticamente com a tomada de posse deste governo. Foram desmobilizadas as brigadas de contestação espontânea e os grupos de arruaceiros que fizeram a vida negra a Passos Coelho e a Cavaco Silva. Eram poucos, mas eficientes. A cumplicidade das televisões, que necessitavam de material, era trunfo inestimável. O silêncio do PS, que esperava dividendos, ajudou à manutenção do clima de crispação.
Verdade seja dita que a situação económica e social, assim como a falta de perícia do governo, eram de molde a criar descontentamento. Mas já tínhamos vivido situações igualmente difíceis sem movimentos contestatários similares.
Passado pouco mais de um ano depois das eleições, a paz social é a regra. Os cuidados médicos ainda não melhoraram, mas a contestação é agora cordata. O funcionamento das escolas não é muito diferente, nem mais favorável ou eficaz, mas a controvérsia é agora afável. Os transportes públicos não conheceram uma evolução positiva, mas a perturbação no sector é inexistente. Em muitas áreas de altercação tradicional, como no universo dos precários, na Função Pública, nos portos ou nas universidades, vive-se pacificamente. Ainda bem. É melhor para o trabalho e a produção, para a qualidade de vida e a produtividade.

O Bloco tem grande influência nos meios de comunicação, na imprensa e nas televisões. E influencia os socialistas, sobretudo por razões culturais. Mas também por uma espécie de ciúme: os socialistas gostariam de parecer tão inteligentes quanto os bloquistas. Já o PCP tem indiscutível influência nos sindicatos e nas instituições públicas como os serviços de saúde e de educação, os funcionários, as magistraturas ou as polícias. Em conjunto com o PS e o governo, Bloco e PCP têm contribuído para criar um clima excepcional de paz social. O que é bom. Com ou sem crise, a paz social é sempre melhor do que a luta de classes, o conflito regional ou a guerra de religiões.
É possível que a política actual saia muito cara. Que os problemas aumentem. Que não haja condições para o investimento futuro. Que os défices piorem. Que as taxas de juro aumentem. Tudo isso é possível. Mas é melhor chegar lá em paz do que em guerra social, em piores condições para resolver os problemas. O “quanto pior, melhor” nunca teve bons efeitos. Nunca resultou. A não ser para pior.
DN, 15 de Janeiro de 2017


3 comentários:

Anónimo disse...

Não, não! Isto não é o que parece!
AB sabe que a acalmia é típica dos regimes autoritários. Com alguma mestria, parece fazer um desenho aplicando a técnica da colagem.
Com ironia, parece desaprovar – e com razão - a paz conseguida através da imobilidade dos sindicatos e do sossego e incapacidade da oposição.
Na verdade, AB sabe que, em democracia, o movimento e a agitação das sociedades só podem trazer benefícios para todos.
A luta continua!

bea disse...

Na verdade e ao invés de quem seja, julgo que os portugueses agradecem estas tréguas. Eu não lhe chamaria paz, mas acalmia. O país beirava o ataque de nervos. E não creio que tal estado seja salutar. Não sei onde chegaremos, aquilo que mais teremos de engolir ou pagar, mas sei que tanta crispação e prejuízo cheio de vingancinhas perversas e desastres económicos colossais destroçavam e traziam desalento diário, eram mau exemplo. Não havia esperança que se aguentasse. Também não considero que esta acalmia se assemelhe à triste paz salazarenta.

Anónimo disse...

Os leitores do DN, intrigados com o pacifismo manifestado nesta crónica, parecem perguntar: What happened to António Barreto? Que lhe aconteceu? Mudou assim tanto?

Encontrei uma resposta para tão súbito espanto:
Não mudou de caráter ou personalidade. Apenas de circunstância. Barreto faz o que lhe convém. Continua rápido e superficial como sempre. A mesma superficialidade com que lê história, dos egípcios a Alexandre e de Trento à Vendée. Sem falhar os Medinas Carreiras, os Jesuítas do Paraguai, nem os Habsburgos. A mesma velocidade ligeira com que viaja. O que é preciso é ter estado. Ter lido. Ter passado. Ter visto. Ser visto.
Barreto não mudou. Foi sempre um adjectivo.
(Adaptado da sua crónica “What happened to António Guterres?”, Público, dezembro/1999).