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TODOS OS ANOS, por esta altura, depois dos Jacarandás, antes do Verão: a campanha do Banco Alimentar está na rua. Ou antes, nos supermercados e centros comerciais. Umas dezenas de milhares de pessoas, todas voluntárias, preparam-se para recolher toneladas de alimentos que serão depois distribuídos por centenas de organizações de solidariedade. Estas, por sua vez, entregarão os alimentos a centenas de milhares de pessoas. Os voluntários são, em grande parte, jovens, que trazem um ar de festa à operação que, pelas causas, poderia ser circunspecta. Mas também há adultos e mais idosos. São, em maioria, católicos. Mas também há ateus, agnósticos e crentes de outros deuses. Não há a menor influência política ou partidária. A classe média parece ser predominante, mas podem ver-se, tanto nos supermercados como na enorme retaguarda de armazéns, gestores, universitários, trabalhadores, donas de casa, ex-delinquentes, gente obrigada a serviço à comunidade, desempregados e até pobres tão necessitados quanto as pessoas que receberão aqueles alimentos. Os voluntários são a absoluta maioria deste pequeno exército, primorosamente organizado e eficiente.
Toda a gente fica impressionada com a quantidade de alimentos recolhidos nestas campanhas, mais de 3 mil toneladas. Verdade é que tudo isto é pouco mais de 10 por cento do que o Banco distribui por ano! Muito mais tem de ser obtido por outras vias, junto dos industriais, das organizações de produtores, dos comerciantes e dos distribuidores: perto de 20 mil toneladas por ano. Estas quantidades brutais de comida têm de chegar todos os dias, ser arrumadas, distribuídas e entregues a mais de 250 mil pessoas. Líquidos e sólidos, secos e molhados, frescos ou enlatados, com ou sem prazo de validade. Todos os dias! Por voluntários, essencialmente. Couves frescas, maçãs e iogurtes que chegam de manhã cedo, depois de dezenas de quilómetros de viagem, serão distribuídos, 24 horas depois, nas ruas das cidades, aos sem abrigo, ou nas instituições de idosos, de mendigos, de desempregados e de crianças sem família. Todos os dias! Por voluntários. Surgem agora os Bancos não alimentares. Tudo lá vai parar: sempre os excedentes gerados por esta estranha sociedade. Computadores, móveis, latas de tinta, detergentes, roupa, sapatos, colchões, livros, canetas e brinquedos, toneladas de brinquedos! Com excepção dos computadores, não se trata de objectos em segunda mão: tudo novo e ainda embrulhado de origem. O destino é o mesmo: a separação, o arrumo, a classificação e a distribuição.
São já quase vinte os Bancos espalhados pelo país. O mais antigo, de Lisboa, ajuda a organizar os outros, apoia na gestão e na organização. Se estes bancos não existissem, ou quando não existirem, é sinal de que não são necessários. Feliz dia! Para já, são indispensáveis. Recebem a caridade e a solidariedade. Recolhem as sobras desta sociedade perdida em consumo, em produção exagerada e em promoções tolas. Aproveitam os desperdícios das políticas agrícolas e alimentares da Europa. Os excedentes da produção alimentar, retirados do mercado e subsidiados pela União Europeia, constituem uma parte importante dos fornecimentos. São assim reciclados, em vez de serem destruídos. Em certos anos. Mas, noutros, quando os ministérios se esquecem de tratar da papelada, não. O que nunca deveria acontecer.
Globalmente, o Estado não prejudica. Mas também não ajuda muito. Poderia, pelo menos, remover obstáculos. Há inúmeros procedimentos fiscais e sanitários que deveriam ser revistos e adaptados a este caso particular. Há serviços, como consultas médicas, que deveriam ser considerados na colecta fiscal, como o dinheiro ou as mercadorias, mas actualmente não são. Há linhas de apoio, como refeições preparadas, que não podem ser desenvolvidas, porque uma legislação aberrante penaliza quem dá ou ameaça quem cozinha.
O Estado moderno consagrou os direitos sociais e o Estado providência universal. Há mérito nisso. O sistema retira um pouco da humilhação ou da indignidade do pedido de esmola e da mendicidade. Mas esse mesmo Estado é burocrático e desumanizado. Não consegue acudir em situações de emergência. Não é rápido na resposta. Não mobiliza pessoas solidárias e decentes. Não traz uma palavra de reconforto a acompanhar a sopa. Com estas organizações, é o contrário. A proximidade faz a diferença. A humanidade é imediata. A flexibilidade é total. Muitas delas têm anos de experiência e a sua isenção é à prova de bala. Algumas, como este Banco, dariam lições de eficiência e organização a repartições públicas e mesmo a empresas privadas. Por isso os recursos oficiais deveriam ser em grande parte orientados para estas organizações. Muito do dinheiro canalizado para instituições e repartições públicas, a ser repartido por processos morosos e complicados, deveria simplesmente ser entregue às organizações de voluntários que, nos hospitais, nas ruas e a domicílio, fazem o que o Estado dificilmente pode fazer. Aliás, sabe-se, uma parte do dinheiro oficial, distribuído directamente pelo Estado, não chega a quem deveria.
É verdade que os números são impressionantes. Os milhares de toneladas de alimentos. Os milhões de objectos. A rapidez da distribuição. A prontidão quotidiana. As centenas de milhares de beneficiados. As centenas de instituições. A organização e a eficiência. Mas o que realmente impressiona é o número de voluntários. E o espírito que os anima. Religioso ou não. Em missão ou em festa. É fácil estar umas horas num supermercado a receber dádivas. Mas é preciso ir. É divertido passar uma noite a separar latas e embrulhar pacotes. Mas é preciso fazê-lo. Mais ainda, passar um ano, todos os dias, a fazer e distribuir embrulhos! Um ano, quase todos os dias, a entregar alimentos a doentes, velhos, pobres e sem abrigo! Os homens são capazes de tudo. Até de fazer o bem.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 31 de Maio de 2009
TODOS OS ANOS, por esta altura, depois dos Jacarandás, antes do Verão: a campanha do Banco Alimentar está na rua. Ou antes, nos supermercados e centros comerciais. Umas dezenas de milhares de pessoas, todas voluntárias, preparam-se para recolher toneladas de alimentos que serão depois distribuídos por centenas de organizações de solidariedade. Estas, por sua vez, entregarão os alimentos a centenas de milhares de pessoas. Os voluntários são, em grande parte, jovens, que trazem um ar de festa à operação que, pelas causas, poderia ser circunspecta. Mas também há adultos e mais idosos. São, em maioria, católicos. Mas também há ateus, agnósticos e crentes de outros deuses. Não há a menor influência política ou partidária. A classe média parece ser predominante, mas podem ver-se, tanto nos supermercados como na enorme retaguarda de armazéns, gestores, universitários, trabalhadores, donas de casa, ex-delinquentes, gente obrigada a serviço à comunidade, desempregados e até pobres tão necessitados quanto as pessoas que receberão aqueles alimentos. Os voluntários são a absoluta maioria deste pequeno exército, primorosamente organizado e eficiente.
Toda a gente fica impressionada com a quantidade de alimentos recolhidos nestas campanhas, mais de 3 mil toneladas. Verdade é que tudo isto é pouco mais de 10 por cento do que o Banco distribui por ano! Muito mais tem de ser obtido por outras vias, junto dos industriais, das organizações de produtores, dos comerciantes e dos distribuidores: perto de 20 mil toneladas por ano. Estas quantidades brutais de comida têm de chegar todos os dias, ser arrumadas, distribuídas e entregues a mais de 250 mil pessoas. Líquidos e sólidos, secos e molhados, frescos ou enlatados, com ou sem prazo de validade. Todos os dias! Por voluntários, essencialmente. Couves frescas, maçãs e iogurtes que chegam de manhã cedo, depois de dezenas de quilómetros de viagem, serão distribuídos, 24 horas depois, nas ruas das cidades, aos sem abrigo, ou nas instituições de idosos, de mendigos, de desempregados e de crianças sem família. Todos os dias! Por voluntários. Surgem agora os Bancos não alimentares. Tudo lá vai parar: sempre os excedentes gerados por esta estranha sociedade. Computadores, móveis, latas de tinta, detergentes, roupa, sapatos, colchões, livros, canetas e brinquedos, toneladas de brinquedos! Com excepção dos computadores, não se trata de objectos em segunda mão: tudo novo e ainda embrulhado de origem. O destino é o mesmo: a separação, o arrumo, a classificação e a distribuição.
São já quase vinte os Bancos espalhados pelo país. O mais antigo, de Lisboa, ajuda a organizar os outros, apoia na gestão e na organização. Se estes bancos não existissem, ou quando não existirem, é sinal de que não são necessários. Feliz dia! Para já, são indispensáveis. Recebem a caridade e a solidariedade. Recolhem as sobras desta sociedade perdida em consumo, em produção exagerada e em promoções tolas. Aproveitam os desperdícios das políticas agrícolas e alimentares da Europa. Os excedentes da produção alimentar, retirados do mercado e subsidiados pela União Europeia, constituem uma parte importante dos fornecimentos. São assim reciclados, em vez de serem destruídos. Em certos anos. Mas, noutros, quando os ministérios se esquecem de tratar da papelada, não. O que nunca deveria acontecer.
Globalmente, o Estado não prejudica. Mas também não ajuda muito. Poderia, pelo menos, remover obstáculos. Há inúmeros procedimentos fiscais e sanitários que deveriam ser revistos e adaptados a este caso particular. Há serviços, como consultas médicas, que deveriam ser considerados na colecta fiscal, como o dinheiro ou as mercadorias, mas actualmente não são. Há linhas de apoio, como refeições preparadas, que não podem ser desenvolvidas, porque uma legislação aberrante penaliza quem dá ou ameaça quem cozinha.
O Estado moderno consagrou os direitos sociais e o Estado providência universal. Há mérito nisso. O sistema retira um pouco da humilhação ou da indignidade do pedido de esmola e da mendicidade. Mas esse mesmo Estado é burocrático e desumanizado. Não consegue acudir em situações de emergência. Não é rápido na resposta. Não mobiliza pessoas solidárias e decentes. Não traz uma palavra de reconforto a acompanhar a sopa. Com estas organizações, é o contrário. A proximidade faz a diferença. A humanidade é imediata. A flexibilidade é total. Muitas delas têm anos de experiência e a sua isenção é à prova de bala. Algumas, como este Banco, dariam lições de eficiência e organização a repartições públicas e mesmo a empresas privadas. Por isso os recursos oficiais deveriam ser em grande parte orientados para estas organizações. Muito do dinheiro canalizado para instituições e repartições públicas, a ser repartido por processos morosos e complicados, deveria simplesmente ser entregue às organizações de voluntários que, nos hospitais, nas ruas e a domicílio, fazem o que o Estado dificilmente pode fazer. Aliás, sabe-se, uma parte do dinheiro oficial, distribuído directamente pelo Estado, não chega a quem deveria.
É verdade que os números são impressionantes. Os milhares de toneladas de alimentos. Os milhões de objectos. A rapidez da distribuição. A prontidão quotidiana. As centenas de milhares de beneficiados. As centenas de instituições. A organização e a eficiência. Mas o que realmente impressiona é o número de voluntários. E o espírito que os anima. Religioso ou não. Em missão ou em festa. É fácil estar umas horas num supermercado a receber dádivas. Mas é preciso ir. É divertido passar uma noite a separar latas e embrulhar pacotes. Mas é preciso fazê-lo. Mais ainda, passar um ano, todos os dias, a fazer e distribuir embrulhos! Um ano, quase todos os dias, a entregar alimentos a doentes, velhos, pobres e sem abrigo! Os homens são capazes de tudo. Até de fazer o bem.
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9 comentários:
Excelente.
Mas diga-me,se for capaz, como é que o Sr.Dr. tem coragem para um dia arregaçar as mangas no "Banco" até às 6 horas da manhã e noutro dia defender, na televisão SIC, a subida dos combustíveis para um preço extraordinariamente elevado de modo a se poder diminuir drasticamente a actual circulação automóvel nas nossas estradas? Lembro que nessa altura, o petróleo tinha ultrapassado, há muito, os 100 dólares o barril..., e os pobres deste país estavam a ver os seus magros orçamentos a serem reduzidos a nada.
Contradições de um sociólogo reformado com sentimentos de culpa?
Os países desenvolvidos promovem a fome e a miséria nos países subdesenvolvidos, mandando para lá umas migalhas de farinha, através de uma ONG qualquer, que servem para manter aquela gente esfomeada numa situação de vivos-mortos, sem trabalho e sem futuro, e a terem bebés com fartura, os quais bebés darão origem a uma intervenção da UNICEF, desta vez com umas migalhas de leite em pó! Assim se fabricam os tão desejados operários-a-meio-tostão que os empresários adoram poder contratar quando fazem auto-estradas ou aeroportos.
O velho ditado que aconselha a dar canas de pesca aos pobres, em vez de dar peixes, é sistematicamente esquecido. É tudo uma grande hipocrisia.
O Banco Alimentar é a versão doméstica das ONG atrás referidas. Em vez de actuar nos campos de refugiados do Burundi actua nos bairros sociais das periferias de Lisboa e Porto, sustentando a lógica de que os cidadão que não se integram na sociedade têm também direito a viver, recebendo rendimento mínimo e casa de tijolo anti-sismo à borla, e continuam a ter direito a procriar, para que o circuito esteja sempre lubrificado e pronto a fornecer carne para canhão.
Solidariedade, sempre. Todos morremos de fome do Gesto essencial e no fim todos morreremos de todo. Melhor é não morrermos ressequidos de Racionalidade e Planificação à distância. Sílvia, para quê sempre enroscada e rosnante?!
Que autoridade têm os países que mais exploraram os recursos naturais e humanos de outros para esterilizarem o círculo viciado e vicioso da Fome e da Miséria exterminando essa casta de seres humanos á parte?!
Manolo, mais um esforço e vejo este Ocidente da PAC a propugnar por uma nova Solução Final. Nos Campos também se esterilizavam experimentalmente os 'schweine Juden'. Delimitavam-se. Continham-se. Eliminavam-se.
Com que então, Pobres, Excluídos, Miseráveis Habitantes dos Lixos, sem direito a viver? Sem direito a procriar? O modo como o Ocidente vive e ignora leva a crer que Sim. As doenças, as cleptocracias e as migalhas fazem o resto.
Quanto à solidariedade que promove e resgata seres humanos, só mesquinhos não alcançam o essencial a Fazer.
Uma querida a Prof. Sílvia! Há tanta coisa para fazer em casa...
Deixe-se de gozos com o Banco Alimentar que merece muito respeito de todos nós e um dia ainda pode precisar...
ljolhj
Viver sem dignidade é pior que morrer. Dar uma tijela de arroz a um muribundo não é solidariedade, é hipocrisia, é fazer com que ele não morra para que possamos beneficiar colateralmente de qualquer coisa. É por isso que o "Ocidente" (nós!) ainda não arranjou nenhuma desculpa para invadir a Somália. Não há lá nada para roubar!!!
A dignidade que se prescreve para os outros pode ser perigosa. Barbaridades passadas e futuras começam com esse conceito do que é pior que a morte. Ser e nascer judeu, para um nazi, era pior que a morte. Nascer mulher e negro também.
O Manolo tem uma retórica 'Terminator', Exterminatória. Deveria deixar-se embeber de Amor e de Compassividade para, diante de alguns olhos malévolos, evitar perder a dignidade e deixar de merecer estar vivo.
O Ocidente é gente e pluralidade. Não se categoriza como una uma realidade plurívoca.
fazer ver o bem que ninguém vê e a esquerda escondida mão quando a direita mão dá eis o mérito escondido em seu textozinho.
O que antes quis dizer foi num arremedo de paráfrase ao Texto: "nao saiba tua máo direita o que faz tua máo esquerda, quando fizeres o bem..." que se há a vileza de comer páo do suor do irmáo, há também a generosidade de dar do que se tem e do que se náo tem, e a ocultas, que "Aquele que sonda até aos rins saberá dar paga em justiça de bondade e de amor..."
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