Por vezes, as grandes crises são propícias às transformações. A actual pandemia é disso um bom exemplo. Aliás, mesmo antes de esta última se ter revelado, já havia sinais de que se preparava uma reconfiguração da política portuguesa. Havia sinais inconfundíveis. O declínio assustador da direita democrática e da democracia cristã. A decadência do centro social-democrata. A frenética ascensão da extrema-direita e do Chega. O imobilismo comunista. A deriva da esquerda radical não comunista. O desenvolvimento das tendências e das “sensibilidades” socialistas. E a proliferação de pequenos partidos.
O protagonismo do Presidente da República acrescentou uma nota consistente e um peso específico próprio com o qual teremos de contar durante os próximos anos. Na sociedade em geral, no mundo sindical, nos meios católicos, nos ambientes maçónicos, nos círculos profissionais e no universo intelectual, surgem fenómenos inéditos que não desmentem a descrença política e sugerem novas afirmações políticas.
Por enquanto, em Portugal, a pandemia tem favorecido o que está estabelecido, o statu quo e o poder do dia. E tem beneficiado os socialistas. Não se sabe por quanto tempo. Por isso, com a necessidade de aprovar três novos orçamentos, com a aproximação das eleições autárquicas e já com as legislativas (antecipadas ou não) no horizonte, a urgência de revisão política é total. Tanto nas esquerdas como nas direitas.
Estranhamente ou não, a esquerda é actualmente a mais importante força de estabilidade e de conservação política. Se pudesse, tudo ficava como está. Aos outros, na oposição, nas margens e nas extremas, compete o mais difícil: reconquistar, reorganizar, renovar e consolidar. Mas a esquerda sabe que, mantendo-se imóvel, fica dependente e pode perder os trunfos actuais. Por isso vamos, quase inevitavelmente, assistir a grandes movimentos políticos e doutrinários no universo esquerdista. E aqui surge, uma vez mais, a necessidade de clarificar as semelhanças e as diferenças entre as duas esquerdas.
Há muitos anos, mais de um século, as divisões dentro das esquerdas são conhecidas. Martov e Kerenski, por um lado, Lenine e Trotski ou Estaline, por outro, representam boa parte dessas diferenças. Que atingiram estados elevados de violência, como é sabido: o assassinato de milhares de socialistas pelos bolchevistas constitui ainda hoje inesquecível marco.
Antes e depois deles, na Rússia e alhures, as discussões dentro das esquerdas nunca foram suaves. Karl Kautsky e Eduard Berenstein protagonizaram visões moderadas do socialismo. Tal como Ebert, na Alemanha, Leon Blum, em França, ou os trabalhistas ingleses Attlee, Bevin e Bevan. Enquanto os comunistas desses países se constituíram depositários do poder soviético e da tradição autoritária e despótica da esquerda.
Em todas as esquerdas europeias, passando pelas alemãs, as suecas, as italianas e as espanholas, encontramos fenómenos semelhantes: desde a segunda metade do século XIX e até há bem pouco tempo, as separações dentro das esquerdas foram sempre um capítulo fundamental, muitas vezes violento, da história política europeia. Por exemplo, os confrontos entre as duas esquerdas, em plena guerra civil espanhola, ficaram para a história. Mais perto de nós e sem o carácter sangrento de outras paragens, o confronto entre socialistas e comunistas, ou entre Soares e Cunhal, transformou-se no mais sério contributo dos portugueses para a história política das esquerdas na Europa.
A associação do PS às esquerdas radicais (PCP e BE), no Parlamento e no governo, já criou uma situação inédita que dura há quase seis anos. Na crise actual, já se percebeu que as coisas não ficarão como estão ou como têm sido. E o que está em causa é muito importante. Juntam-se finalmente as esquerdas democráticas e as não democráticas? Separam-se de vez? A esquerda democrática consegue atrair e digerir as esquerdas não democráticas? Ou estas últimas obtém a vitória histórica de mudar e dominar os socialistas democráticos?
Os socialistas têm o benefício das opiniões e dos votos. Por enquanto. Fortemente identificados com a Europa e a democracia (e a Aliança Atlântica), mostram vantagem. Mas a sua vulnerabilidade diante dos negócios, dos grandes grupos económicos, da corrupção e do jacobinismo abre-lhe um flanco mais fraco. Tal como a sua dificuldade em combater a desigualdade e em alicerçar uma aliança durável com o mundo do trabalho. Dependentes das outras esquerdas, os socialistas, para ganhar, podem ter de vender alma e doutrina.
Na sua melhor tradição, os socialistas opõem-se aos métodos revolucionários, ao terrorismo, à violência, à colectivização, à destruição da iniciativa privada, à opressão da Igreja, ao monopólio do Estado na educação e na saúde, à aniquilação das Forças Armadas e a formas de governo não democráticas e não parlamentares. Mas também sabem que nas esquerdas há muito fortes tendências exactamente contrárias, com especial inclinação para destruir o mercado livre e a iniciativa privada, com um estranho afecto por formas “populares” de governo, com a obsessão do monopólio do Estado e com uma absoluta aversão pelo investimento privado. Estão ainda conscientes de que as esquerdas radicais têm uma concepção elástica dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos cívicos e políticos; assim como têm convicções condescendentes sobre a guerra civil e a luta das classes, a violência e o terrorismo (se este for de esquerda, das minorias, de tudo quanto é anti-capitalista ou anti-americano…) contrárias às tradições socialistas. Como é sabido que nas esquerdas vegeta uma grande complacência, quando não admiração, por formas de governo muito especiais, como sejam as do despotismo tropical latino-americano, as das ditaduras militares africanas e asiáticas, as das burocracias parasitárias africanas e árabes, as dos movimentos radicais muçulmanos e as dos separatistas europeus violentos.
Quando, há seis anos, António Costa decretou “o fim do tabu”, isto é, dispôs-se a governar em aliança com as esquerdas radicais, iniciou-se uma nova e interessante fase na política nacional: a colaboração entre as duas esquerdas. Na Europa, com o desaparecimento dos partidos comunistas e aparentados, já não se falava disso. Mas, em Portugal, quase sempre atrasado, iniciou-se essa colaboração. Por necessidade, claro, mais do que por convicção. Mas, sem esclarecimento, trata-se de colaboração passageira. Sem objectivos. Sem horizonte. Quer isto dizer que a hora das escolhas está a chegar.
Público, 27.2.202
1 comentário:
Seis anos investidos em 'durar', à espera da crise que não viria, e veio.
E durar continua a ser o único sincero objectivo!
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