O chamado Novo Banco herdou, do
defunto Banco Espírito Santo, algumas colecções de arte ou patrimoniais que
merecem atenção. São várias. A de “Artes decorativas”, no Palácio Azurara,
anexo à Fundação Ricardo Espírito Santo: pintura, azulejos, têxteis, prata,
móveis, louça e ourivesaria. Parece haver, no acervo de pintura renascentista,
barroca, clássica e moderna, algumas obras de real interesse, entre quadros de
Josefa de Óbidos e, mais recentes, de Vieira da Silva e Paula Rego.
A colecção de numismática, ao que
dizem a melhor de Portugal e uma das grandes colecções europeias, com mais de
15.000 exemplares de moedas de todos os tempos, romanas e gregas, ibéricas
anteriores à nacionalidade e portuguesas desde Afonso Henriques.
Uma colecção de fotografia
contemporânea, sobretudo internacional, mas com alguns artistas portugueses
importantes, faz parte deste espólio. Terá cerca de 1.000 obras de considerável
valor. Talvez mais orientada para o valor monetário do que para a qualidade
estética, mas são gostos que se discutem. A colecção tem inegável valor
patrimonial. Em Portugal, país pobre em fotografia internacional, esta colecção
faz falta.
Uma “Biblioteca de estudos
humanísticos”, como o seu autor gostava de a designar, organizada durante toda
a sua vida pelo professor e académico José Vitorino de Pina Martins. Compreende
aquela cerca de 1.000 obras raras de excepcional valor, assim como perto de
8.000 volumes de consulta relativos a estudos clássicos e humanistas. Entre os
autores das obras raras, verdadeiramente fundadoras da cultura europeia e
exemplos maiores do humanismo renascentista, contam-se Erasmo, Maquiavel, Pico
della Mirandola, Newton, Galileu, Montaigne, Thomas More, Dante, Boccacio,
Petrarca, Descartes, Camões, Sá de Miranda e outras figuras que deram extraordinário
contributo para a história do pensamento e da ciência. São incunábulos e
valiosas edições quinhentistas e seiscentistas, muitas delas únicas em Portugal
e raras na Europa. Como em todas as colecções, há obras e peças de valor muito
diferente. Mas alguns destes volumes são de excepcional qualidade e de valor
mundial. São autênticos tesouros.
Parece que ninguém é favorável a
que se vendam estas colecções ou que se deixem ficar todas num banco, em vias
de estranha privatização. Consta que já existem projectos de resolução
parlamentar da autoria dos partidos de apoio ao governo. Dizem que o Ministro
da Cultura já se exprimiu sobre o assunto. Mas nada disso deixa uma pessoa
tranquila. Antes de saber que foram tomadas medidas definitivas tendentes a
preservar estes pequenos tesouros, não se acredita nesta espécie de rumores. Casos
recentes, que envolveram a exportação ou a venda de obras-primas, deixaram
crescer as dúvidas.
Qual é a dificuldade em arrolar,
classificar, expropriar (legalmente, claro!) e nacionalizar (a preços justos,
com certeza!) tão importantes peças de património, únicas em Portugal? Por que
razão é tão difícil o Estado português, que já nacionalizou tudo o que se
imagine e cresça sob o sol, incluir estas colecções no bem comum? Um Estado que
já expropriou quiosques e herdades, quintas e barbearias, além de bancos,
petróleos, cimentos, seguros e electricidade, não consegue arranjar uns euros,
alguma legitimidade, um argumento e um fundamento para enriquecer o património
e não deixar ir embora obras primas que nunca mais veremos? Não haverá
entidades privadas que queiram, sem disso fazer campanha de propaganda,
oferecer ao povo estas tão interessantes colecções?
O Estado português, o do
corporativismo, o do socialismo, o do comunismo e o do capitalismo, tem tido
dificuldades em agir, neste domínio da cultura e do património, com isenção e
inteligência. Ora nacionaliza e expropria sem critério. Ora deixa correr sem
rigor. Ora garante que não tem recursos financeiros e que “quem não tem
dinheiro não tem vícios”, ora paga tudo o que pareça ser chique e dê votos ou
crie clientelas. Estas colecções oferecem uma oportunidade para o Estado,
liberal e zeloso do bem comum, agir sem preconceitos.
DN, 14 de Maio de 2017
3 comentários:
Oxalá tenhamos esse Estado liberal e zelozo! Ou quando mal dermos por elas, já viajaram para qualquer outro país ou estão na posse de particulares que podem até ser portugueses, mas não acreditam nem se esforçam pelo bem comum.
corrijo: zeloso
“Dizem que o ministro da Cultura já se exprimiu sobre o assunto. Mas nada disso deixa uma pessoa tranquila. Antes de saber que foram tomadas medidas definitivas tendentes a preservar estes pequenos tesouros, não se acredita nesta espécie de rumores. Casos recentes, que envolveram a exportação ou a venda de obras-primas, deixaram crescer as dúvidas.”
Este jeito de ecoar a descrença, o diz-que-disse e rumores já levou ao corte literal de muitas cabeças em Portugal. Parece que em certos portugueses ainda há um dominicano histérico a clamar “Herege! Herege!” no Rossio.
Mas AB tem razão e considero legítima a sua preocupação. Afinal, todos os contribuintes acabaram por ser lesados pelo BES/ Novo Banco e merecem ser ressarcidos com tais tesouros. Assim eles apareçam...classificados.
Só é pena que AB se tenha remetido ao silêncio quando, em 2014, a Fundação Ricardo Espírito Santo, por exemplo, foi obrigada a vender parte dos seus anéis para poder continuar a desenvolver a sua atividade, uma vez que o governo de Passos Coelho lhe cortou radicalmente o financiamento estatal e o seu maior mecenas, o GES, desapareceu, por razões de aperto financeiro conhecidas. Nessa altura, que me lembre, AB não alertou os amigos da sociedade civil e nem uma só palavra pronunciou sobre a ação irresponsável do governo de então, muito menos sobre o risco da perda do património e atividade daquele museu-escola sediado no Palácio Azurara.
Também no mesmo ano, não me recordo de uma só palavra ou alerta seu em defesa das 85 obras de Juan Miró, uma das colecções do ex-BPN, um tesouro que Barreto Xavier quis, à força, passar a patacos na leiloeira Christie`s.
Se não me falha a memória, também achei estranho que, em 2008, tenha tomado uma posição favorável à venda, em leilão, de parte do espólio de Fernando Pessoa, ainda e estranhamente na posse dos familiares do poeta. Lembro-me que nessa altura, AB não só considerava que a família tinha todo o direito de o possuir e o vender a nacionais e estrangeiros, como ajudou os leiloeiros nesse empreendimento, tendo, na minha opinião, contribuído dessa forma para a perda desse património de interesse nacional, esquecendo o papel do MC e do Município de Lisboa na construção do bem comum.
Mas prontos, desta vez, bora lá pôr os sinos da Estrela a tocar a rebate!
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