O mundo que nós fizemos é fonte
inesgotável de amor e decência. De honra e bondade. De beleza e inteligência.
Mas também é verdade que a sociedade que criámos, com similares contributos de
todas as correntes políticas, exibe abundantes razões de infelicidade e
desespero.
Substituímos a liberdade e os
direitos individuais pelos direitos colectivos e sociais. Destruímos o “ethos”
do trabalho, em troca da obsessão da competitividade. Habituámo-nos à
desigualdade social e ao desemprego crónico. Não denunciamos o racismo dos
outros pelo risco de sermos nós apelidados de racistas. Aceitamos a vigilância
dos indivíduos pelo Estado. Cultivamos a transparência, mas destruímos a
privacidade. Deixamos que a vida cultural obedeça às regras da publicidade e da
propaganda.
Fomos brandos perante ideias
nefastas. A noção de que a identidade nacional é fantasia reaccionária. A
certeza de que a igualdade é fonte de liberdade. A crença que o sistema
democrático gera sempre a liberdade. A convicção de que basta querer para que
um pobre e um desempregado deixem de o ser. A certeza contrária: se um pobre e
um desempregado são o que são, é por culpa da sociedade.
Criámos uma sociedade de direitos
sem mérito, de garantias sem esforço e de privilégios sem valor. Dissemos a
todos que podiam aspirar a tudo, à gratuitidade, à assistência, à estabilidade
vitalícia, a toda a educação, cultura e ciência e criámos classes médias
prontas para tudo, desde que o consumo seja ilimitado e o crédito infinito.
Fomentámos a substituição da família pela escola. Demos à política o direito de
tudo dominar, a economia, a cultura, a ciência e a moral.
Dissemos a muitos que podiam
aspirar a tudo o que quisessem, que podiam ser imensamente ricos, que a
imaginação, a força e o êxito eram os grandes critérios de triunfo, que a
especulação era permitida e a ambição festejada! Fizemos ricos, bilionários e
proprietários disformes capazes de tudo e convencidos de que podem enganar e
esmagar quem contrarie tão ilustres seres. Desprezámos quem ganhou dinheiro,
quem quis ganhar dinheiro e quem quis subir na vida. Não soubemos distinguir
entre ganhar dinheiro de forma decente e honesta e acumular dinheiro de modo
corrupto e desonesto.
Fizemos ou deixámos fazer um
Estado monstruoso. Uma carga de impostos desmoralizadora. O despotismo do
Estado democrático. A indiferença perante o endividamento. O favorecimento pelo
Estado de negócios ilícitos, favoráveis aos amigos. A promiscuidade e a
corrupção inevitáveis. A ideia de que o dinheiro não tem pátria, odor ou
origem. A transformação do partido político em casta de sacerdotes da
democracia. A tolerância perante a corrupção, a mentira e a promiscuidade.
A substituição de valores de
identidade nacional por abstracções internacionais. A intolerância perante os
diferentes, os outros e os que não pensam como nós. O mau convívio com as
religiões. A ficção democrática da União Europeia e o embuste do défice
democrático e dos falsos remédios para o curar. A dependência da Europa
parasita dos Estados Unidos em tudo o que respeita à defesa.
Em nome da competitividade,
deixámos destruir empregos estáveis e decentes e aproveitámos as piores
condições de trabalho e de vida dos países pobres e das ditaduras. Queixamo-nos
da globalização, que gostaríamos de travar, lamentando os desempregados
europeus, sem preocupação pelas centenas de milhões de asiáticos que devem à
globalização a sua sobrevivência e que deixaram de morrer de fome.
Populistas, nacionalistas,
reaccionários, comunistas e revolucionários: criámos os espectros que nos
ameaçam. Ou deixámos criar.
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DN, 20 de Novembro de
2016
2 comentários:
Para já, a pior ameaça é a retórica dos demagogos. Com habilidade e algum carisma, eles constroem carreiras, muitas vezes no Estado, e julgam-se figuras indispensáveis à sociedade a que pertencem.
A comunicação e as redes sociais fazem deles verdadeiros guias para os seus seguidores. Por vezes é tanta e tão grande a sua popularidade nos setores da sociedade que dominam que, alguns deles, chegam a ser convidados pelos seus mentores a ocupar cargos elevados no Estado. Uns aceitam, outros não.
E verdade o que diz, criamos a cura e também a nova doença. Mas julgo que sempre foi assim e que, a ser de outra forma, a limite, nos faríamos sem mancha, perfeitos. Ora a perfeição não só não nos assenta como não é desejável. Deixamo-nos corromper pelo mais agradável e apetecível, perdemos a visão de conjunto. Ou, simplesmente, vamos perdendo a vontade que nos obriga a não deixar que aconteçam tantas exaltações do indivíduo e seus mesquinhos interesses. É certo tudo isso. Como é certo que em diferentes épocas da história houve ingredientes idênticos, puro retrocesso de valores e ideais humanistas. E que a evolução se fez apesar delas ou mesmo à sua custa.
O que me inquieta é que a seguir a essa perda de sentido e valores vieram guerras, mortandades e sofrimento sem número. Julgava eu que estaríamos longe disso por termos aprendido com as duas grandes guerras do século XX. Mas a verdade é que as gerações que decidem não as viveram. E cada vez duvido mais que se aprenda com a história. Pode até conhecer-se a teoria, mas a mesma história mostra que ela não determina a prática. Somos o tal ser que não é por conhecer o bem que o pratica, lembra-se?
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