domingo, 5 de junho de 2016

Sem emenda - Aniversários

É uma indústria! Há aniversários todos os anos. Antigamente, festejavam-se números redondos: dez ou cinquenta, por exemplo. Os centenários eram os mais desejados. Depois, vieram os 15 e os 25 anos. Agora, faz-se tudo. Este ano, estamos servidos. Para além dos clássicos, como sejam os centenários da morte de Cervantes, Shakespeare ou Leibniz, temos, mais perto de nós, os 90 anos da Rainha de Inglaterra e do 28 de Maio, os 71 de Hiroshima, da derrota dos alemães e da paz na Europa, assim como os 42 do 25 de Abril e os 40 da Constituição.

A actividade comemorativa está cada vez mais globalizada. Pela lista que precede, damo-nos conta de que a memória vai buscar o que pode, a fim de garantir a nossa identidade, mas também o êxito comercial dos profissionais da efeméride. É natural pensar-se que há comemorações artificiais, dado que há procura para quem se especializa nestas coisas. Mas, de qualquer maneira, são boas oportunidades para reflectir. Simplificando sempre, dado que é esse o objectivo do exercício!

Hiroshima… Certo? Errado? Foi um exagero? Ainda hoje o tema é polémico. E sempre será. Talvez até hoje mais controverso do que então. As emoções da guerra, na altura, poderiam desculpar muita coisa que hoje não seria aceitável. Será que a guerra estava ganha, que as bombas atómicas foram inúteis e os 200.000 civis mortos a mais? Ou será que assim se pouparam milhares de mortos americanos (e ainda mais japoneses) e dias ou semanas ou meses de guerra? Obama e o G7 estiveram lá a comemorar. Mas não resolveram a polémica.

Há 71 anos, a Alemanha e o Japão foram derrotados. São hoje duas das nações mais poderosas do mundo. Há, na Europa e na Ásia, quem os receie. Com ou sem razão, mas certamente com antecedentes. Mas a verdade é que os dois países demonstram que foi possível crescer em paz, sem imperialismo nem agressões. Foi possível porque estudaram, pensaram, trabalharam, pouparam e organizaram. Mas também porque houve vigilância internacional.

Na Grã-bretanha, 71 anos depois de terem vencido a guerra e 43 depois de terem aderido à União Europeia, o ingleses discutem com calor e algum azedume (como já não se via há muitos anos) a sua permanência na União ou o seu regresso a casa, sozinhos. A sua saída enfraquecerá ambos, o Reino Unido e a União.

Cá por casa, os aniversários são outros. Os 90 anos do 28 de Maio, os 42 do 25 de Abril e os 40 da Constituição. A duração da ditadura ainda é ligeiramente superior à da democracia. Daqui a cinco anos, os democratas poderão gabar-se do seu regime que será finalmente o mais duradouro. Com idades tão parecidas, às vezes apetece fazer comparações.

A ditadura fez a ordem, mas tirou a liberdade. Criou disciplina, mas manteve a ignorância. Fortaleceu a economia, mas conservou a pobreza. Estabilizou a moeda, mas distribuiu pouco. Evitou a grande guerra, mas fez as guerras em África. Pior que tudo, impediu a liberdade.
A democracia deu liberdade e paz. E promoveu o Estado social e a Europa. Começou com crescimento económico, mas chegou à estagnação. Iniciou vida na abundância, mas chegou à bancarrota. Proclamou alto e bom som a independência, mas chegou ao protectorado.

Os aniversários já não são o que eram. Agora, não lhes falta melancolia, nem esta mistura de felicidade passada com esperança envergonhada que dá por nome de saudade. A imprensa, a televisão, a Internet e as redes ditas sociais acreditam e necessitam das efemérides. Sem estas, ficariam frequentemente vazias de conteúdo, teriam ainda menos emoções do que fingem ter. Os aniversários garantem a indústria da memória e fornecem matéria-prima inesgotável. Já para o próximo ano, teremos dois centenários de respeito: o de Fátima e o da Revolução Bolchevista. Vai ser um grande ano!


DN, 29 de Maio de 2016

1 comentário:

bea disse...

Por vezes penso que o afã de tudo comemorar só estraga e apouca. Mas há acontecimentos que, se não haja comemoração, caem no esquecimento. E não devem. Fazem parte da nossa consciência colectiva (se é que tal coisa existe).
Porém, e apesar da análise aqui efectuada e com prós e contras, a democracia é sempre preferível. Não será um bom regime, mas é capaz de ser o melhor.