ABRIU A ÉPOCA: a partir de agora, é possível rever a Constituição. Mais uma vez. Já apareceram propostas e artigos nos jornais. Mas sobretudo, pontual como sempre, Alberto J. Jardim já disse da sua justiça. Rasgar esta, fazer uma nova. A esse objectivo, aliás recorrente, acrescentou o disparate da proibição das ideologias ou dos partidos que as perfilham. Apesar da energia radical, que por vezes é bem necessária, o que lhe falta de sensatez sobra em estapafúrdia! Tem-se mesmo a impressão de que ele faz todo este alvoroço a fim de simplesmente impedir uma revisão! Entre ele, Paulo Portas e o Bloco de Esquerda, vai haver corrida para ver quem revê antes. Isto é, quem cria mais problemas aos outros.
Era tão bom ter orgulho na Constituição! Entre nós, não parece ser o caso, com excepção de meia dúzia de comunistas, uns tantos socialistas de choque e uns bloquistas fracturantes. A Constituição não se limita a estabelecer direitos, deveres, liberdades e garantias, assim como a desenhar o poder político: ela é um travão à soberania do povo e à liberdade dos cidadãos de decidir sobre questões que deveriam ser abertas. Por um lado, os limites à revisão criam uma ordem pré-estabelecida que as gerações futuras não podem contestar. Por outro, as matérias programáticas são tais que, por lei ordinária, não se pode dizer que o Parlamento e os Governos tenham real liberdade de acção.
As inutilidades artísticas constituem parte importante de magna lei. Ou se trata de meras aspirações quase voluptuosas, a fazer lembrar os jornais de parede dos adolescentes. Ou então são normas políticas não respeitadas, o que tem como consequência criar a sensação de que existe pura hipocrisia constitucional. O que ali se estatui é para exibir, não para cumprir. Também com a Constituição de Salazar e do Estado Novo havia belas normas constitucionais sobre os direitos humanos e as liberdades, como por exemplo o sigilo de correspondência, a liberdade de expressão e o direito de associação. Mas, depois, era o que se sabia. A nossa Constituição abunda em proclamações equivalentes. Começa, no preâmbulo, com o rumo ao socialismo. Aliás, o primeiro parágrafo festeja o derrube do fascismo, em vez de afirmar a liberdade e a democracia. Mau sinal! No clausulado, define e regulamenta a regionalização, ditame inútil e desrespeitado há décadas. Nos princípios fundamentais e entre os direitos estabelece que o Estado garante a segurança do emprego e afirma o direito à habitação e à cultura. Não sem esquecer, evidentemente, a saúde tendencialmente gratuita e a educação progressivamente gratuita em todos os níveis de ensino. O Estado também garante um ambiente sadio e defende e apoia as comissões de trabalhadores, de moradores e de consumidores; além de executar planos descentralizados e regionalizados. Também ao Estado compete taxativamente eliminar os latifúndios! E aos alunos é reconhecido o direito de participar na gestão das escolas. Tudo isto está ali como vento em saco roto. Como ainda estão lá os julgamentos dos PIDES!
Com estes e tantos outros exemplos de inutilidades, afirmações gratuitas, obstáculos à liberdade dos cidadãos e travões à soberania do povo e do seu Parlamento, a conclusão a tirar parece só ser uma: a da urgência da revisão. Mais: a da necessidade de uma profunda e radical limpeza. O problema é que não vale a pena acreditar em milagres, pois corremos o risco de ser iguais à Constituição: inúteis e palavrosos. As revisões devem ser feitas com algumas regras, a começar pela eleição dos constituintes, caso contrário estamos a entrar no terreno pantanoso dos déspotas, esclarecidos ou não, e dos plebiscitos demagógicos ou das cartas outorgadas. Ora, a revisão com regras, fora de períodos excepcionais da história, só se faz em resultado de negociações partidárias, de concessões e intransigências e de elaboradas negociações. Sobretudo, de equilíbrios efémeros e circunstanciais. Não conheço partido que se disponha a rever uma Constituição com horizonte de uma ou duas gerações, sem que tenha vantagens e lucros imediatos.
Rever a sério implicaria um longo debate nacional, um desprendimento interesseiro dos principais partidos e uma força motriz capaz de conduzir um processo desses. Exigiria a participação de grandes corpos, do Conselho de Estado às Universidades e às Forças Armadas, assim como das grandes associações civis. No fim de um prazo dilatado, talvez fosse possível encontrar linhas de força que reduzissem a Constituição à sua mais nobre função. Poder-se-ia pensar em retirar da Constituição tudo quanto é inútil e adolescente. Tudo o que não deveria lá estar e fosse remetido para a lei ordinária. Poder-se-ia expurgar a Constituição das ratoeiras que diminuem a soberania do povo e limitam os poderes legítimos do Parlamento. Permitir, por exemplo, que o povo faça o seu sistema eleitoral, fazendo com que os eleitos o sejam individual e nominalmente. Alterar a administração pública ou o desenho autárquico. Obrigar os ministros a serem eleitos deputados ou proibir os deputados de serem substituídos à vontade do freguês. Ninguém com juízo acredita que isto seja possível. As negociações que se anunciam, para a próxima legislatura com poderes constituintes, serão duras e demagógicas, tanto quanto inúteis. Mas vão certamente encher as páginas dos jornais. Aquilo que se vai verdadeiramente discutir é a formação e a manutenção de um governo em condições previsivelmente difíceis. O melhor seria estarem sossegados e não reverem coisa nenhuma.
«Retrato da Semana» - «Público» de 26 de Julho de 2009Era tão bom ter orgulho na Constituição! Entre nós, não parece ser o caso, com excepção de meia dúzia de comunistas, uns tantos socialistas de choque e uns bloquistas fracturantes. A Constituição não se limita a estabelecer direitos, deveres, liberdades e garantias, assim como a desenhar o poder político: ela é um travão à soberania do povo e à liberdade dos cidadãos de decidir sobre questões que deveriam ser abertas. Por um lado, os limites à revisão criam uma ordem pré-estabelecida que as gerações futuras não podem contestar. Por outro, as matérias programáticas são tais que, por lei ordinária, não se pode dizer que o Parlamento e os Governos tenham real liberdade de acção.
As inutilidades artísticas constituem parte importante de magna lei. Ou se trata de meras aspirações quase voluptuosas, a fazer lembrar os jornais de parede dos adolescentes. Ou então são normas políticas não respeitadas, o que tem como consequência criar a sensação de que existe pura hipocrisia constitucional. O que ali se estatui é para exibir, não para cumprir. Também com a Constituição de Salazar e do Estado Novo havia belas normas constitucionais sobre os direitos humanos e as liberdades, como por exemplo o sigilo de correspondência, a liberdade de expressão e o direito de associação. Mas, depois, era o que se sabia. A nossa Constituição abunda em proclamações equivalentes. Começa, no preâmbulo, com o rumo ao socialismo. Aliás, o primeiro parágrafo festeja o derrube do fascismo, em vez de afirmar a liberdade e a democracia. Mau sinal! No clausulado, define e regulamenta a regionalização, ditame inútil e desrespeitado há décadas. Nos princípios fundamentais e entre os direitos estabelece que o Estado garante a segurança do emprego e afirma o direito à habitação e à cultura. Não sem esquecer, evidentemente, a saúde tendencialmente gratuita e a educação progressivamente gratuita em todos os níveis de ensino. O Estado também garante um ambiente sadio e defende e apoia as comissões de trabalhadores, de moradores e de consumidores; além de executar planos descentralizados e regionalizados. Também ao Estado compete taxativamente eliminar os latifúndios! E aos alunos é reconhecido o direito de participar na gestão das escolas. Tudo isto está ali como vento em saco roto. Como ainda estão lá os julgamentos dos PIDES!
Com estes e tantos outros exemplos de inutilidades, afirmações gratuitas, obstáculos à liberdade dos cidadãos e travões à soberania do povo e do seu Parlamento, a conclusão a tirar parece só ser uma: a da urgência da revisão. Mais: a da necessidade de uma profunda e radical limpeza. O problema é que não vale a pena acreditar em milagres, pois corremos o risco de ser iguais à Constituição: inúteis e palavrosos. As revisões devem ser feitas com algumas regras, a começar pela eleição dos constituintes, caso contrário estamos a entrar no terreno pantanoso dos déspotas, esclarecidos ou não, e dos plebiscitos demagógicos ou das cartas outorgadas. Ora, a revisão com regras, fora de períodos excepcionais da história, só se faz em resultado de negociações partidárias, de concessões e intransigências e de elaboradas negociações. Sobretudo, de equilíbrios efémeros e circunstanciais. Não conheço partido que se disponha a rever uma Constituição com horizonte de uma ou duas gerações, sem que tenha vantagens e lucros imediatos.
Rever a sério implicaria um longo debate nacional, um desprendimento interesseiro dos principais partidos e uma força motriz capaz de conduzir um processo desses. Exigiria a participação de grandes corpos, do Conselho de Estado às Universidades e às Forças Armadas, assim como das grandes associações civis. No fim de um prazo dilatado, talvez fosse possível encontrar linhas de força que reduzissem a Constituição à sua mais nobre função. Poder-se-ia pensar em retirar da Constituição tudo quanto é inútil e adolescente. Tudo o que não deveria lá estar e fosse remetido para a lei ordinária. Poder-se-ia expurgar a Constituição das ratoeiras que diminuem a soberania do povo e limitam os poderes legítimos do Parlamento. Permitir, por exemplo, que o povo faça o seu sistema eleitoral, fazendo com que os eleitos o sejam individual e nominalmente. Alterar a administração pública ou o desenho autárquico. Obrigar os ministros a serem eleitos deputados ou proibir os deputados de serem substituídos à vontade do freguês. Ninguém com juízo acredita que isto seja possível. As negociações que se anunciam, para a próxima legislatura com poderes constituintes, serão duras e demagógicas, tanto quanto inúteis. Mas vão certamente encher as páginas dos jornais. Aquilo que se vai verdadeiramente discutir é a formação e a manutenção de um governo em condições previsivelmente difíceis. O melhor seria estarem sossegados e não reverem coisa nenhuma.
NOTA: Até ao regresso do «Retrato da Semana», lá para Setembro, o nosso webmaster Carlos Medina Ribeiro ficou com um pequeno stock de escritos e fotografias que vai colocando semanalmente.
4 comentários:
Ver, em "actualização", o resultado do passatempo anterior.
Para quê rever a Constituição? Se apesar de todos os direitos e garantias reconhecidas aos cidadãos isso não os impede de fazer uma politica de direita?... só se for por uma questão de coerência e isso só pode ser para nos fazer rir!
Não há qualquer motivo de ter orgulho numa constituição concebida para evitar os mais significativos actos democráticos: o controlo dos políticos governantes pela população. Esta constituição, tal como é, é uma paródia e não é de acreditar que os bandos de corruptos mafiosos alguma vez concebam uma verdadeiramente denmocrática que lhes mate a galinha dos ovos de ouro, que os mantenha sob controlo e que permita a existência duma verdadeira democracia: a partici~pação popular. O resto são balelas para paspalvos.
Subscrevo inteiramente este artigo, mas não desejaria capitular perante a ideia de que se tratará de uma mera revisão formalística da Constituição.
Ainda podemos escrever e forcejar por que a coisa se faça com o concurso de todos e de um modo profundo e sério.
Enviar um comentário