quinta-feira, 11 de junho de 2009

O exemplo

DIA DE PORTUGAL... É dia de congratulação. Pode ser dia de lustro e lugares comuns. Mas também pode ser dia de simplicidade plebeia e de lucidez.
Várias vezes este dia mudou de nome. Já foi de Camões, por onde começou. Já foi de Portugal, da Raça ou das Comunidades. Agora, é de Portugal, de Camões e das Comunidades. Com ou sem tolerância, com ou sem intenção política específica, é sempre o mesmo que se festeja: os Portugueses. Onde quer que vivam.
Há mais de cem anos que se celebra Camões e Portugal. Com tonalidades diferentes, com ideias diversas de acordo com o espírito do tempo. O que se comemora é sempre o país e o seu povo. Por isso o Dia de Portugal é também sempre objecto de críticas. Iguais, no essencial, às expressas por Eça de Queirós, aquando do primeiro dia de Camões. Ele afirmava que os portugueses, mais do que colchas às varandas, precisavam de cultura.
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Estranho dia este! Já foi uma “manobra republicana”, como lhe chamou Jorge de Sena. Já foi “exaltação da raça”, como o designaram no passado. Já foi de Camões, utilizado para louvar imperialismos que não eram os dele. Já foi das Comunidades, para seduzir os nossos emigrantes, cujas remessas nos faziam falta. E apenas de Portugal.
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Os Estados gostam de comemorar e de se comemorar. Nem sempre sabem associar os povos a tal gesto. Por vezes, quando o fazem, é de modo desajeitado. “As festas decretadas, impostas por lei, nunca se tornam populares”, disse também Eça de Queirós. Tinha razão. Mas devo dizer que temos a felicidade única de aliar a festa nacional a Camões. Um poeta, em vez de uma data bélica. Um poeta que nos deu a voz. Que é a nossa voz. Ou, como disse Eduardo Lourenço, um povo que se julga Camões. Que é Camões. Verdade é que os povos também prezam a comemoração, se nela não virem armadilha ou manipulação.
Comemora-se para criar ou reforçar a unidade. Para afirmar a continuidade. Para reinterpretar o passado. Para utilizar a História a favor do presente. Para invocar um herói que nos dê coesão. Para renovar a legitimidade histórica. São, podem ser, objectivos decentes. Se soubermos resistir à tentação de nos apropriarmos do passado e dos heróis, a fim de desculpar as deficiências contemporâneas.
Não é possível passar este dia sem olharmos para nós. Mas podemos fazê-lo com consciência. E simplicidade.
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Garantimos com altivez que Camões é o grande escritor da língua portuguesa e um dos maiores poetas do mundo, mas talvez fosse preferível estudá-lo, dá-lo a conhecer e garantir a sua perenidade.
Afirmamos, com brio, que os portugueses navegadores descobriram os caminhos do mundo nos séculos XV e XVI e que os portugueses emigrantes os percorreram desde então. Mais vale afirmá-lo com o sentido do dever de contribuir para a solidez desta comunidade.
Dizemos, com orgulho, que o Português é uma das seis grandes línguas do mundo. Mas deveríamos talvez dizê-lo com a responsabilidade que tal facto nos confere.
Quando se escolhe um português que nos representa, que nos resume, escolhe-se um herói. Ele é Camões. Podemos festejá-lo com narcisismo. Mas também com a decência de quem nele procura o melhor.
Os nossos maiores heróis, com Camões à cabeça, ilustraram-se pela liberdade e pelo espírito insubmisso. Pela aventura e pelo esforço empreendedor. Pela sua humanidade e, algumas vezes, pela tolerância. Infelizmente, foram tantas vezes utilizados com o exacto sentido oposto: obedientes ou símbolos de uma superioridade obscena.
Ainda hoje soubemos prestar homenagem a Salgueiro Maia. Nele, festejámos a liberdade, mas também aquele homem. Que esta homenagem não se substitua, ritualmente, ao nosso dever de cuidar da democracia.
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As comemorações nacionais têm a frequente tentação de sublinhar ou inventar o excepcional. O carácter único de um povo. A sua glória. Mas todos sentimos, hoje, os limites dessa receita nacionalista. Na verdade, comemorar Portugal e festejar os Portugueses pode ser acto de lucidez e consciência. No nosso passado, personificado em Camões, o que mais impressiona é a desproporção entre o povo e os feitos, entre a dimensão e a obra. Assim como esta extraordinária capacidade de resistir, base da “persistência da nacionalidade”, como disse Orlando Ribeiro. Mas que isso não apague ou esbata o resto. Festejar Camões não é partilhar o sentido épico que ele soube dar à sua obra maior, mas é perceber o homem, a sua liberdade e a sua criatividade. Como também é perceber o que fizemos de bem e o que fizemos de mal. Descobrimos mundos, mas fizemos a guerra, por vezes injusta. Civilizámos, mas também colonizámos sem humanidade. Soubemos encontrar a liberdade, mas perdemos anos com guerras e ditaduras.
Fizemos a democracia, mas não somos capazes de organizar a justiça. Alargámos a educação, mas ainda não soubemos dar uma boa instrução. Fizemos bem e mal. Soubemos abandonar a mitologia absurda do país excepcional, único, a fim de nos transformarmos num país como os outros. Mas que é o nosso. Por isso, temos de nos ocupar dele. Para que não sejam outros a fazê-lo.
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Há mais de trinta anos, neste dia, Jorge de Sena deixou palavras que ecoam. Trouxe-nos um Camões humano, sabedor, contraditório, irreverente, subversivo mesmo.
Desde então, muito mudou. O regime democrático consolidou-se. Recheado de defeitos, é certo. Ainda a viver com muita crispação, com certeza. Mas com regras de vida em liberdade.
Evoluiu a situação das mulheres, a sua presença na sociedade. Invisíveis durante tanto tempo, submissas ainda há pouco, as mulheres já fizeram um país diferente.
Mudou até a constituição do povo. A sociedade plural em que vivemos hoje, com vários deuses e credos, com dois sexos iguais, com diversas línguas e muitos costumes, com os partidos e as associações que se queira, seria irreconhecível aos nossos próximos antepassados.
A sociedade e o país abriram-se ao mundo. No emprego, no comércio, no estudo, nas viagens, nas relações individuais e até no casamento, a sociedade aberta é uma novidade recente.
A pertença à União Europeia, timidamente desejada há três décadas, nem sequer por todos, é um facto consumado.
A estes trinta anos pertence também o Estado de protecção social, com especial relevo para o Serviço Nacional de Saúde, a segurança social universal e a escolarização da população jovem. É certamente uma das realizações maiores.
Estas transformações são motivo de regozijo. Mas este não deve iludir o que ainda precisa de mudança. O que não foi possível fazer progredir. E a mudança que correu mal.
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A Sociedade e o Estado são ainda excessivamente centralizados. As desigualdades sociais persistem para além do aceitável. A injustiça é perene. A falta de justiça também. O favor ainda vence vezes de mais o mérito. O endividamento de todos, país, Estado, empresas e famílias é excessivo e hipoteca a próxima geração. A nossa pertença à União Europeia não é claramente discutida e não provoca um pensamento sério sobre o nosso futuro como nacionalidade independente.
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Há poucos dias, a eleição europeia confirmou situações e diagnósticos conhecidos. A elevadíssima abstenção mostrou uma vez mais a permanente crise de legitimidade e de representatividade das instituições europeias. A cidadania europeia é uma noção vaga e incerta. É um conceito inventado por políticos e juristas, não é uma realidade vivida e percebida pelos povos. É um pretexto de Estado, não um sentimento dos povos. A pertença à Europa é, para os cidadãos, uma metafísica sem tradição cultural, espiritual ou política. Os Estados e os povos europeus deveriam pensar de novo, uma, duas, três vezes, antes de prosseguir caminhos sem saída ou falsos percursos que terminam mal. E nós fazemos parte desse número de Estados e povos que têm a obrigação de pensar melhor o seu futuro, o futuro dos Portugueses que vêm a seguir.
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É a pensar nessas gerações que devemos aproveitar uma comemoração e um herói para melhor ligar o passado com o futuro.
Não usemos os nossos heróis para nos desculpar. Usemo-los como exemplos. Porque o exemplo tem efeitos mais duráveis do que qualquer ensino voluntarista.
Pela justiça e pela tolerância, os portugueses precisam mais de exemplo do que de lições morais.
Pela honestidade e contra a corrupção, os portugueses necessitam de exemplo, bem mais do que de sermões.
Pela eficácia, pela pontualidade, pelo atendimento público e pela civilidade dos costumes, os portugueses serão mais sensíveis ao exemplo do que à ameaça ou ao desprezo.
Pela liberdade e pelo respeito devido aos outros, os portugueses aprenderão mais com o exemplo do que com declarações solenes.
Contra a decadência moral e cívica, os portugueses terão mais a ganhar com o exemplo do que com discursos pomposos.
Pela recompensa ao mérito e a punição do favoritismo, os portugueses seguirão o exemplo com mais elevado sentido de justiça.
Mais do que tudo, os portugueses precisam de exemplo. Exemplo dos seus maiores e dos seus melhores. O exemplo dos seus heróis, mas também dos seus dirigentes. Dos afortunados, cujas responsabilidades deveriam ultrapassar os limites da sua fortuna. Dos sabedores, cuja primeira preocupação deveria ser a de divulgar o seu saber. Dos poderosos, que deveriam olhar mais para quem lhes deu o poder. Dos que têm mais responsabilidades, cujo “ethos” deveria ser o de servir.
Dê-se o exemplo e esse gesto será fértil! Não vale a pena, para usar uma frase feita, dar “sinais de esperança” ou “mensagens de confiança”. Quem assim age, tem apenas a fórmula e a retórica. Dê-se o exemplo de um poder firme, mas flexível, e a democracia melhorará. Dê-se o exemplo de honestidade e verdade, e a corrupção diminuirá. Dê-se o exemplo de tratamento humano e justo e a crispação reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de trabalho, de poupança e de investimento e a economia sentirá os seus efeitos.
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Políticos, empresários, sindicalistas e funcionários: tenham consciência de que, em tempos de excesso de informação e de propaganda, as vossas palavras são cada vez mais vazias e inúteis e de que o vosso exemplo é cada vez mais decisivo. Se tiverem consideração por quem trabalha, poderão melhor atravessar as crises. Se forem verdadeiros, serão respeitados, mesmo em tempos difíceis.
Em momentos de crise económica, de abaixamento dos critérios morais no exercício de funções empresariais ou políticas, o bom exemplo pode ser a chave, não para as soluções milagrosas, mas para o esforço de recuperação do país.

(Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, Santarém, 10 de Junho de 2009)

19 comentários:

Rose Santos disse...

Parabéns pelo discurso pertinente, oportuno e mais bem conseguido que, do alto dos meus 62 anos, tenho tido o prazer de ouvir nos últimos tempos. Obrigada pela transcrição do mesmo. Hei-de guardá-lo.Aliás, o seu efeito é transversal nas faixas etárias, pois o meu neto (12 anos), percebeu-o bem e também o aplaudiu.

Nos resultados eleitorais de Domingo, os números apontaram para uma das mais elevadas taxas de abstenção, de sempre, em eleições europeias. Na verdade, o que foi que assistimos: a uma grande irresponsabilidade cívica ou a um grande acto de coragem?A abstenção foi a grande vencedora. Penso que, nenhum partido tem legitimidade para festejar vitória. Venceu a coragem de mostrar que, a grande maioria dos eleitores já não se identifica com o modelo “queixinhas” de fazer política.E, como já é do conhecimento de todos, os votos brancos, mal são comentados.Os partidos gastaram (leia-se: desperdiçaram) imensos recursos a repetir o que toda a gente já sabe, mas não mostraram consistência nos propósitos de integrar o parlamento europeu e, acima de tudo não passaram mensagens credíveis e esclarecedoras a respeito. Esforçam-se muito por mostrar os defeitos alheios, quando deveriam tentar mostrar as suas próprias virtudes. Espero que os resultados abstencionistas das europeias não reflictam as intenções de votos para daqui a quatro meses. Mas, para tal, urge que a campanha que se segue seja mais consistente, mais objectiva e mais coerente. E que os candidatos aprendam a respeitar-se mutuamente, porque só assim poderão merecer o respeito dos eleitores.

Anónimo disse...

Para falar ao vento bastam quatro palavras; para falar ao coração são necessárias obras.
(Padre António Vieira)

Carlos Medina Ribeiro disse...

Para documentar «a força do exemplo», escolhi, entre mais de 20 que tenho em arquivo, uma dezena de fotos que me parecem bem elucidativas - ver [aqui].

N R disse...

Portugal precisa de mais "Peito(s) ilustre(s) lusitano(s)". Excelente discurso. Os nossos diregentes estavam ao seu lado, esperemos que tenham percebido (ou aceitado).

Carlos Portugal disse...

Muito obrigado, Doutor António Barreto. Não sei mais o que lhe dizer, senão o meu mais infinito obrigado, porque sinto que enquanto existir um português capaz de expressar as palavras que proferiu ainda poderemos ter esperança para a Pátria.

Obrigado, Doutor António Barreto.

Camões decerto teria gostado muito de o ouvir. E isso é o que mais conta no seu dia, recordando-nos da responsabilidade e do dever de sermos dignos da herança única de uma nação de oito séculos.

Bem haja!

Anónimo disse...

Vir lembrar a pedagogia do exemplo na companhia de Cavaco Silva, só pode ser estratégia de aula observada para inglês ver.
O português aplaude, de pé, como deve ser. O kitsch é nosso.

Diogo disse...

E a solução pode passar pela blogosfera:

Hitler ensaiou infrutiferamente obter receitas na blogosfera

Refugiado num bunker em Berlim, poucos dias antes de 30 de Abril de 1945, data do seu suicídio, Hitler é confrontado pelos seus generais com o débâcle total do seu blog, donde esperava receitas suplementares que lhe permitissem prolongar a guerra.

No auge do desespero, Hitler dispara em todas as direcções e nem sequer poupa os outros bloggers, com especial incidência no Blasfémias, Arrastão, Causa Nossa, etc.

Vídeo legendado em português

Ângelo Ferreira disse...

Muito obrigado pelo seu forte contributo para um país diferente! Inspira-nos.

F. J. Branquinho de Almeida disse...

E não viesse a Dona Sílvia com a nova fórmula do lápis azul!
Foi o melhor discurso de muitos "10 de Junho".Parabéns, AB, e não desarme!
Só lamento que, passe o respeito que tenho por Camões e pelas Comunidades, não se terem "lembrado" os combatentes que tombaram no cumprimento dum dever que a Pátria (mal ou bem)lhes determinou. Especialmente, agora que sabemos ainda haverem muitos deixados para trás em sepulturas anónimas e cemitérios abandonados.
As feridas não se curam só pelo facto de as ocultarmos ou esquecermos!
Foi com os que tombaram que celebrei o "meu" 10 de Junho!

Jack disse...

Parabéns A. Barreto, gostei. Já não suporte vir aqui e encontrar sempre esta tipa chamada Sílvia. Arre burra.

Se não gosta do que lê, que vá para o corporações onde falam do seu Deus.

Jack disse...

«Não usemos os nossos heróis para nos desculpar. Usemo-los como exemplos».

Caro António Barreto:

O meu grande exemplo vem do nosso ilustre primeiro, que nos demonstra que afinal a crise já passou. «Sócrates: Mini-férias com os filhos. Está hospedado num dos mais caros e requintados empreendimentos algarvios, o Pine Cliffs Resort, em Albufeira. Ao que o CM apurou, pediu para ficar instalado numa suite de luxo, com vista para o campo de golfe, para estar longe da agitação. Os preços neste alojamento rondam os mil euros, por dia.»

E perguntam-me os meus filhos porque não vamos nestes dias para o Algarve, tal como o José. Estou preocupado, tenho receio que fiquem traumatizados.

josé ricardo disse...

gostei do seu texto, António Barreto. no entanto, são daquelas peças que os visados (há sempre visados, não há?) apelidam de retórica. é que outros antes de si (sei lá... desde Antero de Quental, nas Conferências de 1875)entraram já por esse caminho. ninguém os ouve. ou melhor. ouvem, mas não escutam. talvez daqui a cem anos (vá lá...50!...) voltemos a ele.
um abraço,
josé ricardo

Alexandra disse...

É bom poder aplaudir um discurso.

Manuel Brás disse...

Pela honestidade
e contra a corrupção,
procuramos uma identidade
que nos devolva a elevação.

A punição do favorecimento
e o prémio pela dedicação,
são as bases do desenvolvimento
e da boa educação.

De exemplos estamos carenciados,
que esse gesto será criador,
porque assim seremos agraciados
por um espírito vencedor.

Alexandra disse...

E o link está aqui

www.beloguecivico.blogspot.com

Dinada disse...

Achei brilhante e comovente.

Parabéns por me fazer sentir bem por ser portuguesa e que ainda há esperança. Porque, 'espremido', o seu texto está cheio dela.

Graça

Anónimo disse...

Opiniões há muitas...

F. J. Branquinho de Almeida disse...

E carecas, também....

Rui Moreira disse...

Um grande discurso, de um grande português! De um grande político e de um grande homem do Norte!