quarta-feira, 1 de abril de 2009

O País de duas caras

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EM 2009, tudo parece correr mal. A crise económica e financeira é tremenda. A crise social cresce. A esperança e as expectativas estão no mais baixo. Emprego, consumo, bem-estar e projectos para o futuro: nada é seguro. Os pais receiam pelo futuro dos filhos. Os adultos fazem as contas antecipadas às reformas. Com três eleições seguidas, a situação não se apresenta favorável. Maldição? Pouca sorte? Quase apetece recorrer a causas irracionais! Ou será imperícia e auto-suficiência? Ou um pouco de tudo?
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Em 2005, tudo parecia auspicioso. A deserção de Guterres, a fuga de Durão Barroso e o episódio Santana Lopes tinham deixado uma sensação desagradável, que se terá talvez traduzido numa votação excepcional no Partido Socialista e em José Sócrates. Uma maioria inédita foi a recompensa inesperada e ainda imerecida que o novo Primeiro-ministro recebeu de um eleitorado cuja principal vontade era a de castigar outros. Tudo lhe corria de feição. As estrelas brilhavam...
.Aurora

NESSA ALTURA, a situação económica nacional e internacional não era das mais famosas, mas nada de preocupante. Era possível fazer um esforço, em especial para tratar das finanças públicas em estado precário. Com uma maioria absoluta, havia tempo. Há já três ou quatro anos que o país ameaçava estagnar ou, pelo menos, crescer menos que os parceiros europeus. Com tenacidade, seria possível. A primeira aparência de autoridade e firmeza encantou muitos eleitores. As sondagens deram, durante muito tempo, o benefício da dúvida e a expectativa. Até algum contentamento. Foi possível organizar um esforço colossal de contenção financeira. Não faltou alguma imaginação e, por vezes, um tom simples e directo. Escolas abertas mais tempo. Substituição compulsiva dos professores faltosos. Medicamentos mais baratos. Juízes a trabalhar mais. Professores avaliados. Resultados da Matemática a subir para médias nunca vistas. Mais subsídios sociais. Grandes obras. Decisões rápidas e simples. Inaugurações sucessivas. Uma correria de visitas ao país. Umas dezenas de actos de simplificação da burocracia conseguidos com êxito. Estreitamento de relações com países do petróleo, Líbia, Angola e Venezuela. Apoios faraónicos a certos grupos económicos, nomeadamente aqueles que se encostam ao Estado e que dele recebem a ajuda necessária aos grandes projectos. Novas leis para as universidades. As “Novas Oportunidades” criaram a possibilidade, para dezenas de milhares de trabalhadores e empregados, de acederem, com orgulho, a uma certificação escolar perdida ou adiada. Arranjou-se muito dinheiro europeu para a ciência e a tecnologia. Computadores aos molhos para as crianças e as escolas. Tudo parecia fácil. Mesmo certos trabalhos difíceis foram conseguidos no meio desta hiperactividade. As reformas do sistema de segurança social, em particular, deram espaço e tempo para respirar. Não foram bem explicadas, nem se soube logo qual seria o resultado a três ou quatro décadas de distância, mas conteve-se a ameaça da falência ou da bancarrota do Estado providência. A reforma do Código laboral, excessiva para uns, insuficiente para outros, fez-se num ponto de equilíbrio que oferecia ao menos um compasso de espera. Era firme a intenção de atacar até o mais difícil, a reforma do Estado, o que implicaria uma redução considerável do número de funcionários. A presidência portuguesa da União Europeia, preparada ao milímetro, correu bem. A encenação esteve perfeita. O Primeiro-ministro parecia ungido: líder europeu! Chegou a aprovar-se um Tratado de Lisboa, com que a capital ficaria gravada na Europa por muitas décadas. Merkel e Sarkozy gostaram de Sócrates e ajudaram. Consta que Brown e Zapatero também. Tudo corria bem ao Primeiro-ministro. Tinha sorte, mas parecia merecê-la. Resistiu à calúnia e às acusações pessoais. A estabilidade governamental, produto raro, foi razoável e superior a muitos outros governos. Vários ministros cumpriram o seu tempo, com relevo para Maria de Lurdes Rodrigues, Mário Lino, Mariano Gago, Alberto Costa, Silva Pereira, Vieira da Silva, Jaime Silva, Augusto Santos Silva, Nunes Correia e Manuel Pinho. É talvez um dos governos mais estáveis da democracia. Durante dois ou três anos, a cordialidade nas relações entre o Governo e o Presidente da República, permitiu uma cooperação eficaz. Uma oposição desastrada, desgastada pela dissensão interna, garantia tranquilidade ao governo. Os debates parlamentares, que Sócrates alargou como nunca antes, permitem repetidamente ao Primeiro-ministro mostrar o superior conhecimento dos dossiers, a sua agressividade vencedora e o seu sentido da oportunidade. O controlo financeiro, bem ou mal, pela despesa ou pela receita, produziu os seus frutos e, em meados de 2008, o défice atingia um dos seus pontos mais baixos de sempre. A inflação contida ajudava. O euro também. Aguentaram-se alguns grandes investimentos estrangeiros virados para a exportação e obtiveram-se promessas de novos sobretudo virados para o turismo. Barragens, estradas e parques eólicos vieram à cabeça das obras públicas, sem falar nos formidáveis e polémicos projectos do aeroporto e do comboio de alta velocidade. Tudo parecia simples e fácil: bastava decidir! Para muitos eleitores, foi ar fresco. Desmultiplicado em informação e propaganda, assessorado por agências profissionais e profissionais agenciados, o governo e o seu Primeiro-ministro mostravam-se seguros de si. Quando chegou a crise, no Outono de 2008, a famosa “folga” de que Sócrates se gabava, permitiu acudir rapidamente aos bancos e às empresas. Os patrões, alguns patrões, jubilaram. Há uma maneira benigna de fazer o balanço desta legislatura e deste mandato de governo.

Crepúsculo

MAS HÁ outra maneira. Mais actual. A crise internacional é terrível. As consequências, em Portugal, devastadoras. Nunca se saberá exactamente o que, nos efeitos sentidos no país, é a parte inevitável da crise externa e o que é da responsabilidade da sociedade e do governo. O certo é que a situação atingiu, na Primavera de 2009, níveis de dificuldade inimagináveis. O défice público prepara-se para alcançar máximos que julgávamos esquecidos. O endividamento externo do país, do Estado, das empresas e dos particulares, nunca foi tão grande e será, em 2009, maior do que o produto de um ano. O serviço da dívida salta para mais de dezoito mil milhões. Alguns dos principais investimentos estrangeiros, orientados para a exportação, estão em causa ou em crise. O turismo externo abrandou bruscamente. Os despedimentos crescem todos os dias. O subsídio de desemprego custa milhões de euros a mais, enquanto os sem trabalho não descontam para a Segurança, nem pagam IRS. A crise nas escolas atingiu o nervo e o tutano. Fizeram-se gigantescas manifestações de trabalhadores. Crises de corrupção evidente abalaram o Estado. Golpes de banqueiros e de bancários fizeram estremecer o sistema financeiro e a República. Não há crédito, nem investimento. A Bolsa não cessa de cair. Crescem as filas de esfomeados nas instituições de solidariedade, na Sopa dos Pobres e nos Bancos Alimentares. É preciso acudir a todos os lados, aos sapatos que eram o orgulho do Ministro, à cerâmica que era a vaidade da Nação e aos automóveis que eram o sinal da modernidade. Desenha-se um cerco dos grandes interesses, grupos e associações, ao Estado. Precisam dele e reciprocamente. Mas fica a sensação de que o governo está condicionado pelo dinheiro e pelos predadores. A Justiça parece não ter emenda. A criminalidade aumenta. A agricultura não melhora. A praga dos patrões que fecham as portas à noitinha, pela calada, volta a fazer das suas. O número de empresas que despedem por falta de encomendas aumenta diariamente. Descobrem-se empresas, pujantes há seis meses, mas que, com um só cliente, soçobram repentinamente. Verifica-se que o famoso Magalhães está cheio de erros e que, bem lá no fundo, não ajudará muito à literacia e ao êxito na escola. As impressionantes melhorias de notas escolares, sobretudo na Matemática, foram obtidas graças a verdadeiros truques de prestidigitação. Os créditos à habitação são renegociados, muitas casas entregues e os bancos procedem a leilões, ao mesmo tempo que tornam o crédito mais difícil. A banca está frágil. O governo é obrigado a intervir, o que nem sempre faz com clareza. Os recursos da “folga” desapareceram. O défice público saltou. No Parlamento, os dois maiores partidos não se entendem para acertar um plano nacional: nenhum quer verdadeiramente fazê-lo. A questão do estatuto dos Açores abriu brechas irreparáveis entre o governo e o Presidente da República. Para todos os efeitos, a boa cooperação ficou apenas aparente. A reforma do Estado, que exige meios, autoridade e tranquilidade, foi adiada. A partir de um momento, o governo sente que a realidade o ultrapassou: depois de ter acreditado na sua própria propaganda, remete agora para o exterior as causas de todos os males. Gastou de mais quando tinha pouco, gasta ainda mais quando já não tem. Para evitar a tragédia, despeja-se dinheiro nos dramas. O esforço de três anos de contenção salda-se em pouco mais que nada. A crise europeia é séria. O Tratado de Lisboa, orgulho nacional, entra num limbo incerto. O governo fica crispado. Os debates parlamentares transformam-se em berraria. Inventam-se “campanhas negras” contra o Primeiro-ministro, naquele que é um dos momentos mais desesperados de qualquer governo dos últimos tempos. Acusado na sua integridade pessoal e profissional, Sócrates defendeu-se mal e não esclareceu suficientemente. O congresso do seu partido foi uma espécie de Te Deum sem visão, nem alegria ou futuro: mais parecia um Requiem. Entrou sozinho e saiu solitário.

Quase

OS DOIS BALANÇOS que precedem parecem contraditórios. Um feito pelo governo, outro pela oposição. Tal não é o caso. Os dois balanços são verdadeiros. O que o primeiro reflecte conduziu ao que o segundo traduz. Mais uma vez, descobrimos a fragilidade deste pobre país que, de vez em quando, se fascina consigo próprio e acredita nos seus sonhos. Trabalha pouco, mal e é desorganizado, mas está sempre pronto a usufruir, com deleite, do que ainda não ganhou. E tem uma fé ilimitada na sua excelência. Tem este país enormes ímpetos, mas parece estar sempre a morrer na praia. Fez quase uma revolução industrial. É quase alfabeto. Tem quase uma democracia. Está quase integrado na Europa. Depois de ter feito uma das mais absurdas guerras do século XX, fez uma descolonização que apelidou de “exemplar” e uma revolução que designou como a “primeira da nova era”. Viu depois que a descolonização foi um desastre e que a revolução fora obsoleta, mais própria dos alfarrábios. Com a guerra, a revolução, a contra-revolução, a nacionalização da economia e a respectiva reprivatização, Portugal perdera talvez vinte ou trinta anos. E perdeu gente, recursos, energias, poupança e confiança. Tudo isso custa muito a recuperar. A Constituição, “a mais avançada do mundo”, teve de ser revista seis ou sete vezes e ainda hoje é uma vinheta fidedigna do subdesenvolvimento político e cultural. Mais tarde, com o paternalismo devido, foi o país qualificado de “aluno exemplar” da Europa. Além de aplicado, crescia e melhorava à vista de todos. Não durou muito. A partir do princípio do século XXI, ficou o mais atrasado, o mais lento e talvez o mais endividado. Crescemos menos do que a Espanha desde 1998 e menos do que a União Europeia desde 2001. Temos, na saúde, talvez o sector da vida colectiva que melhores indicadores revela, dos cuidados às mortalidades. Mas a educação, paixão proclamada pelos políticos provincianos, cresceu tanto em números, quanto piorou em qualidade e seriedade. E a justiça continua de rastos.

Neste ambiente de crise e crispação, é difícil prever os resultados das próximas eleições. E impossível imaginar o que delas virá de bom. Podem agravar a situação, com instabilidade e falta de condições para governar, como podem tudo deixar na mesma. Raramente como agora se sente a miopia ou a curta vista dos dirigentes políticos. Pela primeira vez, desde há algumas décadas, tem-se a impressão de que os dirigentes políticos não sabem o que nos espera, não têm um rumo, perderam a noção dos objectivos e da estratégia. Aflitos com a crise, multiplicam-se em ideias e sugestões, realistas ou não, mas sempre para o curto prazo. Sabe-se ao que vêm, mas não se sabe o que querem. Como consolidar e corrigir o Serviço Nacional de Saúde, um dos poucos sectores que consegue mostrar indicadores razoáveis, mas que dá sinais de fragilidade? Como orientar finalmente um movimento ou processo de reforma da justiça, que parece invulnerável a qualquer esforço e condenada à mediocridade? Como reconverter a educação, obcecada até hoje com o alargamento e a expansão do sistema, mas mergulhada na mais desesperante ineficácia e ausência de qualidade? Como inverter o declínio aparentemente irreversível do património construído e dos centros históricos das cidades? Como criar um novo ambiente de vida nas periferias urbanas, alfobres dos mais graves problemas da sociedade? Como desenhar uma nova política económica, industrial, agrícola e de serviços que encoraje a produção, que diversifique os clientes e que procure uma solidez inexistente? Como recriar uma política de investimentos menos interessada na obra vistosa e mais preocupada com o estímulo às empresas, à produtividade e às necessidades reais da população? Como e quando se vai poder pagar esta enorme dívida nacional que já hipotecou a próxima geração?
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Se as eleições ajudassem a responder a isto, teríamos um ano fausto.
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«Pública» de 29 de Março de 2009

3 comentários:

Diogo disse...

A «crise financeira»...


Jon Stewart, do Daily Show - Em vez de darem milhares de milhões aos bancos, porque não os dão aos consumidores para pagarem as suas dívidas?

Vídeo

joshua disse...

Espero bem que as eleições refresquem em reset o País e re-humildem os agentes politicos. Portugal carece de um banho lustral de VERDADE, LIMPIDEZ, espírito de serviço governamental.

Espero que os Partidos de Esquerda cresçam e se varra a horda de desonestos que se acantonou nas Faldas do Estado. Por eles começa e acaba o maremoto de desmoralização devorista dos nossos parcos recursos, como se Mesquita Machado pudesse ser multiplicado por milhares.

Interrompo por aqui o meu comentário. Vou tomar a minha Sopa de Pobre.

Anónimo disse...

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