UMA DAS RAZÕES pelas quais estou aqui é o Stuart Carvalhais. Nasceu em Vila Real. Foi foragido. Fugiu do colégio. Foi à aventura. Foi um inconformista. Foi rebelde. Usou a pena, o lápis, o pincel, a sátira e a troça. Criou um estilo. Foi jornalista. Escreveu em tudo o que pôde e soube. Trabalhou e viveu em Paris por um tempo. Foi emigrante. Tinha carácter. Gostava de beber. Com todas estas qualidades, incluindo a de ser Transmontano, é justo que este prémio seja uma homenagem.
A segunda razão é a Casa da Imprensa, nobre instituição da liberdade de expressão.
Outra razão é o Corte Inglês. Perdoem-me a publicidade. Mas tem de ser. O Corte Inglês foi, recentemente, um formidável contributo para a criação do gosto dos portugueses. Diminuiu o nosso provincianismo. Fez-nos viver melhor com a Espanha. Foi especial ver os portugueses, há alguns anos, chegarem devagar, verem com receio e olharem com um misto de desconfiança e desejo. Num ou dois anos, o armazém passou a fazer parte da cidade. Garanto que não me pagam para dizer o que digo.
Quando a Susana Santos, membro do Júri pelo Corte Inglês, me convidou, não podia dizer que não. Ainda por cima, em júri presidido pelo António, artista entre os maiores do nosso país. Ele não sabe, mas sou seu admirador há muitos anos.
Gostava de aproveitar esta oportunidade para vos fazer sermão. Sobre as virtudes do riso e da sátira. Mas não o farei. Rir é quase como amar: ou é ou não é, ou se faz ou não; mas não se fazem discursos sobre isso.
Mas deixem-me só dizer-vos que sinto que vivemos tempos estranhos. Parece que a liberdade é grande. Que a permissividade ou a licença invadiram o nosso quotidiano. Que não há limites para nada. Que se pode troçar de tudo. E de repente, com os cartoons dinamarqueses, com uns filmes recentes, com manifestações de massa contra desenhos satíricos e com a sucessão de processos por “abuso de liberdade de imprensa”, ficamos boquiabertos. Afinal, onde está a licença? Onde está o sentido de humor? Onde está a liberdade?
Na segunda metade do século XIX português, havia jornais exclusivamente dedicados à troça. Jornais em que se ria e fazia troça de tudo e de todos. Sobretudo dos importantes, já que fazer troça dos fracos é de mau gosto. Recordo uns cartoons e umas bandas desenhadas de Bordalo Pinheiro, nas quais, entre outras coisas, se dizia e mostrava que D. Luís, esse mesmo, o Rei de Portugal, ir pôr no prego a Coroa e o Ceptro, a fim de pagar umas noitadas nos cabarés de então, se não me engano o Ritz (não este...) e o Nina! Pode imaginar-se o que aconteceria se algo de parecido aparecesse hoje nos jornais?
Naquele tempo, escrevia-se sobre a política, o governo, o parlamento, os deputados e os importantes com mais liberdade do que hoje. É pena e triste verificar este paradoxo. Mas vale a pena interrogarmo-nos. Por que é assim? Há mesmo menos liberdade? Sinceramente vos digo: não creio que a liberdade seja menor. Mas as regras são diferentes. O que mudou foi essencialmente o âmbito. Hoje, vivemos em sociedade de massas, em sistema de consumo de massas, onde tudo ou quase é visível. Troçar do Rei diante das classes dirigentes era possível, ninguém ficava incomodado. Tratar os deputados de preguiçosos e inúteis, de tal modo que só eles e poucos mais ouvissem, era aceitável. Ultrapassar mesmo certos limites da vida familiar e privada dos poderosos, desde que seja de modo a que apenas as elites sejam testemunhas, também estava conforme às regras não escritas das sociedades estabelecidas. Rir dos padres e dos bispos, brincar com os generais e os polícias, escarnecer dos capitalistas e dos sindicalistas também era de bom tom. Desde que em circuito fechado. Hoje, infelizmente, troçar de alguém, fazer caricatura, rir de pessoa ou entidade respeitável, começa a ser perigoso. Porque tudo se faz à vista de todos. Deveria ser mais uma razão para dar asas à liberdade de expressão, mas parece que não. Nos tribunais, sobram os processos ditos de abuso de liberdade de imprensa, nos quais, na verdade, o que está em causa é mesmo a liberdade, não o abuso.
A democracia de massas, a sociedade política contemporânea, tem dificuldades em aceitar que o riso e a troça sejam formas superiores de expressão. As elites portuguesas, mal habituadas à troça, têm de compreender que se pode e deve troçar de tudo, sobretudo das coisas sérias. Se querem fazer um teste, tentem, junto de alguém que diz ter muito sentido de humor, meterem-se com ele. Logo verão. Há muita gente que só tem sentido de humor para os outros, contra os outros, sobre os outros. Isso não é de facto sentido de humor. Escárnio, talvez, mas não humor. As elites portuguesas precisam de aprender que a liberdade de rir é indispensável à liberdade. E todos necessitamos de perceber melhor que a troça é subversiva na exacta medida em que se opõe a uma das mais odiosas formas de opressão e que se traduz nesta horrenda frase: “o respeitinho é muito bonito”! Não, senhoras e senhores! O respeitinho é muito feio!
É com enorme prazer e honra que me associo à entrega do Grande Prémio de ilustração a André Carrilho. Nasceu num ano de boa colheita, 1974. É um dos maiores e mais internacionais artistas portugueses do género. Reparem como criou um estilo próprio. Notem como é excelente numa das principais exigências da arte: a de concentrar toda a verosimilhança numa alusão, num traço, alguns dirão na essência. E mais não digo, a não ser que admiro a sua obra e o felicito.
Tem um defeito: não é de Vila Real...
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A segunda razão é a Casa da Imprensa, nobre instituição da liberdade de expressão.
Outra razão é o Corte Inglês. Perdoem-me a publicidade. Mas tem de ser. O Corte Inglês foi, recentemente, um formidável contributo para a criação do gosto dos portugueses. Diminuiu o nosso provincianismo. Fez-nos viver melhor com a Espanha. Foi especial ver os portugueses, há alguns anos, chegarem devagar, verem com receio e olharem com um misto de desconfiança e desejo. Num ou dois anos, o armazém passou a fazer parte da cidade. Garanto que não me pagam para dizer o que digo.
Quando a Susana Santos, membro do Júri pelo Corte Inglês, me convidou, não podia dizer que não. Ainda por cima, em júri presidido pelo António, artista entre os maiores do nosso país. Ele não sabe, mas sou seu admirador há muitos anos.
Gostava de aproveitar esta oportunidade para vos fazer sermão. Sobre as virtudes do riso e da sátira. Mas não o farei. Rir é quase como amar: ou é ou não é, ou se faz ou não; mas não se fazem discursos sobre isso.
Mas deixem-me só dizer-vos que sinto que vivemos tempos estranhos. Parece que a liberdade é grande. Que a permissividade ou a licença invadiram o nosso quotidiano. Que não há limites para nada. Que se pode troçar de tudo. E de repente, com os cartoons dinamarqueses, com uns filmes recentes, com manifestações de massa contra desenhos satíricos e com a sucessão de processos por “abuso de liberdade de imprensa”, ficamos boquiabertos. Afinal, onde está a licença? Onde está o sentido de humor? Onde está a liberdade?
Na segunda metade do século XIX português, havia jornais exclusivamente dedicados à troça. Jornais em que se ria e fazia troça de tudo e de todos. Sobretudo dos importantes, já que fazer troça dos fracos é de mau gosto. Recordo uns cartoons e umas bandas desenhadas de Bordalo Pinheiro, nas quais, entre outras coisas, se dizia e mostrava que D. Luís, esse mesmo, o Rei de Portugal, ir pôr no prego a Coroa e o Ceptro, a fim de pagar umas noitadas nos cabarés de então, se não me engano o Ritz (não este...) e o Nina! Pode imaginar-se o que aconteceria se algo de parecido aparecesse hoje nos jornais?
Naquele tempo, escrevia-se sobre a política, o governo, o parlamento, os deputados e os importantes com mais liberdade do que hoje. É pena e triste verificar este paradoxo. Mas vale a pena interrogarmo-nos. Por que é assim? Há mesmo menos liberdade? Sinceramente vos digo: não creio que a liberdade seja menor. Mas as regras são diferentes. O que mudou foi essencialmente o âmbito. Hoje, vivemos em sociedade de massas, em sistema de consumo de massas, onde tudo ou quase é visível. Troçar do Rei diante das classes dirigentes era possível, ninguém ficava incomodado. Tratar os deputados de preguiçosos e inúteis, de tal modo que só eles e poucos mais ouvissem, era aceitável. Ultrapassar mesmo certos limites da vida familiar e privada dos poderosos, desde que seja de modo a que apenas as elites sejam testemunhas, também estava conforme às regras não escritas das sociedades estabelecidas. Rir dos padres e dos bispos, brincar com os generais e os polícias, escarnecer dos capitalistas e dos sindicalistas também era de bom tom. Desde que em circuito fechado. Hoje, infelizmente, troçar de alguém, fazer caricatura, rir de pessoa ou entidade respeitável, começa a ser perigoso. Porque tudo se faz à vista de todos. Deveria ser mais uma razão para dar asas à liberdade de expressão, mas parece que não. Nos tribunais, sobram os processos ditos de abuso de liberdade de imprensa, nos quais, na verdade, o que está em causa é mesmo a liberdade, não o abuso.
A democracia de massas, a sociedade política contemporânea, tem dificuldades em aceitar que o riso e a troça sejam formas superiores de expressão. As elites portuguesas, mal habituadas à troça, têm de compreender que se pode e deve troçar de tudo, sobretudo das coisas sérias. Se querem fazer um teste, tentem, junto de alguém que diz ter muito sentido de humor, meterem-se com ele. Logo verão. Há muita gente que só tem sentido de humor para os outros, contra os outros, sobre os outros. Isso não é de facto sentido de humor. Escárnio, talvez, mas não humor. As elites portuguesas precisam de aprender que a liberdade de rir é indispensável à liberdade. E todos necessitamos de perceber melhor que a troça é subversiva na exacta medida em que se opõe a uma das mais odiosas formas de opressão e que se traduz nesta horrenda frase: “o respeitinho é muito bonito”! Não, senhoras e senhores! O respeitinho é muito feio!
É com enorme prazer e honra que me associo à entrega do Grande Prémio de ilustração a André Carrilho. Nasceu num ano de boa colheita, 1974. É um dos maiores e mais internacionais artistas portugueses do género. Reparem como criou um estilo próprio. Notem como é excelente numa das principais exigências da arte: a de concentrar toda a verosimilhança numa alusão, num traço, alguns dirão na essência. E mais não digo, a não ser que admiro a sua obra e o felicito.
Tem um defeito: não é de Vila Real...
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Corte Inglês Lisboa, 22 de Junho de 2006
3 comentários:
Excelente, artigo, como sempre.
Já coloquei excertos no meu novel blog
http://www.cidadaoscontracorrupcao.blogspot.com/
Só gostava de lhe agradecer por este belíssimo artigo sobre este pequeno, grande fenómeno que foi Stuart. Eu sou apenas mais um jovem estudante que frequenta o mestrado de estudos europeus na velha e enriquecedora faculdade de letras da universidade de Coimbra. Não se pode continuar no rumo do conformismo Stuart tanto como você são exemplos a seguir para a minha geração que cada vez mais me parece muda. Mais uma vez obrigado.
João Guardado
Imperdoável não ter feito referência a Queluz quando escreveu sobre Stuart Carvalhais. Aliás, suspeito muito que essa imagem seja de Stuart em Queluz.
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