DUAS TEIMOSIAS. Dois fanatismos. Nos actuais termos, a guerra das escolas não tem saída. Mesmo que esta ministra consiga, pela lei da força, uma qualquer vantagem, terá, a prazo, uma grande derrota. Os professores, de futuro, não farão o que ela hoje pretende. Aliás, muitos já o não fazem. O próximo ministro da educação, até do mesmo partido, terá necessidade de alterar muita coisa e procurar um novo pacto. Se for de outro partido, a primeira coisa que fará será alterar este quadro legal e as práticas que são hoje impostas. Nas próximas eleições, poderá ver-se na campanha e nos respectivos programas: todos, com excepção do PS, vão sugerir a revogação das actuais leis e os mais imaginativos acabarão por propor um novo sistema de avaliação. O próprio PS fará uns “ajustamentos”...
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Não se trata apenas de teimosia. Muito menos da força da razão. Há muito mais do que isso. A começar pela ideia de imagem, um dos maiores venenos da política contemporânea. Não se pode perder a face. Não se desiste. Não se devem reconhecer erros maiores. Não é bem visto recuar. A insistência, mesmo no erro, é sinal de carácter. Estes são alguns dos sentimentos que passam pela cabeça dos governantes e dos dirigentes dos sindicatos. Mas há mais. O governo recorda com especial carinho o episódio de Souselas. Já ninguém se lembra, mas Sócrates não esquece. Foi essa história menor da política portuguesa que criou Sócrates e lhe ofereceu um trampolim para o lugar que hoje ocupa. Nunca ceder, ir até ao fim, são imperativos.
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Mas a superfície não explica tudo. Estas batalhas não se limitam a estilos e imagens. Está em curso uma luta entre três poderes. Luta verdadeira, de cujo resultado vai depender o futuro da educação e da escola. Quais são esses poderes? Em primeiro lugar, o do ministério (ou do governo), em tentativa de reforço e consolidação. Segundo, o dos professores, em queda. Terceiro, o da escola, largamente fictício.
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O governo quer centralizar ainda mais o sistema educativo, deseja reafirmar o seu poder sobre a escola e sobre os professores e pretende uniformizar regras e critérios. Procura manter as autarquias sob a sua alçada e transformar os professores em verdadeiro regimento fabril ou militar. Entende que, obedientes, as escolas e os professores darão melhor contributo para as suas estatísticas. De passagem, tem outros objectivos, eventualmente mais nobres: poupar dinheiro e obrigar os professores a trabalhar mais.
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Os professores, tanto “os movimentos” como os sindicatos, não querem ser esbulhados da enorme parcela de poder que as reformas lhes deram durante as últimas décadas. Como não querem ser obrigados a seguir as ordens regimentais e as enxurradas de directivas que o ministério lhes envia regularmente. Não querem ver as suas carreiras transformadas em função burocrática e automática. Não desejam ser avaliados. Não querem perder os privilégios que os sucessivos governos e as modas pedagógicas lhes conferiram. Não aceitam ser, além de parte interessada, juízes, fiscais e polícias em nome do ministério que abominam. E não querem ser cúmplices desta nova ordem burocrática que se anuncia.
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Quanto às escolas, coitadas! Não têm porta-voz, praticamente não existem como instituição. Não cultivam espírito de corpo. Não têm meios. Não têm relações verdadeiras e genuínas com os pais, nem com as comunidades. Não são entidades autónomas, com identidade e carácter. São fortalezas dos professores ou repartições do ministério. Não têm nada a perder com esta guerra, pela simples razão de que nada têm.
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A ministra tem algumas razões. Mais trabalho, por parte de alguns que folgam. Um qualquer princípio de avaliação. Poupar recursos e dinheiro. E impedir que todos os professores tenham sempre as classificações de muito bom e excelente, pragas conhecidas em toda a função pública. Mas o Inferno está no pormenor. Como sempre. Os jornais já publicaram mil pormenores sobre o sistema de avaliação, dos formulários às regras e procedimentos. O escárnio é constante. A ministra queixa-se de que o seu sábio sistema foi ridicularizado! É verdade. Mas não merece menos do que isso. Além de absurdo e inútil, este exercício parece uma punição, a fazer lembrar os castigos infligidos, por praxe sádica ou despotismo, nas forças armadas de muitos países. Não é só este sistema que está errado: é o princípio mesmo de uma avaliação centralizada, de âmbito nacional e uniforme.
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A avaliação ministerial, burocrática, formal e pseudocientífica é um enorme erro. A grande tradição centralista, integrada e unificada da educação pública em Portugal é responsável pela mediocridade de resultados e pelo desperdício de enormes recursos financeiros vertidos, desde há trinta anos, por cima do sistema, sem resultados proporcionais. É essa tradição que é responsável pela ausência de espírito comunitário nas nossas escolas. Pelo desdém que as autarquias dedicam às escolas. Pela apatia e impotência dos pais. Pelo facto de tantos professores desistirem do orgulho nas suas carreiras e do brio no exercício da sua profissão. É provável que muitos não queiram trabalhar quanto devem ou que tenham outros interesses. Como em todas as profissões. Mas o seu sentimento de dignidade ferida parece genuíno. E é compreensível.
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São quase misteriosas as razões pelas quais não se permite que sejam as escolas, os seus directores e os seus conselhos de direcção, ajudados pela comunidade e pelos pais, a avaliar a escola no seu conjunto. E não se deixam os responsáveis das escolas observar e avaliar o desempenho profissional dos docentes. A República, o Estado Novo, a democracia, o socialismo e o comunismo coligam-se facilmente para manter a escola sob o punho do ministério, cuja proverbial incompetência é uma das raras constantes na história do século XX. Entre o ministério e o sindicato, parece haver terra queimada, campo de batalha. Não terão percebido os professores, desta vez, que a autoridade do ministério é o pior que lhes pode acontecer? Apetece dizer que chegou a hora de sair deste impasse, de quebrar a tenaz dos dois fanatismos. Uma visão optimista levar-nos-ia a pensar que, finalmente, os professores perceberam que a autoridade da escola pode ser a solução. Dá vontade de acreditar que este é o momento de deixar de escolher entre a guerra e a peste. Mas a esperança numa solução sensata e num esforço de imaginação criativa, em vésperas de eleições, é uma doença grave. Livremo-nos, ao menos, dessa.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Novembro de 2008 .
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Não se trata apenas de teimosia. Muito menos da força da razão. Há muito mais do que isso. A começar pela ideia de imagem, um dos maiores venenos da política contemporânea. Não se pode perder a face. Não se desiste. Não se devem reconhecer erros maiores. Não é bem visto recuar. A insistência, mesmo no erro, é sinal de carácter. Estes são alguns dos sentimentos que passam pela cabeça dos governantes e dos dirigentes dos sindicatos. Mas há mais. O governo recorda com especial carinho o episódio de Souselas. Já ninguém se lembra, mas Sócrates não esquece. Foi essa história menor da política portuguesa que criou Sócrates e lhe ofereceu um trampolim para o lugar que hoje ocupa. Nunca ceder, ir até ao fim, são imperativos.
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Mas a superfície não explica tudo. Estas batalhas não se limitam a estilos e imagens. Está em curso uma luta entre três poderes. Luta verdadeira, de cujo resultado vai depender o futuro da educação e da escola. Quais são esses poderes? Em primeiro lugar, o do ministério (ou do governo), em tentativa de reforço e consolidação. Segundo, o dos professores, em queda. Terceiro, o da escola, largamente fictício.
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O governo quer centralizar ainda mais o sistema educativo, deseja reafirmar o seu poder sobre a escola e sobre os professores e pretende uniformizar regras e critérios. Procura manter as autarquias sob a sua alçada e transformar os professores em verdadeiro regimento fabril ou militar. Entende que, obedientes, as escolas e os professores darão melhor contributo para as suas estatísticas. De passagem, tem outros objectivos, eventualmente mais nobres: poupar dinheiro e obrigar os professores a trabalhar mais.
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Os professores, tanto “os movimentos” como os sindicatos, não querem ser esbulhados da enorme parcela de poder que as reformas lhes deram durante as últimas décadas. Como não querem ser obrigados a seguir as ordens regimentais e as enxurradas de directivas que o ministério lhes envia regularmente. Não querem ver as suas carreiras transformadas em função burocrática e automática. Não desejam ser avaliados. Não querem perder os privilégios que os sucessivos governos e as modas pedagógicas lhes conferiram. Não aceitam ser, além de parte interessada, juízes, fiscais e polícias em nome do ministério que abominam. E não querem ser cúmplices desta nova ordem burocrática que se anuncia.
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Quanto às escolas, coitadas! Não têm porta-voz, praticamente não existem como instituição. Não cultivam espírito de corpo. Não têm meios. Não têm relações verdadeiras e genuínas com os pais, nem com as comunidades. Não são entidades autónomas, com identidade e carácter. São fortalezas dos professores ou repartições do ministério. Não têm nada a perder com esta guerra, pela simples razão de que nada têm.
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A ministra tem algumas razões. Mais trabalho, por parte de alguns que folgam. Um qualquer princípio de avaliação. Poupar recursos e dinheiro. E impedir que todos os professores tenham sempre as classificações de muito bom e excelente, pragas conhecidas em toda a função pública. Mas o Inferno está no pormenor. Como sempre. Os jornais já publicaram mil pormenores sobre o sistema de avaliação, dos formulários às regras e procedimentos. O escárnio é constante. A ministra queixa-se de que o seu sábio sistema foi ridicularizado! É verdade. Mas não merece menos do que isso. Além de absurdo e inútil, este exercício parece uma punição, a fazer lembrar os castigos infligidos, por praxe sádica ou despotismo, nas forças armadas de muitos países. Não é só este sistema que está errado: é o princípio mesmo de uma avaliação centralizada, de âmbito nacional e uniforme.
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A avaliação ministerial, burocrática, formal e pseudocientífica é um enorme erro. A grande tradição centralista, integrada e unificada da educação pública em Portugal é responsável pela mediocridade de resultados e pelo desperdício de enormes recursos financeiros vertidos, desde há trinta anos, por cima do sistema, sem resultados proporcionais. É essa tradição que é responsável pela ausência de espírito comunitário nas nossas escolas. Pelo desdém que as autarquias dedicam às escolas. Pela apatia e impotência dos pais. Pelo facto de tantos professores desistirem do orgulho nas suas carreiras e do brio no exercício da sua profissão. É provável que muitos não queiram trabalhar quanto devem ou que tenham outros interesses. Como em todas as profissões. Mas o seu sentimento de dignidade ferida parece genuíno. E é compreensível.
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São quase misteriosas as razões pelas quais não se permite que sejam as escolas, os seus directores e os seus conselhos de direcção, ajudados pela comunidade e pelos pais, a avaliar a escola no seu conjunto. E não se deixam os responsáveis das escolas observar e avaliar o desempenho profissional dos docentes. A República, o Estado Novo, a democracia, o socialismo e o comunismo coligam-se facilmente para manter a escola sob o punho do ministério, cuja proverbial incompetência é uma das raras constantes na história do século XX. Entre o ministério e o sindicato, parece haver terra queimada, campo de batalha. Não terão percebido os professores, desta vez, que a autoridade do ministério é o pior que lhes pode acontecer? Apetece dizer que chegou a hora de sair deste impasse, de quebrar a tenaz dos dois fanatismos. Uma visão optimista levar-nos-ia a pensar que, finalmente, os professores perceberam que a autoridade da escola pode ser a solução. Dá vontade de acreditar que este é o momento de deixar de escolher entre a guerra e a peste. Mas a esperança numa solução sensata e num esforço de imaginação criativa, em vésperas de eleições, é uma doença grave. Livremo-nos, ao menos, dessa.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 16 de Novembro de 2008 .
NOTA: Estas crónicas são também publicadas no Sorumbático
7 comentários:
O António Barreto tem razão em muitas coisas que diz sobre a educação em Portugal. Mas não em todas.
2 exemplos.
1. Devia ter mais cuidado com as generalizações: dizer "os professores" significa dizer "todos os professores"; por isso, "os professores não desejam ser avaliados" significa dizer "nenhum professor deseja ser avaliado". O que é obviamente falso.
2. Quando critica o centralismo do ME, e defende a atribuição de responsabilidades na educação às autarquias e uma maior autonomia das escolas, tem certamente razão. No entanto, tem sobre o assunto uma visão demasiado genérica e idílica - uma visão ideológica (não no sentido de pertencer a esta ou aquela ideologia política, mas no sentido de ser uma crença a priori e independente dos factos, e levando a "filtrar" esses factos ao longo da análise). Nunca ouviu falar do caciquismo que reina em muitas autarquias? Nunca ouviu falar na atribuição de bons horários aos professores amigos de quem manda numa escola? Se a gestão das escolas e a própria avaliação dos professores se fizer apenas ao nível da comunidade local não acha que o "amiguismo" e os acertos de contas serão muito frequentes?
Para que as virtualidades da descentralização e da autonomia das escolas se sobreponham a esses problemas óbvios e mais do que previsíveis seria necessário que existisse um sistema de exames nacionais exigentes e frequentes e avaliações externas das escolas (feitas pelo ME mas também por entidades independentes: Universidades, talvez empresas). Se não se defender explicitamente a necessidade dessas formas de avaliação externa, a defesa de uma maior descentralização será na prática do caciquismo e do amiguismo.
Se este modelo de avaliação fosse introduzido com prudência e, portanto, sem pressas até que teria algumas virtudes, uma vez que é realizado nas escolas, com instrumentos definidos pelas mesmas, bastando um Bom para se progredir na carreira. O verdadeiro problema que desencadeou a contestação não está neste ou noutro modelo de avaliação, mas sim na alteração ao Estatuto da Carreira Docente, a montante, que veio dividir hierarquicamente a carreira em duas, titulares e professores. Digamos que a suposta burocracia deste modelo de avaliação foi a cereja no bolo da indignação docente.Por isso, nas manifs, quem tivesse olhos para ver e não apenas para olhar, verificaria que não se estava ali apenas a exigir a suspensão deste modelo de avaliação, mas, na verdade, a exigir a total revogação das alterações ao referido Estatuto. Ou seja, deixar tudo na mesma.
Mas, como acima se disse, é necessário ter cuidado com as generalizações, não só em relação aos professores, mas também em relação às escolas. E, sobre estas, é importante que se saiba que muitas delas, na procura da certificação de qualidade, têm já implantado o seu sistema de auto-avaliação,de acordo com a lei,sem falar da avaliação externa das escolas que, ao que parece,também veio para ficar.
É meu o último comentário.
Caro António Barreto.
A sua análise sobre a educação é bastante lúcida; mesmo, e sobretudo, no que concerne ao que está errado entre a classe docente.
Tem razão quando afirma que a ministra tem razão nalgumas coisas, sobretudo quando ela se queixa de que as escolas complicam as suas directrizes. É assim, de facto...
A mim, como a muitos outros que nela acreditaram, esta ministra foi a que mais me desiludiu, precisamente porque foi a que mais expectativas criou...Cheguei, genuinamente, a acreditar que esta ministra teria lucidez, clarividência e tenacidade para quebrar com a orgânica do ministério. Infelizmente, cedeu, também ela, à política das aparências e do facilitismo, com a sua máxima expressão na vergonhosa diminuição do grau de dificuldade dos exames nacionais.
Ultimamente, tenho-me lembrado de um episódio da saudosa série "Sim, sr. primeiro-ministro". Nesse episódio, sobre os problemas do ensino na Grã-Bretanha, o primeiro-ministro chegava à conclusão que para resolver os ditos problemas, bastaria acabar com o ministério da Educação! Claro que o seu manipulador secretário acabou por o convencer do contrário, a bem do "funcionalismo público"...
Creio que o principal problema da ministra é não perceber que a nossa "guerra" não é com ela, mas sim com anos de políticas erradas e "burocratizantes" do ministério da Educação...Esta avaliação foi apenas a "gota que fez transbordar o copo".
Por tudo isto não estou optimista. Esta avaliação e esta ministra estão a prazo. Mas o "monstro", o verdadeiro "monstro", vai continuar a debitar decretos-lei atrás de decretos-lei do mais fundo da 5 de Outubro...
Pedro Teixeira Santos, professor do Quadro de Zona Pedagógica, do Grupo 230 (Ciências/Matemática), Agrupamento Vertical de Escolas Dr. Garcia Domingues (Silves)
P.S. - Tomei a liberdade de alongar este desabafo via e-mail.
A questão maior que opõe realmente os professores ao ministério não é o sistema de avaliação de desempenho. A questão primordial é a distribuição normal, aquela que afirma, sem que possa ser cientificamente contestada, que num universo de cento e vinte mil indivíduos, mesmo professores, nem todos são excelentes ou bons. Também há maus professores, professores medíocres e muitos regulares.
Leio hoje no Público on line que a ministra está disposta a simplificar o processo. Admitamos que essa redução simplifica o sistema ao ponto de nada já ter a ver com o original. Nesse mesmo dia, emergirá o problema maior: as quotas.
E depois as aulas de substituição.
E depois as horas que têm de estar na escola e anteriormente não tinham.
E...
E...
E...
AJJardim, Conde da Madeira e Porto Santo, que não quer saber de estatísticas e tem quem lhe pague as bondades já declarou que no seu território os professores são todos bons.
Um dia destes proclamará a independência. Quando o Orçamento de Estado estiver tão esticado que não sobre mais nada para satisfazer AJJ, o magnânimo.
A posição da sra Ministra sobre a avalição dos professores, que o sr. tanto parece criticar, faz lembrar a "imposição" da famosa lei da reforma agrária, a chamada Lei Barreto. Ainda se lembra? Quem era mesmo o Ministro da Agricultura nesse tempo? humm...
O então ministro da Agricultura, António Barreto, ouviu os líderes das Unidades Colectivas de Produção, os agrários donos das terras e os rendeiros - e todos chegaram a consenso. A Lei Barreto não foi imposta: tratou-se de uma reforma que não foi contra ninguém em particular nem contra nenhum grupo de interesses instalado. Barreto a ministro da Educação, já!
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