domingo, 2 de novembro de 2008

O milagre

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O ANO LECTIVO DE 2007/2008 ficará para sempre na história da educação em Portugal. Nunca saberemos exactamente o que se passou. Mas a verdade é que ocorreu um milagre nos resultados dos exames (do básico e do secundário) e na avaliação das escolas e dos estudantes. Centenas e centenas de escolas viram as suas médias saltar, é esse o preciso termo, de negativas e medíocres níveis para positivas e gloriosos escalões. Mais de 400 escolas que hoje exibem médias positivas em todos os exames nacionais encontravam-se há um ano na lista negra das negativas. Considerando as vinte disciplinas do secundário com mais inscritos, mais de 82 por cento das escolas têm agora médias positivas. A média nacional dos exames de matemática, negativa há um ano, é agora de mais de 12 valores! Há um ano, apenas 200 escolas conseguiam média positiva a matemática. Agora, são mais de mil! Mais de 90 por cento das escolas têm agora média positiva a matemática. Há escolas com médias a matemática de 18 valores! No conjunto das duas disciplinas, Matemática e Português, 97 por cento obtiveram média positiva! Nas oito disciplinas principais do secundário, a média positiva foi atingida por 87 por cento das escolas!
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As médias da matemática, crónico cancro do sistema, eram o quadro da desonra de uma população manifestamente incapaz de contar. Pois bem! São hoje o certificado de honra e talento de um povo para o qual as equações e as derivadas deixaram de ser mistério. É possível que muitas escolas portuguesas, para já não dizer a média de todas, se situem hoje entre as mais competentes do mundo em matemática!
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Muita gente ficou feliz. Professores gratificados, estudantes recompensados e pais descansados podem comemorar o feito. Nas universidades, esperam-se agora massas de alunos motivados e qualificados. Nos empregos, sobretudo na banca, nos seguros, nas empresas de engenharia e nos laboratórios científicos, esfregam-se as mãos na expectativa de receber, dentro de poucos anos, profissionais extraordinariamente preparados para as contas, o cálculo e o raciocínio abstracto. Nos jornais e nas televisões, onde os jornalistas confundem milhares com milhões e não sabem calcular uma percentagem ou uma taxa de variação, teremos, brevemente, dados exemplares e contas limpas. Começa uma nova era!
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O problema é que ninguém acredita! Os interessados não escondem um sorriso matreiro! Os outros, com sobrolho enrugado, desconfiam. Como foi possível? Tanto melhoramento em tão pouco tempo? De um ano para o outro? Melhores professores? Melhores alunos? Novos métodos? Programas renovados? Mais tempo de aulas? Manuais mais bem elaborados? Nova organização curricular? Professores mais empenhados e disponíveis para passar mais horas a ensinar matemática? Mais explicações privadas? Todas estas perguntas têm necessariamente resposta negativa. Nada disso era possível num ano, nem para a maioria dos alunos e das famílias. Quem desconfia tem razão. E só encontra três explicações: os exames foram incompreensivelmente fáceis; as regras de avaliação foram extraordinariamente benevolentes; ou houve ingerência administrativa para corrigir as notas. O ministério e o governo não escapam a estas hipóteses e, se estivessem realmente interessados em conhecer o que se passa na escola, teriam impedido este bodo, não se teriam mostrado beatamente satisfeitos e teriam já procurado saber as razões do milagre. A não ser, evidentemente, que o tenham preparado e encenado.
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Se, até há dias, era indispensável estudar as causas e as consequências dos maus resultados em matemática (assim como do português, da física e da química), agora passa a ser urgente estudar as causas e as consequências deste milagre. Teria sido essa, aliás, a atitude honesta de um ministério e de um governo preocupados com a educação dos cidadãos. Se ambos são estranhos a esta hipertrofia de resultados, se nenhum teve qualquer influência no processo de avaliação e se ambos estão de boa-fé, então teríamos uma decisão oficial que, de imediato, se propusesse saber as razões e os fundamentos de tal facto. Ninguém duvida de que educar mal é tão pernicioso quanto não educar. Em certo sentido, é pior. Preparar profissionais, técnicos, cientistas e professores num clima de complacência e facilidade pode ter resultados desastrosos. As expectativas criadas não são satisfeitas. As capacidades presumidas são falseadas. O desperdício social e económico é enorme. E é criada uma situação fictícia onde fazer de conta se transforma em virtude. Para tranquilidade dos contemporâneos e para desgraça das gerações futuras.
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A publicação de todos os resultados nacionais, seguida da elaboração dos rankings respectivos, transformou-se num hábito, em breve será uma tradição. Ainda hoje há erros de avaliação, de apuramento e de classificação, além de que alguns tentam distorcer os resultados para dramatizar o panorama. Com o tempo, as coisas vão melhorando. Mas, depois de resistências de toda a ordem, a começar pelas de ministros, funcionários e professores, o gesto anual faz parte do calendário educativo. Tem tido consequências positivas. Há escolas, autarquias, professores e pais realmente preocupados com a percepção que todos temos deles. Querem melhorar e querem que se saiba. Não desejam ser conhecidos como as ovelhas ranhosas. Mas o efeito mais perverso foi inesperado. Tudo leva a crer que este milagre é um resultado colateral da abertura de informação. Se os resultados continuassem secretos, talvez os governantes não se tivessem ocupado do assunto. O próximo mistério é este: como conseguirão o governo e o ministério convencer a comunidade internacional (já que, pelos vistos, a nacional não lhes interessa) da justeza e da bondade destes resultados?
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AUSENTE de Portugal durante duas semanas, não acompanhei directamente os episódios mais importantes na controvérsia entre o governo, o Parlamento, o governo dos Açores e o Presidente da República. Mas a leitura dos jornais atrasados é esclarecedora. O Presidente da República tem razão. A sua interpretação das normas constitucionais é adequada e legítima. Se ele deixa fazer, o governo fará. Creio, aliás, que uma das razões que explica o gesto do governo e do Partido Socialista é mesmo essa: saber até onde podem ir. Se podem neste caso, poderão também noutros. Não só neutralizam os poderes do Presidente, como alteram o equilíbrio constitucional. Mais ainda: se percebem que o Presidente, para evitar conflitos, é complacente, então desdobrar-se-ão em gestos do mesmo tipo. Parece que o governo e o PS não perceberam com quem se meteram.
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«Retrato da Semana» - «Público» de 2 de Novembro de 2008
Esta e outras crónicas do autor estão também no blogue Sorumbático

9 comentários:

Albino Salgueiro disse...

A ministra manda, o ministério obedece, os miúdos adoram, os papás agradecem...

Os outros "comentadores e alguns perigosoa jornalistas não alinhados", é que não percebem nada...

Anónimo disse...

Não é a ministra que manda, quem manda é Sr. Pinto de Sousa, ele é que define a política do governo.

Anónimo disse...

Pois é nada disto corresponde à verdade, são ordens e pressões do Sr. Sócrates e de Maria de Lurdes. Perguntem a um aluno do 8º ano quanto é 2/3 de 6 por exemplo, e tirem as conclusões. A maioria não faz ideia como esta operação "difícil" se faz!!!
O ensino, a escola está fora de controlo, isto tudo começa na educação primária. Por cá os simples exercícios de caligrafia, com cadernos de linhas são proibidos, para não traumatizar! Depois surgem as reuniões porque uma criancinha de 3 anos dava pontapés à professora, deitava-lhe a língua de fora e dizia-lhe tu não mandas em mim! Assim está a escola em Portugal... Este 1º Ministro e esta ministra da educação apenas se preocupam com a imagem e sabem que o que de verdade se passa nas escolas, a maioria das pessoas não fazem ideia e assim continuam a manipular a informação para ficarem o melhor possível na fotografia e cada vez é mais fácil neste país acrítico e amedrontado em que vivemos.

Anónimo disse...

A educação actualmente é só para alguns. Para os que podem pagar por ela.
Os jovens portugueses que querem criar familia e ter condições económicas para isso, emigram.
O estado da educação em Portugal é só mais um ponto a favor para estes não voltarem nos próximos 20 anos.

Vejo pouco futuro num país assim. Até os imigrantes de leste que cá vivem criam escolas para que os seus filhos tenham uma educação decente. Estes filhos é que vão ter emprego no futuro, não os nossos que não aprenderam, não tem formação, e disciplina nem sabem o que é. (mas vão ter diplomas)

lia disse...

Posso comentar a avaliação escolar com a minha experiência: terminei o ensino secundário em 1993. Nesse ano já não haviam as malfadadas PGAs (prova geral de acesso, aquela do Português e da cultura). Fiz prova de aferição a matemática e provas específicas de matemática e geometria descritiva. Era aluna de 14. A minha única esperança de entrada no curso que queria era ter uma excelente nota nas específicas, que contavam 50% da nota final de entrada. A prova de aferição de matemática veio com erros de enunciado, o que levou o governo a aumentar a todos os alunos a cotação das questões com erros. Houve vários alunos na minha escola, pública do interior, a ter por essa via nota de 110%. A específica de matemática foi uma desgraça para mim. Saí do anfiteatro desanimadíssima porque a específica tinha sido tão básica que todos os alunos íam ter excelentes notas e portanto, mesmo que eu também tivesse boa nota, de nada me serviria na concorrência de entrada na faculdade (um argumento que se ouve agora dos coitados dos bons alunos). Estranhamente, apenas eu tive 95%, a nota mais alta do distrito. Na altura ninguém foi comparar o enunciado desse meu ano com os dos anos anteriores, bem mais complexos. Atenção que eu não sou nenhuma carola, nem consegui acabar o curso (que aliás nunca pediu matemática, excepto para entrar). A específica de geometria foi uma palhaçada: ficámos uns vinte numa sala sem qualquer vigilância durante duas horas, e quando a vigilância chegou foi para tirar as últimas dúvidas e resolver os problemas. O que quero dizer com este testamento, é que este tipo de contestação também é tradicional. Todos os anos vai havendo ora milagres, ora desgraças. Desde o ensino pré-primário ao superior. Também não é milagrosa a ascenção súbita de algumas escolas no ranking nacional? E por outro lado, a descida súbita de outras quantas? A mim parece-me esta uma história do mesmo saco da do buling: lá porque agora se fala e até tem nome estrangeiro, não quer dizer que antes não houvesse...

Anónimo disse...

MILAGRE?!...
Sejamos honestos.
As classificações dos exames nacionais de Matemática (disciplina trienal) do ensino secundário, são apenas uma parte da avaliação a essa disciplina, uma vez que os alunos internos de uma escola têm que se preparar durante 3 anos para atingir a média mínima interna de 10 valores para, assim, puderem ir a exame.Os alunos que não conseguem atingir a média interna de 10 valores nem sequer vão a exame.
Convém também lembrar que as classificações dos alunos auto-propostos também figuram na média do "ranking", o que baixa significativamente as médias por escola.E depois há um número diverso de alunos por escola, coisa que ninguém refere...
E depois há o contexto sócio-económico e cultural em que se insere a escola... E depois há a escola pública que não pode recusar alunos, ao contrário das privadas...
E depois há a minha falta de paciência para ressabiados.

Carlos Medina Ribeiro disse...

Estas crónicas e fotografias da autoria de António Barreto também podem ser lidas e comentadas no seu outro blogue, o "Sorumbático" (http://sorumbatico.blogspot.com).

Anónimo disse...

Silvia não será só paciência que lhe falta...
No ano passado e no outro anterior e por aí fora, as condições e restrições que enumera não eram as mesmas?

Anónimo disse...

Caro anónimo,
Não me lembro de ter lido idêntica reflexão aquando da dificuldade acrescida das provas de exame do ensino secundário, em anos anteriores, para prejuízo de muitos jovens que, por vezes, chegavam a conhecer, no 12ºano, três ou mais professores à mesma disciplina, na escola pública. Como sabe,no passado recente,houve provas de Matemática, por exemplo, muito difíceis, contrastando com a facilidade de provas de outras disciplinas, designadamente a Português A e B e, no entanto, não me lembro de nenhum opinion maker ter gastado muita tinta com isso.
Como tenho memória e trabalho na escola pública, acho que não há razão para AB exagerar no seu "Milagre", até porque ao fazê-lo, desta forma, está desbragadamente a denegrir a escola pública e quem a tutela, o que me parece injusto, tendo em conta os sucessivos investimentos que o ME tem efectuado em relação à igualdade, qualidade e modernidade da mesma.
Sejamos honestos, a escola pública nunca esteve tão bem como hoje, apesar de ter ainda um grande caminho a percorrer no que diz respeito à qualidade, mas, parafraseando o poeta, todos somos poucos, e AB parece estar zangado, o que é uma pena...