domingo, 9 de novembro de 2008

A luta final

Por António Barreto
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ESTADO E SOCIALISMO não são sinónimos. Há quem esqueça esta banalidade, mas é por vezes preciso lembrar. Não são. Pode haver, há Estado, muito Estado, até Estado a mais, sem socialismo. O que não há é Socialismo sem Estado. Até mesmo sem Estado a mais. Nas crises actuais do sistema financeiro e nas que ainda aí vêm, incluindo as económicas, uma palavra tem servido de receita miraculosa: o Estado! Primeiro, como fiscal e regulador; depois como juiz e polícia; agora como proprietário e accionista. A esquerda delira de entusiasmo. Falhou o regulador. Vai falhar o juiz e o polícia, pois os ricos escapam sempre. Sobra o Estado proprietário. É a grande oportunidade. Talvez se consiga, pensam uns, construir o socialismo, à socapa, sem luta de classes e sem revoluções. Grandes esperanças!
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Nos anos noventa, com o fim do comunismo e da União Soviética, os socialistas julgaram que tinham ganho. “Enfim, sós!”, suspiraram. Sem ninguém à esquerda, sem ameaças de ditadura da mesma família política, respiraram aliviados. Nunca perceberam que, com o fim do comunismo, morriam também um pouco. E mudavam de natureza. Os socialistas desistiram dos seus combates seculares, das suas razões genéticas de vida e de luta. Apesar da existência de variantes, sempre lutaram por mais Estado, a ponto de, frequentemente, serem condescendentes com a violência, o abuso de poder e a violação de direitos fundamentais. Quando o fim último é o Estado e as esperanças que nele depositam, os socialistas e outros companheiros de esquerda hesitam pouco. Para um socialista de gema, o Estado tem sempre razão.
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Além do Estado, o outro princípio primordial era a propriedade. Os socialistas perfilhavam vários conceitos, desde a propriedade dos meios de produção à nacionalização dos sectores estratégicos da economia. Dado que a propriedade era o alicerce do capitalismo, o seu derrube exigia a expropriação e a nacionalização. Estado e propriedade eram os factores essenciais do movimento socialista. Tal como os comunistas, viveram décadas com a certeza de que a sociedade sem classes e o progresso dependiam da destruição das classes proprietárias e do estabelecimento da propriedade dos meios de produção pelo Estado. A Constituição portuguesa de 1976, da autoria de ambos, preconizava “a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais”!
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As duas últimas décadas viram transformarem-se os credos socialistas. E sobretudo a sua acção. Converteram-se ao mercado, mesmo se algumas vezes só em aparência e por cinismo eleitoral. Gradualmente, passaram a considerar a iniciativa privada como essencial. Tomaram a dianteira ou ajudaram a desnacionalizar as economias e a reprivatizar as empresas. Contribuíram para emagrecer o Estado. Colaboraram com os capitalistas, as grandes multinacionais e os grupos económicos. Uns limitaram-se a executar essas políticas, outros converteram-se mesmo pessoalmente. A propriedade deixou de ser o factor divisor das classes e das políticas. A iniciativa privada e o mercado deixaram de ser fronteiras. A luta das classes deixou de ser o motor da História. Os socialistas passaram a desejar ser eficientes, produtivos e responsáveis. Depois de terem mostrado a sua incapacidade, até para gerir um carro eléctrico, começaram a ser ou a aspirar ser bons gestores. E a retirar, do capitalismo, o melhor possível. O Estado nacional, um pouco, e o Estado europeu em construção, muito, continuam a ser credo e crença, mas domesticados agora pela boa gestão dos negócios e pela competitividade.
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A crise económica e financeira deste ano trouxe nova alegria aos socialistas. Era a derrota do capitalismo, gemeram. Depois da do comunismo, a vitória parecia total. Ouvem-se pessoas, lêem-se textos que não escondem a jovialidade com que olham para “a crise”, ainda por cima americana. “Estava-se a ver”, “era inevitável”, “tiveram o que mereciam”: eis tons das suas recentes cantilenas. Os mais brutos chegam a pensar que talvez seja esta a maneira de construir o socialismo. Mas a maioria já só pensa em salvar o capitalismo. Na sua megalomania, querem mesmo “refundar o capitalismo”. Com o Estado e os socialistas, pois claro.
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Liberais, conservadores, populares, social-democratas, socialistas e trabalhistas estão unidos num propósito: salvar o capitalismo! Na sua quase totalidade, é isso mesmo que querem fazer. Sem cinismo. Do lado das esquerdas, é possível que haja algum sentido da oportunidade: sob a capa do salvamento do capitalismo, entra o Estado. Entra e fica! Mesmo para esses, a ideia de construir o socialismo é absolutamente utópica e risível. Também querem salvar o antigo inimigo. Só que, se puderem ficar no cockpit ou pelo menos partilhar a torre de controlo, ficam felizes. Com o Estado e o capitalismo, pois claro!
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Os socialistas louvam o Estado, murmuram de contentamento com as nacionalizações americanas, as de Gordon Brown, as portuguesas que vêm a caminho e as espanholas prometidas. Os socialistas já não estão convencidos de que esta crise é a do fim do capitalismo e a da vitória do socialismo. É a vitória do Estado, em qualquer caso. Não perceberam é que se trata da derrota final do socialismo. Já não é alternativo. Já não tem modelos a defender. Os socialistas interessam-se agora pela vida privada dos cidadãos, por causas culturais e pelos costumes. Casamento e divórcio, aborto e adopção, eutanásia e suicídio, homossexualidade e droga são as causas dos socialistas e de muitas esquerdas. A derrota dos socialistas é a que os transforma, não em coveiros, mas em curandeiros do capitalismo, em ajudantes dos que querem refundar o capitalismo, em decoradores que lhe querem dar um rosto humano. Uma espécie de serviço de assistência, de garagem ou de cuidados intensivos do capitalismo. Se existe uma derrota final, é bem esta.

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«Retrato da Semana» - «Público» de 9 de Novembro de 2008
Esta e outras crónicas do autor estão também no blogue
Sorumbático

11 comentários:

Anónimo disse...

Fraco. Fraquissima reflexão!

Resta um ressabiamento para com aquilo que designa "socialistas"?

Quem cabe nesse saco?

Quem o AB quiser!
Ou quem enfiar a carapuça!

Enfim, generalizações, para ganhar uns cobres nos jornais!

Anónimo disse...

Gostei. Mais uma vez AB diz umas verdades, e logo surge um abanar de orelhas. É bom, nestes tempos modernos, aparecer alguém a reflectir sobre o socialismo, porque já são poucos, com quem nos podemos identificar.

A. A. Barroso disse...

È António Barreto em todo o seu esplendor de ex-comunista e ex-socialista a caminho de qualquer coisa de que virá a ser EX. É o drama existencial de intelectuais troca tintas que em sociedades mais evoluidas achar-lhe-iam graça mas não dava para terem credibilidade. Aqui, juntam-se os incapazes de realizar algo para cascarem em quem tenta treabalhar e... mesmo assim lá conseguem ganhar a vidinha. Uns "vencidos da vida" cuja melhor qualidade que possuem é um bom e requintado apetite. A pátria muito lhes deve e alguns de nós ainda veremos erigirem-lhes bustos lá na terrinha... com banda desafinada e foguetes a estoirar. E eles, emocionados, a não conseguirem escapar a um levíssimo sentimento de culpa de nada terem feito para merecer a distinção, e no dia seguinte lá estão nos seus galhos a cucar dizendo mal do "Palheiro". E que grande bando de canoros cucos anda por aí a desovar em ninho alheio...

Anónimo disse...

Dizem-se umas verdades e logo aparece a marcação cerrada a tudo quanto possa beliscar o patrâo. Aonde já vai a censura! Não percebem os contentinhos da silva de que´só os burros não mudam? Ou acham que o socialismo é "isto" que nos está a levar para o fundo?

Anónimo disse...

Acho fácil de perceber que os socialistas a que AB se refere são aqueles auto-proclamados socialistas da dita 3ª via (Tony Blairs e Josés Socrates entre outros).

A crítica é justa, e a meu entender acertadíssima, é um crítica aos ditos socialistas de mercado, aos que querem salvar o capitalismo. Os que se renderam.

Compreendo perfeitamente se ele tiver estado junto dos comunistas e dos socialistas e tenha saído, a desilusão é normal.

Já há poucos socialistas por convicção, e os que há, andam desiludidos com os pseudo-comunistas e pseudo-socialistas que por aí se vêem.

Anónimo disse...

Por cá, já não faz sentido gastar tinta com a dicotomia capitalismo / socialismo. É mesmo extemporânea.
Mas esta reflexão deu para perceber porque AB não escreveu uma linha pela ocasião do referendo ao aborto...

Anónimo disse...

Acho o texto magnífico e fez-me pensar muito. Acho que o António Barreto tem toda a razão. É sempre um prazer ler as suas reflexões.

António Viriato disse...

Os nossos socialistas modernos, os de sucesso, em especial, constituem um clube singular, já com escassa afinidade com qualquer organização de tipo político.

Na verdade, eles comportam-se mais como uma rede de influências, amizades e interesses, que visam a sua mais ampla disseminação pelas instituições : do Estado, em primeiro lugar, pelas restantes, a seguir, depois de seduzidas a partir daquelas.

Neste propósito, são eficientes, reconheça-se, sobretudo quando contam com oposições ineptas, ingénuas ou com eles oportunamente mancomunadas para a partilha de benefícios, privilégios, prebendas, benesses e demais sinecuras.

Não admira que sejam tão prodigamente acarinhados, premiados e elogiados por toda a sorte de empreendedores da nouvelle vague, como temos visto, vemos e continuaremos a ver, se Deus quiser, os que não costumam andar distraídos.

Bom início de semana, sem quaisquer inibições de expressão. Nunca ninguém consegue agradar a todos, como bem sabemos. Nem o bom do Jesus alcançou tal desiderato...

Gonçalo Rosa disse...

Caro António,

Concordo com a análise que faz. De alguma forma me recorda também, há alguns anos atrás, o movimento reformista nascido no interior do PCP. Recriar, esquecendo parte, eventualmente considerável, dos alicerces que estiveram na génese do partido; ou esquecer o tempo que passa e manter tudo como era dantes, como sempre foi...?

Gonçalo Rosa disse...

Caro A.A. Barroso,

Fico sempre triste ver comentários como o seu. É que passam completamente ao lado do texto, propriamente dito. Já reparou que, com tanto fel, não consegue levantar um único argumento que questione o texto de AB, centrando-se exclusivamente em ataques pessoais e juízos de valor?

Vai uma sugestão? Aproveite a qualidade da sua escrita para algo mais positivo.

Anónimo disse...

Caro AB

Descobri hoje este seu blog!

Gostei de ler este post. Como sempre, quando expressamos a nossa visão das coisas há sempre quem ataque gratuitamente neste país!

Uma admiradora de jacarandás:
http://objectiva3.blogspot.com/2008/05/olhar-os-jacarands.html

Objectiva3- Cristina Garcia