domingo, 17 de agosto de 2008

As referências na criação

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NINGUÉM É ABSOLUTAMENTE ORIGINAL. Ninguém cria a partir do nada. Criar começa por ser “acrescentar qualquer coisa”. Um olhar, um facto, uma interpretação ou uma composição. Mesmo as “revoluções”, estéticas, filosóficas ou científicas, têm como ponto de partida a vontade de romper e de renovar os termos das questões anteriores.
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As escolas, os estilos, as correntes de pensamento e as modas fazem-se por sucessivos desenvolvimentos, por acrescentos e variações ao que estava previamente adquirido. Quando ocorrem rupturas ou fundações, os seus responsáveis não estão libertos das ferramentas anteriores, da linguagem, das formas de expressão ou do saber acumulado. No século XX, artistas, pensadores e cientistas multiplicaram-se em rupturas e criação de novos “paradigmas”. Por vezes, fizeram-no de modo abrupto, com violência na destruição do que os antecedia. Mesmo assim, não dispensavam filiações de método ou de inspiração, nos antigos gregos, no Renascimento ou nas Luzes. Sócrates ou Galileu, Leonardo ou Bach, Shakespeare ou Mill inspiraram à distância de milhares de milhas e de séculos.
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É por isso que as referências são essenciais. Umas são explícitas, conhecidas e assumidas. Outras são implícitas, escondem-se por detrás da nossa memória, dentro do nosso conhecimento e à volta da nossa experiência ou do que julgamos ser a nossa experiência. Mesmo esta, frequentemente traidora, é muitas vezes a aprendizagem da experiência dos outros. Quantas vezes não julgamos sinceramente estar a ser originais e não nos limitamos a repetir o que assimilámos? Por isso a crítica e o debate são essenciais à honestidade e ao rigor.
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As referências são muitas vezes o resultado de um acto de liberdade. A escolha de referências é fruto de uma selecção e de uma aprendizagem. Por isso podem ser contraditórias. Na Sociologia, escolhi por exemplo Tocqueville, Marx, Weber e Aron, entre outros, reconhecendo a quase absoluta incompatibilidade entre eles. Cada um trouxe-me algo, a síntese, se é que existe uma, é minha. Terei sido inteiramente livre nas minhas escolhas? Não terei já sofrido influências e condicionamento? A minha resposta é ambiciosa: a liberdade reside na capacidade de escolha de influências. Por isso falo de referências, não de mestres, patrões, mentores ou ídolos.
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Na Fotografia, os nomes que povoam a minha memória são August Sander, Stieglitz, Steichen, Eugene Smith, Walker Evans, Dorothea Lange, Edward Weston, Cartier-Bresson, Sebastião Salgado, Castello Lopes e outros, diferentes e contraditórios. Não sigo ninguém, tento não copiar e procuro a minha maneira (e quantas vezes não consigo encontrá-la de modo nítido...). À medida que se interioriza a experiência de outros, tentamos modificá-la, dar-lhe nova vida. É o que fazemos mais ou menos livremente, com mais ou menos capacidade de inovação. Mas não conseguimos, nem queremos, afastar todas as inspirações e todas as experiências. Essas são as referências. Caso contrário, seriam o catecismo e a regra.
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Na ciência, na política, na filosofia, na música ou na pintura, a nossa liberdade mede-se pela capacidade de escolha de referências, o que implica empatia e crítica, em doses variáveis, mas elevadas. A nossa criatividade consiste na capacidade de acrescentar, modificar e variar o legado que recebemos.
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Lisboa, 2008

3 comentários:

dutilleul disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Virgilio Costa disse...

Obrigado! Gosto genuinamente de ler as suas crónicas. A inteligência, a argúcia e a capacidade do homem interagir com o meio que o rodeia são uma manifestação da liberdade de criação humana. É certo que essa criação é sempre condicionada, influenciada, contrariada e esforçada.
Existirá inspiração e satisfação sem esse esforço? Eu não conheço, mas o génio não sou eu.

josé ricardo disse...

caro antónio barreto, desculpe-me mas hoje encontro-me hiper-crítico. há bocado desanquei a helena matos que queria saber onde jósé sócrates passa férias. agora li esta sua tentativa de explicar a problemática da periodização na arte e em outras formas do saber e não me convenceu muito. mas a culpa é da helena matos.
um abraço,
jose ricardo