Ainda estamos a tempo de salvar o SNS, de organizar os respectivos serviços e de responder às necessidades. Durante os últimos anos, acumularam-se as deficiências e os problemas. A crise instalou-se como estado natural. Por falta de dados e de estudo, não se sabe exactamente qual foi a evolução da mortalidade nas suas relações com as questões de saúde pública. Mas outros sinais são claros. As filas de espera para consulta, cirurgia e exames não cessaram, nem reduziram, antes cresceram. Os défices financeiros, regionais e hospitalares, dilataram sem que se visse o melhoramento. As saídas de médicos e de enfermeiros, para o estrangeiro ou para os serviços privados, aceleraram. Falhou o planeamento a longo prazo, da formação e do investimento pesado, mas também o de curto prazo, como as questões sazonais, as escalas de trabalho e as férias. Toda a política salarial e de carreiras, incluindo a do recrutamento precário, pura e simplesmente explodiu.
Ainda é possível reformar e melhorar, aproveitando o que há de bom e consolidado. Desde que as condições políticas o permitam. Há dinheiro, há médicos e enfermeiros, há técnicos e funcionários, há equipamentos e estruturas, há instituições e hospitais. Faltou sabedoria, vontade reformista que implica riscos e predisposição para negociar com quem sabe e não apenas com quem tem poder político. Faltou tolerância política, mas sobrou ideologia. Faltou meritocracia, mas sobrou partido.
Há graves deficiências na formação de médicos e enfermeiros, no número, na adequação às necessidades e à população, nas especialidades. Parece ser este um dos mais graves problemas. Uma vez mais: não por causa do número global de profissionais, mas pela especialidade, pelo treino e pela experiência. Pela distribuição. E também pela juventude.
O governo detesta os médicos e os enfermeiros, classes profissionais que não pode dispensar nem despedir. Não lhes paga bem. Não os respeita. Não lhes dá condições adequadas para exercerem os seus ofícios sem perder tempo com tarefas colaterais, designadamente burocráticas. Tolera e considera os que lhe obedecem ou são mudos. Pensa, como já vários o disseram, que “os médicos e os enfermeiros são profissionais como quaisquer outros, têm de ser tratados como todos os outros”. O que não é verdade: aos médicos e aos enfermeiros, e poucos mais grupos profissionais, exige-se tudo, pede-se de mais, espera-se sempre.
A pandemia e respectiva gestão criaram uma ilusão. O enorme esforço feito pelos profissionais, sobretudo médicos, enfermeiros e auxiliares de saúde, mascarou a desorganização, o amadorismo e o espírito burocrático. A política de relações públicas do ministério quase convenceu a população do bom cuidado que estava a ser tomado. Apesar das aparências, tudo foi difícil, por vezes contraditório, como aliás seria de esperar. O que não era de esperar é esta espécie de gloriosa vaidade que sistematicamente garante que o Ministério da Saúde se portou de modo excelente durante a pandemia. Não é verdade. Foi necessário ir buscar ajuda ao exterior, convém não esquecer. Foi necessário chamar as Forças Armadas, em especial o Almirante Gouveia de Melo e a equipa que dirigiu e se ocuparam da coordenação e da logística. Foi necessário ir buscar equipas médicas estrangeiras para dar o exemplo, não de tratamentos, mas de organização.
A actual crise, profunda, aguda, estrutural e conjuntural revela tanta coisa, tantas deficiências na política nacional e na sociedade! Por exemplo, a crónica falta de meios que os últimos governos tanto têm feito para esconder e disfarçar! Ou simplesmente a existência de outras prioridades mais vistosas e de mais imediato efeito.
Nenhuma crise será ultrapassada, de modo duradoiro e estável, sem que se toquem nos mais dolorosos problemas. Ou nas mais difíceis medidas. Como por exemplo favorecer e recompensar digna e visivelmente a exclusividade dos médicos e dos enfermeiros. Ou tratar com ousadia e sem fanatismo a relação entre o público e o privado. Pode haver várias opiniões, mas ainda está por demonstrar que a mais fértil não seja a da separação entre público e privado. Assim como arredar as parcerias, pela simples razão que os governos não merecem confiança. A história dos últimos trinta anos de parcerias públicas privadas é uma história de corrupção política. Até é possível que, aqui e ali, tenham tido resultados positivos. Seja. Mas, no conjunto, são uma história de favores, cumplicidades e benefícios ilegítimos. Sobretudo porque os responsáveis políticos não mereceram confiança. E os privados aproveitaram.
Nem vale a pena comentar, mas é anedótico o facto de a Ministra ter anunciado que não se demitia e que vai continuar a lutar. Tudo leva a crer que esteja enganada. Mas espanta que dê a entender que se mantém porque assim quer. Alguém fará o favor de lhe dizer que continua a lutar enquanto o Primeiro Ministro quiser. Ele é responsável. Ele responde por ela. E responde pela política de saúde.
Surpreendentes são as medidas que sugerem que o Primeiro Ministro e a Ministra perceberam o que está a acontecer e não querem confessar. O Primeiro Ministro é mestre na arte do apagamento ou do esquecimento. Dissocia-se das causas, da sua origem, das suas responsabilidades passadas, dos seus ministros ou dos seus altos funcionários que procura substituir logo que possível. Sabe que é responsável, mas não quer ser responsabilizado. Sabe que é o protagonista, mas só está disponível para assumir essa qualidade quando lhe convém.
O Governo e a Ministra anunciam “planos de contingência”, na esperança de que alguém acredite que há sobretudo problemas passageiros. Declaram também criar uma Comissão de Acompanhamento, mais uma, na conhecida tradição de “empatar”. Para fazer o quê? Para coordenar e conversar. E entreter. É detestável este estilo de governo feito de expedientes, de falta de confiança nas instituições, de não cumprimento das regras de avaliação e responsabilidade. É próprio de um governo auto-suficiente dominado pelo fanatismo ideológico. Vêm daí os intoleráveis conflitos de teimosia: contra os privados, contra os sindicatos, contra as farmácias e contra as Ordens.
Com quem é que o governo quer governar a saúde? Com os médicos que paga mal? Com os enfermeiros que aliena? Com as Ordens que despreza? Com os privados que ameaça de morte? Com os doentes e familiares que esperam por consulta e cirurgia? Talvez apenas com um espelho.
Público, 18.6.2022
1 comentário:
Tudo se resume a compreender o que seja a remuneração de pessoal dependente em situação de concorrência.
O Estado sente-se confortável assalariando serviços com que ninguém concorre, em que os utilizadores ou têm por eles pouco interesse ou são obrigados a usá-los sob risco de penalidades.
Mas se à exigência dos utilizadores e à ausência do imperium estatal acresce a concorrência, a burocracia sente-se ameaçada e o pasmo das categorias universais e suas pasmosas equivalências entram em rutura.
Reformas? Só com menos Estado.
Dinheiro? Ainda nem começaram a fazer contas...
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