sábado, 4 de junho de 2022

Grande Angular - Faça-se luz!

 É possível que as simplificações sejam injustas. Mas, às vezes, para melhor compreender, são necessárias. A maior debilidade da nossa vida colectiva reside na justiça. A maior ameaça contra a democracia é a fragilidade da justiça. O maior perigo contra as nossas liberdades está na justiça deficiente. Com excepção da invasão inimiga, todos os grandes perigos conhecidos para a democracia e a liberdade têm de ser combatidos pela justiça. O crime, a corrupção, a captura do Estado, a marginalidade, o terrorismo, a revolução e o golpismo: ou são combatidos pela justiça ou destroem a democracia. Uma justiça débil é uma democracia frágil.

O panorama da justiça em Portugal é, há muitos anos, de enorme deficiência. Os processos dos poderosos atrasam-se para além de todos os limites. O sentimento da existência de duas justiças instala-se na vida quotidiana. As deficiências processuais, incluindo as fugas de informação, as quebras do sigilo, os atrasos, os excessos de recursos, o enorme poder dos prazos discricionários e as elevadas custas judiciais são apenas alguns exemplos. Os notáveis nunca arguidos, os arguidos nunca julgados, os condenados nunca punidos e as prescrições programadas preenchem a crónica. Olhe-se em volta: ricos e poderosos, sejam políticos, milionários, empresários ou simplesmente notáveis, a contas com a justiça, enchem páginas de jornal e fazem muitos descrer na justiça. O persistente mal-estar provém daí. É assim que se cria o sentimento, não sabemos se totalmente justo, de que a justiça tem em Portugal duas caras, a dos ricos e a do povo.

Há uma justiça invisível e discreta que, por todo o país, vai cumprindo os seus deveres, julga e arbitra, concilia e condena, sem que se saiba ou faça constar. É possível que esta justiça seja lenta, mas não demasiado, pelo que se vê nas estatísticas. É provável que se trate de justiça burocrática. Como é plausível que se trate de uma justiça desigual que trate melhor quem tem nome e fazenda. Mas, no essencial, é uma justiça que cumpre a sua função. O pior é a justiça dos grandes casos, dos poderosos. Pode ser uma parte menor da justiça, mas é maior na má reputação que lhe confere.

Diz-se que a justiça portuguesa falhou as actualizações que, nestas últimas décadas, se impunham. Falhou adaptar-se à democracia e à sociedade dos direitos civis e políticos. Não conseguiu actualizar-se e preparar-se para uma economia de mercado. Não foi capaz de interiorizar a integração europeia e adequar-se a esta nova ordem jurídica. Não esteve à altura do crescimento da litigância e da complexidade jurídica da nova sociedade. A porta giratória de magistrados entre a justiça e a política não cessou de funcionar. Finalmente, não teve meios nem sabedoria para adoptar com proveito os formidáveis novos meios de comunicação, investigação e conhecimento permitidos pela informática. É bem provável que todas estas afirmações sejam verdadeiras ou sobretudo verdadeiras. O certo é que não foi feito até hoje balanço nem elaborada avaliação que permita realmente saber o que não está certo. Nem por que não está certo.

Sabemos, todavia, que certas forças, presentes noutros países ou noutras épocas, estão talvez ausentes na justiça actual. Não é real que as Forças Armadas, a Igreja e a Maçonaria tenham influência sobre a justiça. Também não é crível que entidades criminosas, como as mafias ou o narcotráfico, aqui tenham relevo. A comunicação social é frágil e pobre, incapaz de dominar a justiça em seu favor. As universidades também não, tão pouco interessadas como estão. As polícias não têm força e, no limite, são sobretudo vítimas da justiça deficiente.

Na ausência destas influências, é plausível imaginar alguns grupos com interesses e poderes na justiça. A política e os políticos. O legislador. O governo e a administração pública. Os grandes corpos profissionais, as magistraturas e a advocacia.

O que está então errado na Justiça portuguesa? O que faz com que a opinião pública tenha tão má impressão deste sector vital para a nossa vida colectiva? Muito se diz, mas a verdade é que não existe uma visão aceite por muitos.

Os diagnósticos simples e simplistas são conhecidos. Interesses corporativos. Privilégios dos juízes. Má legislação. Interferências dos políticos. Falta de juízes. Equipamento miserável e instalações obsoletas. Requisições políticas de magistrados. Comissões de serviço político de juízes. Má preparação nas universidades. Poder excessivo das Ordens e dos sindicatos. Corrupção. Ideologia retrógrada. Caprichos modernos. Correcção política. Natureza de classe. Excesso de burocracia. Garantias a mais. Exagero de recursos. Rivalidade entre corpos e profissões. São tantos os epítetos e tantas as acusações que o mais provável é que nunca se chegue a conclusões pelo menos razoáveis.

A cultura jurídica e judiciária portuguesa é pouco democrática ou tem poucas tradições democráticas. Também não tem especial apreço pela eficiência e pela prontidão: prefere o formalismo e o pesado procedimento. Quer isto dizer que, para poder reformar a justiça, são essenciais intervenções exteriores. As únicas legítimas são as que decorrem da democracia (presidente, parlamento e governo). Estas devem evidentemente recorrer a quem sabe, às grandes instituições nacionais, aos corpos profissionais, aos representantes da sociedade civil, aos académicos e aos técnicos, sem deles ficarem prisioneiros. Mas este movimento de reforma necessita, primeiro, de sabedoria e conhecimento. Um Livro Branco seria o início deste processo tão complexo e tão necessário. Depois, necessita de um motor, um inspirador capaz ou uma autoridade legítima. Só pode ser o Presidente da República, o Parlamento ou o Governo. Sem o que nunca teremos reforma e nunca teremos justiça como deve ser. 

Não haverá um órgão de soberania interessado, empenhado ou disponível para patrocinar ou tomar a iniciativa de mandar elaborar um Livro Branco sobre a justiça em Portugal? Não haverá uma Universidade, uma Faculdade, uma Academia, uma Fundação ou uma associação privada prestigiada com vontade e sentido de responsabilidade para ajudar, estimular ou incitar a que se faça um Livro Branco sobre a justiça em Portugal? Não há associações profissionais privadas, ordens ligadas às profissões judiciais e outras organizações que ajudem à elaboração desse Livro Branco? Enquanto não houver luz, não há reforma. Nem Justiça.

Público, 4.6.2022

2 comentários:

António Ladrilhador disse...

Não discordando, inteiramente, das suas conclusões, penso que existem dois fatores que, mais do que qualquer outro, determinam o cenário catastrófico que enquadra o desempenho deplorável do sistema judiciário português:
- a montante, a mais do que deficiente formação e educação dos magistrados judiciais ( cf https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/11/rendeiro-no-rescaldo-de-uma-fuga.html ), herdada - temo que irreversivelmente... - dos ímpetos revolucionários que alardearam o direito universal a uma educação numa altura em que, decididamente e por razões históricas mais do que conhecidas, era diminuta a quantidade de docentes devidamente habilitados a exercer o respetivo magistério com a qualidade mínima indispensável;
- a jusante, a bem patente incapacidade de quem recruta ministros da justiça para, de uma vez por todas, entender que o perfil ideal para a função não é o de um alguém da área do direito, mas o de alguém reconhecidamente competente na área da gestão; e, de preferência, dotado de poderes sobrenaturais, já que a um comum mortal pouco será dado fazer por uma área tão degradada e cuja fragilidade é, como oportunamente refere, a maior ameaça à democracia. Sobretudo, à liberdade.
O primeiro fator, mesmo que acudido a curto prazo, apenas será razoavelmente neutralizável dentro de muitas décadas, já que não se educa um povo em cinco minutos. O segundo obstáculo, no entanto, bastaria um ato de mera gestão política competente para ultrapassar, pelo que se torna difícil entender a insistência em ter gente do direito a ocupar o lugar.
A ideia do livro branco, entendida como uma tentativa de sistematização, de elaboração de um cardápio de maleitas atuais, seria útil a um gestor que soubesse como o aproveitar. A um ministro jurista, apenas servirá para o ajudar a desesperar.

Jose disse...

O modelo aplicável pressupõe leis que não sejam um pântano de interpretações e relevâncias conflituantes.
E se já não é tempo de uma Câmara Corporativa, haveria de haver um corpo técnico de avaliação funcional de leis e regulamentos.
Só a falta de vergonha justifica que se eternize o nível de ineficiência do sistema judicial.
Desde leis que vêm a encontrar no seu articulado a inviabilização dos propósitos expressos no seu preâmbulo até às que soçobram pelo regulamento ou pelos incidentes processuais, tudo conduz a que o cinismo seja requisito de quem quer manter a sanidade mental na função de juiz; e sempre o cinismo será preâmbulo da corrupção.