Os discursos do Dia de Portugal (e das Comunidades) sublinharam as questões das migrações. Seja a dos emigrantes portugueses por esse mundo fora (metade do dia de Portugal é festejado no estrangeiro, este ano em Londres); seja a dos estrangeiros a viverem em Portugal ou a naturalizarem-se portugueses. Seja finalmente a dos imigrantes de terras difíceis e momentos excepcionais, como a Ucrânia, que rumam ou chegam ao nosso país.
Mas os portugueses e os estrangeiros não estão apenas presentes em ocasiões de comemoração. Na verdade, são de todos os dias as alusões feitas aos estrangeiros de Portugal e aos portugueses do estrangeiro. Qualquer que seja o propósito, bom ou mau, não se passa dia sem que essa especial relação não seja motivo de atenção. Até porque os portugueses continuam a emigrar muito. E há cada vez mais estrangeiros em Portugal. Acontecimentos recentes envolvendo incidentes com a polícia de estrangeiros e fronteiras obrigam a atenção, cuidado e acção.
As últimas eleições legislativas, durante as quais o voto dos emigrantes foi vergonhosamente humilhado e até desperdiçado, trouxeram-nos à atenção o eterno problema da utilidade do voto dos emigrantes. E mais uma vez se verifica que, tal como está concebido, de nada serve. A representatividade dos deputados da emigração é duvidosa, em todo o caso distorcida, sem distrito nem geografia.
As informações agora disponíveis sobre a evolução e as condições de atribuição dos “vistos de ouro” revelam um infame mercado e um atropelo permanente às leis em vigor, assim como uma noção venal indigna da nacionalidade. Quem tiver muito dinheiro, tem visto Gold. Quem tiver advogados poderosos, altos funcionários complacentes, ricos grupos de protecção, poderosas comunidades de pertença ou ágeis facilitadores, tem visto Gold. Se for jogador de futebol, atleta de categoria internacional ou especulador imobiliário, tem visto Gold. Se estiver disponível para pagar ilegalmente, com dinheiro vivo, aquisições de imóveis, tem visto Gold.
São crescentes os problemas com as populações estrangeiras em Portugal, dos clandestinos e trabalhadores ilegais, aos conflitos sociais que envolvem imigrantes. São frequentes as reacções detestáveis de racismo ou de atribuição a estrangeiros das culpas pelas insuficiências de todos nós. Não se passa dia sem que portugueses e imigrantes se acusem mutuamente de racismo. É evidente a pobreza extrema de tantos bairros de imigrantes, sobretudo ilegais.
As condições de trabalho em inúmeros sectores da economia com especial propensão para acolher, procurar ou acomodar trabalhadores estrangeiros são aflitivas. Excesso de horas de trabalho, péssimas condições de habitação, alimentação confrangedora, ausência de cuidados de saúde e típica sobre-exploração de “trabalho negro” são muito frequentes nas estufas de hortofrutícolas, em muitas vinhas, nalguns montados, no olival e em certa restauração. E nas obras públicas e construção civil.
Toda a gente sabe que o trabalho ilegal e a residência clandestina são propícios aos conflitos sociais e raciais, à criminalidade e à marginalidade. Mas parece haver receio de o dizer, de verificar os factos, de controlar, prevenir e cuidar. Há temor do preconceito. Há medo de algumas populações. Há receio de acusações de racismo. Há vontade de aproveitar ao máximo as condições de exploração.
O número de estrangeiros legalmente residentes em Portugal terá atingido os 670 000, máximo histórico que não dá mostras de abrandar. O número de portugueses que anualmente emigram para o estrangeiro conhece altos e baixos, mas situa-se actualmente em patamares elevados: nos últimos dez anos, terão emigrado para o estrangeiro tantos ou mais portugueses do que na famosa década dos anos sessenta, considerada o período de maior emigração da história.
Em muitos aspectos, as migrações são o sintoma, o indicador da sociedade. Quase medem a sua temperatura. “Muitos emigrantes” é sinal de pouco emprego. Ou de opressão. E de falta de perspectivas e oportunidades. “Muitos imigrantes”, pelo contrário, é sinal de actividade económica e de possibilidades de emprego. Mas também pode ser sintoma de laxismo e falta de controlo legal. “Muitos emigrantes” e “muitos imigrantes”, ao mesmo tempo, como é o caso de Portugal, revelam situações complexas, muito negativas. Falta de boas oportunidades (emprego, trabalho produtivo, boas remunerações) e abundância de más oportunidades (ilegalidade, trabalho clandestino, emprego precário, exploração).
É possível que Portugal venha a ser pressionado, tal como muitos outros países, por vagas de imigrantes, por fluxos de esfomeados, por cortejos de desempregados e por movimentos de refugiados como há muito se não via. A crise económica e alimentar já é visível. A crise de refugiados provocada pela invasão da Ucrânia (muitos milhões, como já não se via desde a Grande Guerra) está aí. As reviravoltas que se preparam nas relações económicas entre, por um lado a China e a Rússia, e, por outro, a Europa e a América, anunciam-se. Estes e outros factores deixam prever uma crise de migrações e de refúgio como raramente se viu.
As autoridades e a sociedade, portuguesas e europeias, têm a obrigação de reflectir e debater com antecedência, de se prepararem para mudanças importantes, de se ajustar a novas situações, de prevenir graves crises e de fazerem as reformas necessárias. É intolerável uma política de portas abertas, com a qual a ilegalidade, a exploração, o conflito social e as fricções raciais não cessam. É inaceitável uma política de portas fechadas, ao arrepio das necessidades do país e em violação de valores humanistas de acolhimento. É insuportável uma política de descontrolo da imigração que deixa vulnerável toda a gente, residentes e imigrantes, nacionais e estrangeiros. É perigoso permitir que se criem verdadeiros guetos de minorias.
Todas as áreas necessitam de revisão legal e de políticas. As condições de autorização e fixação de residência, assim como a concessão de nacionalidade, exigem mudança. O acesso aos serviços de educação e saúde deve ser analisado. A legalização dos regimes de trabalho deve ser obrigatória. As condições de vida nos bairros mais desfavorecidos têm de ser acudidas. Para já não falar no clima das relações raciais em ambientes mais sensíveis. Não tenhamos dúvidas: se não nos ocuparmos, com tempo e serenidade, das questões das migrações, a Europa e Portugal conhecerão tempestades. Está em causa o bem-estar do continente. E a democracia.
Público de 11 de Junho de 2022
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