É verdade que os interesses são muito fortes na formação de opiniões e os seres humanos são egoístas. Assim, é natural que primeiro se queira as liberdades e os direitos para si, depois para os outros. Talvez. Mas também é verdade que a humanidade fez alguns progressos e que os seres humanos, alguns pelo menos, são solidários. O que quer dizer que também há gente que quer a liberdade e os direitos para os outros. Há gente que entende mesmo que a sua liberdade e os seus direitos só fazem sentido se forem também a liberdade e os direitos de todos. A melhor vida em comum, em sociedade, é justamente essa, a que entende que os direitos e a liberdade devem ser entendidos como bem comum. E que a liberdade e os direitos de todos exigem a diferença e a contradição, sem exclusão. E sem a ideia de que a liberdade tem apenas um sentido e que esse sentido deve ser imposto a todos.
As direitas nunca gostaram particularmente das liberdades, nem dos direitos democráticos, excepto quando se sentem ameaçadas. As direitas são ciosas das liberdades dos seus correligionários, dos nomes de famílias ilustres, dos poderosos e dos religiosos conservadores. As esquerdas são atentas às liberdades e aos direitos dos seus camaradas, da sua classe social e dos seus intelectuais orgânicos, nunca das dos seus adversários.
Historicamente, os socialistas ocuparam um lugar singular. Entre todos, foram os que se preocuparam quase sempre com as liberdades de todos. Tentaram encontrar uma ponte entre liberais e jacobinos, entre mercado e Estado, entre maçonaria e Igreja. Até entre republicanos e monárquicos. O seu papel na democracia portuguesa não se define pelos seus contributos para a economia e o desenvolvimento, mas sim por este lugar singular, o de força charneira e de mediador.
Com a lei dos direitos digitais e as novas tentativas de controlar a expressão, as narrativas, o tom e a opinião, os socialistas estão a destruir esse lugar especial. Eles gostam de afirmar, com evidente marialvismo, que “não recebem de ninguém lições de democracia”. Mas é frase para esquecer. Qualquer democrata sério sabe que está sempre a receber lições de democracia e de liberdade. Verdade é que, com essa malfadada lei e com outros fenómenos convergentes, os socialistas estão a abrir um caminho sem regresso.
Já tivemos uma manifestação de dezenas de académicos, ou antes, de universitários que propuseram às autoridades que fossem criados mecanismos de monitorização do pensamento e da expressão. A pretexto de defender a verdade e a correcção das narrativas e dos valores, os autores reclamavam ciência e bondade, mas realmente convocavam a censura.
Já existem instituições europeias, financiadas pela UE, que zelam pela verdade e pela virtude, que se ocupam dos factos e dos discursos. Felizes de nós, europeus, que temos uma grande instituição, uma mãe zelosa, uma União que financia organismos que se ocupam da verdade, das narrativas, da desinformação e das falsas notícias. O Estado português colabora. O Governo e o Parlamento acrescentam mesmo mecanismos de controlo, com que criam um quadro de honra do comportamento.
Já temos uma lei aprovada por grande maioria com a qual as autoridades patrocinam instituições privadas e corporativas a fim de fazer com que tais aberrações monitorizem a expressão e o discurso público. Esta lei encontra-se agora em fase de improvável correcção, mas não de pura e simples revogação, que era o único método decente. Já há ideias absurdas que propõem instituições que distribuam selos de garantia e certificados de verdade, correcção e competência para avaliar os outros. O Governo e a maioria parlamentar não querem ser eles próprios a controlar: querem associar a esta tarefa execrável de delação e censura as instituições e organizações da sociedade civil. Partindo da ideia de que cada português é, como noutros tempos, um polícia e um inquisidor.
A completar este dispositivo de controlo, temos a pressão insuportável para o desenvolvimento, nas escolas, das disciplinas de formação moral. A ideia é, mais uma vez, a da criação de bons cidadãos, isto é, de difundir bons valores. Esta deriva não democrática e manipuladora é uma tentativa de regular a filosofia, o pensamento, a cultura, a moral e os valores das populações escolares. Entendem os seus autores que a escola é o instrumento de formação de espíritos, de aprendizagem e de convencimento dos valores nas artes, na cultura, na sexualidade, na religião, no civismo. O Santo Ofício, em seu tempo, também olhava com atenção para a blasfémia e a heresia. Também se ocupava das crenças indevidas e dos cismas.
Como é possível que os socialistas, em todo o caso a maioria dos dirigentes e deputados, se tenham deixado atrair pela volúpia da censura, da intoxicação e do controlo da expressão e do pensamento? Em toda esta história, à volta destes tristes acontecimentos, este é o facto mais surpreendente: o papel desempenhado pelos socialistas. Estes querem dar continuidade a uma frase atribuída ao rei liberal D. Pedro IV. Ao chegar ao largo de Mindelo, horas antes do desembarque, o monarca, dirigindo-se a Mouzinho da Silveira, terá dito: “Vamos lá dar a liberdade a estes Portugueses, quer eles queiram, quer não!”. É possível que seja verdade. É provável que seja uma invenção dos jacobinos que se ocupam da liberdade dos portugueses. Como pode ser uma anedota miguelista ou salazarista para aludir a um pretenso afecto dos portugueses pela autoridade.
Mas é, em todo o caso, o melhor retrato dos socialistas actualmente. Querem dar aos Portugueses a liberdade, o bom comportamento e a virtude. E querem ser o instrumento de luta contra a desinformação e a mentira. Ora, convém não esquecer: uma autoridade que se ocupa da mentira acaba por se ocupar da verdade. Uma entidade pública que vigia a desinformação acaba por criar a informação. Pela verdade e para nosso bem: o despotismo começa sempre aí.
Público, 24.7.2021
1 comentário:
Para o mérito do propósito não será relevante a imprecisão introdutória.
Que a demonização da direita seja requisito básico para introduzir a censura à esquerda, é prática com perto de cinquenta anos de exigência.
A Direita suspeita mais dos emissores do que das suas palavras, daí que o nome, o saber e o dinheiro sejam reputados factores de validação.
A Esquerda por seu lado é toda gesto e mantra, e tudo o mais é anatemizado como inaceitável 'ataque de carácter'. Por isso assim vamos...
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