É uma das mais antigas e perenes ilusões: a escola tem o poder de formar as pessoas e transformar o mundo. Pelo que seria indispensável formar os jovens de hoje para serem os homens de amanhã. Com estes lugares-comuns na cabeça, há décadas que muita gente, políticos, educadores e outros profissionais querem reformar a escola para formar cidadãos. Dos Republicanos aos comunistas, passando por tecnocratas, anti-racistas, LGBTI, ambientalistas e outras variedades, todos partilham esta ilusão. Todos querem uma escola programática, que forme as elites, que garanta a igualdade entre todos, que seja a base da democracia e que ensine as pessoas a comportar-se como bons cidadãos. Todos ou quase todos querem que a escola substitua a família, os pais e os padres. Espera-se que a escola ensine as técnicas rudimentares de ler, escrever e contar, mas também as disciplinas de todas as ciências, artes e culturas, assim como, finalmente, as regras morais e políticas de vida.
Na verdade, quase todos querem uma escola programática que dê sentido à vida, uma escola com ideias e ideologia, uma escola feita para formar cidadãos, uma escola vocacionada para a formação integral do indivíduo, uma escola nacional e patriótica, uma escola que dê muito mais do que a instrução, uma escola que vá mais longe do que ler, escrever e contar. Querem uma escola que forme cidadãos virtuosos, solidários, bondosos, honestos e democratas.
Do mesmo modo, são muitos os que até hoje se exprimiram concretamente contra a escola neutra, a escola sem valores e a escola sem conteúdos de formação moral e política. É uma polémica conhecida. Curiosamente, os autoritários e os intolerantes exprimem-se contra a escola neutra. Desde sempre, as grandes correntes de pensamento, os movimentos políticos e os agrupamentos ideológicos se esforçam por propor uma escola que satisfaça os seus interesses particulares, disfarçados de interesses gerais e de bem comum. Os republicanos quiseram uma escola laica, pois claro, que afastasse a Igreja da educação. Os salazaristas lutaram contra a escola ateia e laica, defendiam a escola empenhada, nacionalista e católica. Salazar proibia a escola neutra e considerava que era ali, na escola com programa e causas, que se criavam os espíritos pátrios. Os democratas querem absolutamente que a escola ensine a democracia e forme cidadãos exemplares. Os socialistas combatem por uma escola para a cidadania e para a solidariedade. Os fascistas querem uma escola para a grei e para a nação, valores eternos. Os comunistas querem uma escola que seja um viveiro de valores proletários. Os verdes querem uma escola ecológica e amiga do ambiente. Outros esquerdistas querem uma escola empenhada em valores, no multiculturalismo e no combate ao racismo. Outros finalmente, nas esquerdas e por outras bandas, vêem hoje na escola a grande arma para a igualdade e o livre arbítrio na escolha do género.
Todos querem legitimar, através da escola, a sua ideologia, os seus interesses e os seus programas. Pretendem assim que a construção curricular siga os seus valores ideológicos. Tentam transformar a escola em fábricas do “homem novo”. Entendem que a escola seja o veículo para as suas ideologias e os seus programas. Assim é que identidade nacional, nação, religião, valores morais e espírito de classe estão frequentemente ligados aos projectos de políticas educativas.
Como é sabido, cada vez que surge problema importante para o qual é difícil encontrar respostas e soluções, há sempre alguém que, no canto da página, ao fundo da sala ou na primeira bancada se exprime com sabedoria secular e banal: “o importante é a educação”. E acrescenta o lugar comum: “tudo começa na escola, a escola desempenha um papel muito importante”.
Todos os regimes autoritários e partidos políticos intolerantes procuram criar uma escola com valores, com programas políticos e com ideologia. Até há democratas que esperam o mesmo. No passado, a religião e moral cristã, a nação, a pátria, a república laica e o socialismo libertador ocuparam sucessivamente as primeiras páginas dos programas e dos currículos. Recentemente, com o mesmo afinco obsessivo e a mesma esperança, outros valores surgiram: a cidadania, a democracia, a solidariedade, a tolerância, a ética republicana e a Europa. Actualmente, à luz das modas, novos valores se impõem: o anti-racismo, o género como construção e escolha, a ecologia, o ambiente e os direitos dos animais. Sem esquecer outras tarefas mais tecnocráticas que preenchem o caderno de encargos da escola contemporânea: a literacia financeira, a aptidão digital e o consumo.
A disciplina de cidadania, outra vez em debate público, serve para tudo, da Constituição ao sexo, passando pelas regras de trânsito. Ou ainda para, segundo o palavreado oficial, saúde, sexualidade, segurança rodoviária, empreendedorismo, voluntariado, igualdade de género, risco, direitos humanos, defesa, segurança, paz, educação financeira, educação intercultural, ambiente, Europa e consumidor… Ora, a escola contemporânea, com este programa, corre o risco de falhar todas as suas missões. As clássicas: escrever, ler e contar. As menos clássicas: desenvolver as artes e a cultura. As mais modernas: a competência profissional. E as moderníssimas: formar cidadãos exemplares.
A escola como berço da virtude é um velho mito totalitário. A escola não é nem deve ser considerada uma incubadora de cidadãos bem comportados. Verdade é que na escola se aprende tudo. Da regra de três ao imperativo categórico. Mas também o sexo, o tabaco, o álcool e o cannabis. Sem falar no surf e nos jogos de computador. Assim como cinema e poesia. Além de violência, futebol e trafulhice. Ou finalmente solidariedade e bondade. Na verdade, a escola é vida. Ponto final.
Como tal, a escola dá o que de melhor pode dar: ferramentas, informação, instrumentos e conhecimento. Com a colaboração das artes, das técnicas e da cultura. O resto pertence à família, à sociedade, às profissões, à televisão, às redes sociais, aos livros, aos partidos políticos, às associações, às igrejas, aos clubes, aos jornais, aos vizinhos e às autarquias. À escola o que é da escola. À vida o que é da vida.
Público, 10.7.2021
2 comentários:
Eu gostava de uma escola que formasse pessoas livres. Uma escola onde se aprendesse aquilo que só muito dificilmente se consegue aprender fora dela: matemática, física, química, biologia, as três com laboratórios bem equipados, geologia, história de Portugal e história universal (com latim e grego, e com eventual ajuda das obras de Larry Gonick, de Jared Diamond e de outros similares, tudo isto apoiado numa política editorial que não deixasse esgotados os clássicos da historiografia e os disponibilizasse em edições de bolso a preços acessíveis), tudo isto com bibliotecas bem supridas. Para completar, dois idiomas estrangeiros no mínimo, as artes (teatro a sério português e universal, desenho e pintura, música), literatura nacional e universal (Camões, Cervantes, Shakespeare, Montaigne, Rousseau, Voltaire,... e política editorial com edições de bolso) com as respectivas obras disponíveis nas bibliotecas, desporto, e fomento de ateliers de Verão nas mais variadas disciplinas (arqueologia, teatro, laboratórios científicos, robótica, vela, canoagem).
E os professores?
Quem cuida que sejam no mínimo gente de bem, cientes de deveres de exemplo?
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