sábado, 31 de dezembro de 2016

O espectro europeu

Por mais que nos esforcemos por olhar para Portugal, a verdade é que o nosso país não conta muito para o futuro que se adivinha ou receia. Ao lado dos grandes problemas da actualidade, Portugal pesa pouco. Muito para nós, mas pouco para o mundo. Ainda por cima, endividados como estamos, dependemos dos outros. Isto é: da Europa!

É para esta que devemos olhar. É a Europa que condiciona o futuro do nosso país. Ora, o mau estado em que se encontra o continente e sua União não é de molde a dar-nos esperança. Pelo contrário. É possível que, da Europa, venham mais factores de intranquilidade. Ficar na União já não é o bem maior, é o mal menor!

Na verdade, vivemos hoje os tempos mais perigosos que a Europa conheceu desde o fim da segunda guerra. Nem o surto terrorista dos anos setenta é comparável com o momento actual. Com efeito, havia então capacidade de resposta e não abundava o complexo de culpa. Os anos anunciavam prosperidade. Em quase tudo (liberdades, progresso, protecção social e cultura) a Europa revelava força e confiança, era invejada pelo resto do mundo. Apesar da ETA, do IRA e dos grupelhos esquerdistas com propensão para o terror, a segurança e o bem-estar eram características cobiçadas. Ainda mais tarde, o fim do comunismo não provocou medo: foi alegria e esperança.

Esses tempos estão longe. Hoje, terrorismo e insegurança são a regra do jogo. A defesa europeia é incipiente. A população está envelhecida e reage mal ao rejuvenescimento que a imigração poderia trazer. A pressão dos refugiados da guerra e dos foragidos da fome é enorme e a Europa não está preparada para os receber, nem para os recusar.

Fora da democracia, direita e esquerda não estão interessadas em “salvar a União”, antes vêem na crise actual uma oportunidade para travar o processo de integração e de coesão. Dentro da democracia, direita e esquerda não revelam capacidade para estancar a crise, travar os radicais, combater o terrorismo e impedir a xenofobia.

Com excepção da Alemanha, o peso da Europa no mundo diminui a olhos vistos. O crescimento europeu baixou a níveis ridículos e não conseguirá mais sustentar o bem-estar e garantir o Estado social. Será a Europa capaz de vencer as ameaças que sobre ela pairam? Pergunta de muito difíceis respostas…

A Ocidente, a incógnita da nova Administração americana desafia todos, pessimistas e optimistas. O Presidente eleito tem impulsos ameaçadores: abandonar a parceria atlântica; diminuir o envolvimento militar na NATO; virar-se para dentro, para a América; e olhar para o Pacífico.
A Sul, a Leste e no Próximo e no Extremo Oriente, já não é o cerco à Europa do século XVI, é a tenaz e a asfixia. Há muitas décadas que as fragilidades europeias não eram tão evidentes. A sua defesa autónoma é quase inexistente. Reduzida à solidez alemã, a sua capacidade económica e financeira é débil. A sua política é débil e confusa.

As forças centrífugas ameaçam tornar-se dominantes. Para ser forte e coesa, a Europa ficou muito aquém. Para ser forte e plural, a Europa foi longe de mais. Em qualquer dos casos, a União parece não estar em condições de resolver os seus problemas. Espera por eleições nacionais em vários países, o que agrava a percepção de que a União não existe e a cidadania europeia é uma ficção.

Os optimistas acreditam que a esperança é a última a morrer, que tudo vai correr bem, que há sempre quem salve os povos das catástrofes e que a razão e o bom senso acabarão por imperar. Para eles, a Europa vai ressuscitar ainda mais forte. Os pessimistas pensam que vivemos o crepúsculo da grande civilização ocidental, cristã, europeia, industrial, liberal e democrática. O que vier a seguir não será bom. A Europa já acabou. Os cépticos admitem que uma solução razoável possa, em última instância, surgir e ser perfilhada pela maioria dos europeus, mas que será apenas a menos má das saídas da crise. A grande Europa está condenada. A Europa será uma solução de recurso.

Se houvesse alguém, pessoa, governo ou Estado, com capacidade de convocatória, seria talvez possível que a Europa e os Europeus pudessem iniciar, sem reservas nem tabus, um processo de avaliação e refundação da Europa. Essa convocatória poderia começar por analisar e estudar. Fazer as contas e agir. E perceber que ou há refundação, seja com quem for, ou há funeral.

O problema é que esse alguém não existe. Ou não pode. Ou não quer. A Alemanha é suspeita. A França é irrelevante. A Grã-Bretanha foi tratar da sua vida. A Itália é incapaz. Os restantes não são sequer ouvidos. Só se a indiferença americana e a ameaça russa ajudarem…

Diário de Notícias, 29 de Dezembro de 2016

2 comentários:

Anónimo disse...

O pessimismo, para além de pouco saudável, pode tornar-se perigoso, na medida em que pode incutir e provocar medos que possam toldar a lucidez e impedir a racionalidade. Foi assim que se construiu o ambiente que levou Hitler ao poder, fundando o designado III Reich, com a ideia consentida de impor “a verdade” e acabar com “a miséria e a anarquia” na Europa.

Mas, suponho que AB ficaria menos pessimista/ céptico se a ONU fosse chefiada por alguém que não fosse o “aldrabão” do Guterres. Oh, ironia!...

Já agora, por curiosidade, aproveito para lembrar que houve um tempo em que muitos dos seus velhos admiradores achavam que “Portugal is not a small country”.

bea disse...

Bom...há bocado perdi o comentário não sei como e agora o portátil bloqueou e tive que encerrá-lo.
O artigo parece-me desapaixonado e, em linhas gerais, verdadeiro. E a verdade é que não vejo caminho para a Europa se reinventar. Mas ainda é o primeiro dia, não posso cercear assim as vazas ao novo ano. Além disso, e apesar de reconhecer essas verdades, temos de esperar em alguma coisa. Nem que seja nas que são menos boas. Quem sabe alguma não se revela imprevista nos resultados?!